RESILIÊNCIA

Na ausência do Ênio, todos ficamos mais frágeis

Ele nos ensinou a usar o humor como arma

Foi pra Cuba.Depois de uma campanha do Barão, Ênio foi para Cuba fazer tratamento no Centro Internacional de Restauração Neurológica, o que retardou a evolução da doença.Créditos: Arquivo pessoal
Escrito en MÍDIA el

Em 2010, depois de acatar uma sugestão que dei ao observar o movimento de blogueiros dos Estados Unidos contra as loucuras de George W. Bush -- dentre as quais se destacou a invasão do Iraque sob premissas falsas, as das inexistentes "armas de destruição em massa" --, o Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão do Itararé organizou o primeiro Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas, em São Paulo.

O nome do encontro foi alvo, inclusive, de críticas, uma vez que muitos blogueiros de esquerda não aceitavam o "progressistas" do título, uma concessão à frente ampla feita pelo brilhante Altamiro Borges.

O auditório do Sindicato dos Engenheiros de São Paulo lotou completamente, para nossa surpresa, com gente vinda de todo o Brasil.

A campanha eleitoral se aproximava -- Dilma Rousseff enfrentaria José Serra, que nos brindou com o epíteto "blogueiros sujos".

Os sujos tínhamos origens distintas, mas algo em comum: a constatação de que a mídia comercial, majoritariamente, estava organizada como um partido político. 

No dizer do deputado pernambucano Fernando Ferro, era o PIG, Partido da Imprensa Golpista, que Paulo Henrique Amorim popularizou no extinto Conversa Afiada.

O PIG ajudou a derrubar Getúlio Vargas, a promover o golpe cívico-militar-midiático de 1964, a combater o décimo terceiro salário e os aumentos do salário mínimo.

Alvo de um "puff job" da revista Piauí -- que Paulo Henrique Amorim definiria, ao lado do Valor Econômico, como o "PIG cheiroso" -- o ex-chefão da Globo Ali Kamel chegou a escrever, em O Globo, que o dinheiro do Bolsa Família não deveria ser utilizado para a compra de eletrodomésticos!

[Puff job é aquela maquiagem que se faz em alguém para que tenha aparência melhor do que a real. Trata de destacar pontos positivos, mas principalmente de omitir. O jornalismo brasileiro é pródigo nisso, como na capa da Veja em que José Serra foi vendido como "meigo". Serra, que tem lá suas qualidades, pode ser definido de mil maneiras. Certamente, não é meigo]

Nunca antes na História do Brasil houve uma defesa tão apaixonada dos tanques de lavar roupa, de bater bolo com as próprias mãos e de barrar os liquidificadores com os quais muitos recipientes do Bolsa Família aumentavam a renda vendendo sucos e sorvetes caseiros.

BOM HUMOR, SEMPRE

Ênio Barroso ria de tudo isso. Fazia galhofa. No seu PTrem das Treze, enfrentava o antipetismo que ganhara força extraordinária durante os espetáculos televisionados do histriônico Joaquim Barbosa, no julgamento do "mensalão do PT".

Observava, o Ênio, que a mídia comercial se referia ao outro mensalão, o do PSDB, como "mensalão de Minas". Outra diferença significativa: enquanto o do PT foi julgado em instância única, no STF, o mensalão tucano foi desmembrado e remetido à primeira instância, livrando o PSDB da "formação de quadrilha".

Um escárnio.

Conheci Ênio naquele encontro de blogueiros. De maneira abrupta. De repente, enquanto os oradores se revezavam na mesa, Ênio interrompeu o debate para denunciar a dificuldade que enfrentara para participar.

Apesar de estarmos na sede do Sindicato dos Engenheiros, o prédio não tinha acessibilidade!

A vergonha de todos foi tanta que mais tarde o próprio sindicato tratou de providenciar uma reforma.

Desde 2010, convivi com Ênio em eventos e encontros de blogueiros sujos, que não por acaso escolheram o restaurante Sujinho como seu quartel-general em São Paulo.

Apesar do avanço da distrofia muscular progressiva, que o colocou em uma cadeira de rodas, para mim Ênio se tornou exemplo de resiliência.

E de sabedoria, como ficou óbvio na entrevista que ele deu ao Barão, para falar da blogosfera:

Foi a distrofia muscular que me ensinou, na marra, a entender melhor as estrelas. Na cadeira de rodas, passei a ficar mais tempo olhando pro céu. Aprendi que o campo magnético de uma estrela é responsável pelo equilíbrio da outra, e é assim que compreendo a blogosfera progressista: somos todos estrelas. Alguns brilham mais, por seus méritos, e outros, talvez, menos, mas sem o campo magnético da reciprocidade e da solidariedade, não existiríamos como movimento.

Nas últimas semanas, a pedido de sua filha Ju, vários de nós blogueiros enviamos áudios para animar Ênio em sua batalha.

Ao visitar o Armazém do Campo, na véspera de sua morte, lembrei dos áureos tempos da blogosfera ao ler numa parede a frase de Carlito Maia:

Nós não precisamos de muita coisa, somente uns dos outros.

O movimento de blogueiros mudou muito desde 2010. Vieram as redes sociais, os influencers e os coachs.

Mas, a máxima de Carlito Maia continua valendo, especialmente em tempos de bolsonarismo.

Pelo exemplo, sabedoria e humor sarcástico, ficamos todos mais frágeis com a ausência do Ênio.