Quando se fala nos impactos nocivos da indústria da moda, a primeira imagem costuma ser a das roupas baratas de poliéster produzidas em massa pelo fast fashion e ultra fast fashion. Já quem consome artigos de luxo costuma acreditar que preços altos são garantia de responsabilidade — sem financiar poluição, trabalho análogo à escravidão, desmatamento ou roubo de terras indígenas.
Um novo relatório da organização investigativa Earthsight, intitulado O preço oculto do luxo: Quanto as bolsas de grife da Europa estão custando à floresta amazônica, expõe as contradições dessa crença. A investigação mostra que marcas de renome, como a Coach, compram couro de fornecedores ligados à pecuária ilegal em áreas onde o desmatamento avança há décadas — com destaque para a Terra Indígena Apyterewa, no Pará, uma das regiões mais devastadas da Amazônia brasileira.
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Pará: epicentro da devastação
Quase toda a perda recente de floresta no Brasil está ligada à expansão da pecuária — grande parte dela ilegal. O Pará é o principal foco dessa devastação: em apenas duas décadas, mais de 18 milhões de hectares foram derrubados, o equivalente a quase duas vezes o território de Portugal.
Mesmo com a promessa de zerar o desmatamento até 2030, o estado segue liderando a abertura de novas áreas de pasto, invadindo terras indígenas, fomentando conflitos e agravando violações de direitos. Ironicamente, é em Belém, capital paraense, que ocorrerá em novembro a COP30 — a primeira conferência climática realizada dentro da floresta amazônica.
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O rastro do couro
A Earthsight cruzou decisões judiciais, imagens de satélite, registros de exportação e investigações disfarçadas para rastrear a rota que liga a cadeia de fornecimento da Coach a um dos maiores frigoríficos do Brasil — a Frigol — acusada de comprar milhares de bois criados em áreas desmatadas ilegalmente, inclusive dentro de terras indígenas.
Segundo o relatório, gado criado de forma ilegal em Apyterewa, território ancestral do povo Parakanã, é transferido para fazendas intermediárias e, depois, vendido à Frigol — que acumula histórico de compras em áreas embargadas por crimes ambientais. O couro desses animais segue para curtumes como a Durlicouros, maior exportadora do Pará, que envia quase toda a produção para a Itália. Lá, o material é rebatizado como “couro italiano” por empresas como Conceria Cristina e Faeda — fornecedoras diretas de grifes de luxo.
Greenwashing de luxo
Conhecida por suas bolsas de “luxo acessível”, vendidas por valores entre R$ 1.700 e R$ 3.400, a Coach ocupa hoje o posto de quinta marca de moda mais popular do mundo. Esse crescimento vem de uma estratégia de reposicionamento voltada à geração Z — público que valoriza consumo ético e discurso de sustentabilidade. São mais de 950 lojas em 21 países. Em 2024, as vendas saltaram 332%, impulsionadas por produtos que viralizaram no TikTok.
Mas o discurso sustentável colide com os dados revelados: embora não haja confirmação de que todo o couro dos produtos Coach venha, de fato, de gado criado ilegalmente, o uso de fornecedores expostos a esses riscos deixa os consumidores sujeitos a financiar desmatamento e violações de direitos indígenas — muitas vezes sem saber.
Quase todo o couro exportado do Pará à Europa tem como destino a Itália, passando por duas curtidoras da região do Vêneto — Conceria Cristina e Faeda — onde é processado e rebatizado como “couro italiano”. Investigadores disfarçados da Earthsight ouviram de um representante da Conceria Cristina que a Coach é cliente frequente desse material.
Certificação frágil
A Coach, que tanto explora o discurso de consumo responsável para jovens, preferiu não comentar as descobertas. Outras marcas conectadas às mesmas curtidoras incluem Chanel, Chloé, Hugo Boss, Fendi, Louis Vuitton (LVMH), Balenciaga, Gucci e Saint Laurent (Grupo Kering). Todas negam usar couro brasileiro, mas Fendi e Hugo Boss abriram apurações internas. A Chanel revelou ter rompido recentemente o contrato com a Faeda por desconfiança na rastreabilidade. A Chloé foi a única a detalhar à Earthsight seus métodos de verificação. Já a Faeda negou fornecer couro brasileiro a marcas de moda; a Conceria Cristina não respondeu.
Marcas como Coach, Fendi, Louis Vuitton e Hugo Boss se apoiam na certificação do Leather Working Group (LWG), que, porém, não exige rastrear o gado até a fazenda de origem. O próprio LWG admitiu à Earthsight que sua certificação não garante status “livre de desmatamento”. Ainda assim, curtumes podem receber o selo ouro mesmo sem rastrear o couro até o frigorífico — caso de Conceria Cristina e Faeda.
Quem paga a conta
Enquanto isso, o povo Parakanã segue na linha de frente da devastação. No Pará, há décadas sob invasões de terra, só nos últimos seis meses foram registrados seis ataques armados. O frigorífico ligado à cadeia da Coach é acusado pelo Ministério Público Federal de comprar gado criado ilegalmente em território indígena.
O relatório da Earthsight deixa claro: no luxo, preço alto não significa consumo limpo — e mesmo bolsas disputadas por uma geração que se diz preocupada com sustentabilidade podem carregar, na costura, as marcas de uma floresta derrubada e de direitos ancestrais violados. Enquanto o marketing vende a ideia de “luxo consciente”, a realidade na Amazônia mostra quem paga a conta.