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Papa Francisco e a simplicidade vestida: a política por trás da indumentária pontifícia

Santo Padre se destacou não apenas por sua crítica contundente ao neoliberalismo, mas também por uma mudança profunda na forma como o papado se apresenta ao mundo — inclusive em suas vestes

Santo Padre se destacou não apenas por sua crítica contundente ao neoliberalismo, mas também por uma mudança profunda na forma como o papado se apresenta ao mundo — inclusive em suas vestes
Papa Francisco e a simplicidade vestida: a política por trás da indumentária pontifícia.Santo Padre se destacou não apenas por sua crítica contundente ao neoliberalismo, mas também por uma mudança profunda na forma como o papado se apresenta ao mundo — inclusive em suas vestesCréditos: Vaticano News
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Desde sua eleição em março de 2013 até sua morte em 21 de abril de 2025, o Papa Francisco se destacou não apenas por sua postura pastoral e sua crítica contundente ao neoliberalismo, mas também por uma mudança profunda na forma como o papado se apresenta ao mundo — inclusive em suas vestes. 

Seus gestos simbólicos, como a escolha do nome Francisco (em referência a São Francisco de Assis), a recusa em usar tronos, a residência na Casa Santa Marta e o abandono de ornamentos tradicionais ressignificaram a estética do Vaticano. Assim, o vestuário papal voltou a ocupar o centro de uma disputa semiótica: ostentação ou serviço, poder ou humildade.

A escolha do branco

Francisco optou por manter apenas a batina branca lisa, sem bordados, tecidos brilhosos, capas ou adornos. Essa escolha contrastou radicalmente com os trajes ricamente ornamentados de seus antecessores. Na noite de sua eleição, recusou o tradicional manto vermelho com arminho branco — a mozzetta papal, símbolo da realeza espiritual do pontífice. Também dispensou o uso dos tradicionais sapatos vermelhos, optando por continuar a usar seus sapatos pretos ortopédicos de couro, os mesmos que usava como arcebispo de Buenos Aires.

Esses sapatos vermelhos, usados pelos papas desde pelo menos o século XVI, representam o sangue dos mártires cristãos e simbolizam que o papa caminha nos passos de Cristo, inclusive no sofrimento e no sacrifício. A cor vermelha também está associada à realeza e ao Espírito Santo, evocando o poder espiritual e a dignidade pontifícia. A tradição remonta ao Império Romano, quando o calçado vermelho indicava status e autoridade. Com a cristianização, passou a expressar a disposição do papa de derramar seu sangue pela fé. João Paulo II manteve essa tradição, e Bento XVI chegou a usar modelos confeccionados artesanalmente por sapateiros romanos renomados.

Ao romper com esse costume e manter seus calçados simples, Francisco não apenas recusou o ornamento, como também rejeitou simbolicamente o aparato imperial do papado, aproximando-se da imagem do pastor e servo.

Da opulência barroca à sobriedade franciscana

O contraste com seus predecessores, especialmente Bento XVI, é revelador. Ratzinger, profundo conhecedor da liturgia e da história da Igreja, fez da estética papal uma reafirmação do sagrado e da tradição. Resgatou o uso de peças como:

  • o camauro, gorro de inverno em veludo vermelho e arminho branco;
     
  • o fanon, sobrepeliz litúrgica de listras douradas e prateadas;
     
  • as estolas bordadas com ícones e símbolos em fios metálicos;
     
  • e a própria tiara papal, readmitida em seu brasão como símbolo heráldico da autoridade papal, mesmo sem tê-la usado em público.

Francisco, por sua vez, aboliu o uso dessas peças. Substituiu a cruz peitoral de ouro por uma de prata com a imagem do Bom Pastor. Rejeitou os tecidos reluzentes e brocados. Usava casulas simples e estolas com bordados discretos, por vezes com símbolos indígenas latino-americanos. Nunca apareceu com o camauro, nem com o fanon, nem utilizou a tiara no brasão, mantendo apenas a mitra episcopal e o báculo pastoral.

