MODA DECOLONIAL

Burkina Faso: magistrados e escrivães abandonam vestes da França para valorizar produção local

Medida anunciada pelo governo do Capitão Ibrahim Traoré ecoa o legado do presidente Thomas Sankara, que considerava a valorização da indústria têxtil do país uma forma de resistência ao neocolonialismo

Créditos: Afrique Sur7 - Burkina Faso abole uso de vestes francesas para magistrados e escrivães e usa trajes locais.
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O governo de Burkina Faso anunciou uma medida repleta de simbolismo na luta anticolonial: os trajes usados por magistrados e escrivães da Justiça do país deixarão de ser importados da França e passarão a ser confeccionados localmente.

A decisão foi tomada durante uma reunião do Conselho de Ministros, liderada pelo presidente Capitão Ibrahim Traoré, e anunciada pelo ministro da Justiça, Edasso Rodrigue Bayala, no dia 23 de outubro de 2024.

Os novos trajes são feitos com o tecido tradicional burquinabê, o "Faso Dan Fani", que simboliza a resistência ao colonialismo e a valorização da cultura local.

Além de fortalecer a identidade nacional, a medida também tem um impacto econômico relevante, pois os trajes são cinco vezes mais baratos que os anteriormente importados da França, beneficiando a indústria têxtil local.

Herança de Thomas Sankara

A substituição dos trajes judiciais ecoa o legado de Thomas Sankara, ex-presidente de Burkina Faso (1983-1987) e ícone panafricanista. Sankara era um defensor ardoroso da soberania nacional e da autossuficiência econômica, promovendo políticas que valorizavam os produtos e a cultura locais.

Entre suas ações mais simbólicas estava a promoção do "Faso Dan Fani" como traje oficial, incentivando os burquinabês a vestirem tecidos produzidos no próprio país como forma de romper com a dependência colonial.

Durante seu governo, Sankara via o algodão burquinabê — uma das principais riquezas agrícolas do país — como um recurso estratégico para a independência econômica.

Ele acreditava que o algodão deveria ser processado internamente, em vez de ser exportado em bruto para ser transformado em produtos acabados no exterior, combatendo assim a exploração internacional das matérias-primas africanas.

Em um discurso histórico na Cúpula da Organização da Unidade Africana, em 1987, Sankara afirmou:

"Burkina Faso está aqui com roupas feitas com nosso algodão, plantado e tecido em nossa terra, sem um único fio vindo da Europa ou da América. Devemos aceitar viver como africanos — essa é a única maneira de viver livre e com dignidade."

Confira aqui o discurso na íntegra

Identidade nacional

A adoção de políticas de valorização da cultura e da produção local fez parte da ampla reforma de Sankara, que incluiu a mudança de nome do país.

Em 4 de agosto de 1984, Alto Volta foi renomeado como Burkina Faso, que significa "terra dos homens íntegros" em mossi e dioula. Essa mudança visava romper com o passado colonial e afirmar a nova identidade do país, alinhada à visão de Sankara de autodeterminação e soberania.

Legado de resistência e soberania

Thomas Sankara foi assassinado em 15 de outubro de 1987, aos 37 anos, durante um golpe de Estado liderado por seu antigo aliado, Blaise Compaoré. Sua morte encerrou um período progressista de reformas radicais em Burkina Faso, marcando o início de um regime mais alinhado aos interesses internacionais. Compaoré governou o país por 27 anos até ser deposto em 2014.

Após décadas de mistério, o julgamento sobre a morte de Sankara começou em 2021, culminando na condenação de Blaise Compaoré à prisão perpétua em abril de 2022. Sankara permanece um símbolo da luta anticolonial e continua a inspirar movimentos revolucionários e debates sobre soberania africana.

A decisão do governo atual de adotar trajes judiciais feitos com o "Faso Dan Fani" reafirma o compromisso com os ideais de Sankara, promovendo a cultura burquinabê e a autossuficiência, enquanto se distancia das influências coloniais que marcaram a história do país.

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