Se Bento XVI via nas vestes papais uma expressão da glória divina e da continuidade da tradição católica, Francisco as transformou num símbolo de ruptura com a ostentação clerical e aproximação com os pobres.

Vestir como gesto político

Francisco não aboliu o simbolismo papal — ele o ressignificou. Sua estética negava a lógica da autoridade baseada na opulência. O ornamento, em vez de expressar o sagrado, foi colocado sob suspeita. A simplicidade tornou-se veículo de uma teologia da proximidade e da escuta.

Essa sobriedade repercutia diretamente em seus discursos e documentos. Na Evangelii Gaudium (2013), denuncia “a economia da exclusão”; na Laudato Si’ (2015), critica a devastação ambiental promovida pelo consumismo; na Fratelli Tutti (2020), condena a indiferença diante das desigualdades globais. A indumentária simples era parte dessa crítica mais ampla: um chamado à coerência entre forma e conteúdo, entre fé e vida, entre o que se prega e o que se veste.

Roupa como resistência simbólica

No contexto do neoliberalismo tardio, em que o vestuário é transformado em branding, espetáculo e status, a repetição da batina branca sem variações tornou-se um gesto subversivo. Francisco rejeitava a estética do luxo como linguagem do sagrado. Sua indumentária recusava a lógica da obsolescência, da moda como símbolo de distinção, e da roupa como mercadoria. Ao repetir cotidianamente o mesmo traje, desafiava diretamente o culto ao novo que sustenta o ultra fast fashion e a sociedade do consumo simbólico.

Sua opção estética estava profundamente alinhada à sua visão teológica e pastoral: uma Igreja que “prefere estar suja por sair às ruas do que doente por se fechar em si mesma”.

Uma moda ética inspirada por Francisco?

Ainda que o Vaticano não seja parte do circuito da moda ética, a estética de Francisco repercute entre ativistas por uma moda justa. Organizações como o Fashion Revolution pregam princípios como ética, transparência, redução do consumo e valorização do trabalho manual — temas que dialogam com a escolha franciscana de sobriedade, repetição e cuidado.

Francisco nunca formulou uma “teologia da moda”. Mas sua forma de vestir foi um testemunho. Vestiu a crítica à desigualdade, ao descarte, ao luxo como linguagem do sagrado. Sua batina foi ao mesmo tempo silêncio e grito.

A teologia da libertação no corpo vestido

A aliança de Francisco com a teologia da libertação também se encarnou em seu corpo — mais precisamente, no corpo vestido. O despojamento foi um sinal de adesão ao Cristo dos pobres, como propuseram teólogos como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff e Jon Sobrino. Para esses autores, a salvação começa no aqui e agora, entre os marginalizados. O corpo do papa, vestido com sobriedade, torna-se extensão dessa promessa.

A cruz de prata, o sapato gasto, o casaco antigo: nada disso é neutro. É uma escolha de lado. Um ato de comunicação pastoral, política e espiritual.

A indumentária de Francisco não apenas se diferenciou da de Bento XVI — ela se opôs a ela em nível simbólico. Enquanto Bento evocava a tradição, a sacralidade e a autoridade imperial da Igreja, Francisco evocava a humildade, a proximidade e o Evangelho encarnado entre os pobres. O vestuário tornou-se parte de sua teologia viva, seu testemunho encarnado e sua recusa do luxo como expressão do sagrado.

Francisco ensinou que vestir-se também é uma forma de pregar. E, talvez por isso, sua batina branca se tornou uma das imagens mais poderosas do catolicismo no século XXI.

Um adeus em meio à Fashion Revolution

Sua morte, em 21 de abril de 2025, coincidiu com o início da Semana Fashion Revolution, movimento global criado após a tragédia do Rana Plaza para questionar as práticas da indústria da moda e exigir justiça social, ambiental e transparência. 

Que a batina branca de Francisco — símbolo de despojamento, coerência e compaixão — nos inspire, neste momento de luto e mobilização, a seguir perguntando: Quem fez minhas roupas? E, mais ainda: para quem se veste o Evangelho hoje?

 

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