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A censura nasceu junto com a imprensa. E, ao longo dos anos, a busca por superar as armadilhas impostas por ela sempre norteou o comportamento dos jornalistas comprometidos com a verdade. Entretanto, em determinados períodos da história, a censura recrudesceu. No Brasil, durante o período do regime militar, de 1964 a 1985, ela encontrou abrigo e, ao mesmo tempo, resistência. Beatriz Kushnir, mestre e doutora em História Social, escreveu Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988, livro considerado até hoje como referência quando se fala no tema. Ela revela à Fórum uma parte dos bastidores da censura à imprensa e avalia como ela atua hoje, diante da mudança de perfil dos veículos de comunicação.
Fórum – Em linhas gerais, como funcionou a censura à imprensa no Brasil durante a ditadura?
Beatriz Kushnir – A censura à imprensa no pós-64 atuou a partir de uma agência chamada Sigab [Serviço de Informação do Gabinete], que estava diretamente vinculada ao gabinete do ministro da Justiça. Eram censores da Polícia Federal, que foram transferidos para esse serviço e que, diariamente, ligavam para os jornais para dizer: “De ordem superior fica proibido...”. Eram os chamados bilhetinhos da censura. Muitas vezes os jornalistas sabiam o que estava acontecendo a partir desses telefonemas. Isso tudo foi feito depois do AI-5. Mas, na noite de 13 de dezembro de 1968, a maior parte das grandes redações passou a receber pessoas do Exército para fazer censura. Os veículos também receberam uma lista do que estava proibido e permitido liberar. Era um número muito reduzido de censores. Então, como esse número reduzido fazia censura à imprensa, ao teatro, à música, ao cinema? É porque se trabalhou com a ideia de autocensura. Como dizia Cláudio Abramo [um dos maiores jornalistas brasileiros], o jornal tem um dono e sai o que o dono quer. Vamos lembrar também que a lei de censura prévia é de 1970, mas, como eu mostro no meu livro, encontrei um documento do Sette Câmara [José Sette Câmara, então diretor do Jornal do Brasil] endereçado ao Alberto Dines [também um dos jornalistas mais reconhecidos do país], de antes da censura prévia, no qual o Sette Câmara dizia como agir dentro do Jornal do Brasil. A censura era feita dessa maneira, introjetando nas redações o que era proibido e o que era permitido.
Fórum – Seu livro Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988 pode ser considerado incômodo para a mídia brasileira, pois expõe detalhes sobre os bastidores de jornais e emissoras de TV durante o regime militar?
Beatriz Kushnir – Meu livro se tornou incômodo porque vai no contrafluxo do que a historiografia e os relatos dos jornalistas contemporâneos à época tinham como afirmação, que a imprensa resistiu ao golpe de 1964. Não é verdade. A grande imprensa colaborou com o golpe e com todo o processo da ditadura. Quem foi, efetivamente, contra foi a imprensa alternativa. É por isso que houve a limpa nas redações, principalmente depois que o Golbery [Golbery do Couto e Silva, general e homem influente nos governos militares] chegou ao poder. Todos aqueles jornalistas que incomodavam eram demitidos e se formou uma grande massa de imprensa alternativa no país, que seria o que a gente considera hoje os blogs. É importante notar que quando eu digo que a grande imprensa colaborou, você tem um ou outro espasmo de resistência. Mas isso não é a tônica geral. Por exemplo, a Veja foi censurada logo nos primeiros números, mas depois continuou passando. Quando o Golbery entrou e começou a censurar mais fortemente a Veja, o Mino Carta [jornalista, escritor e editor de inúmeros veículos, hoje da CartaCapital] criou um personagem chamado Falcon, em “homenagem” ao então ministro da Justiça Armando Falcão. A brincadeira do Falcon durou cinco números, porque o leitor sabia que a Veja estava sendo censurada e isso ocorreu até o Mino ser demitido. Outra coisa importante que deve ser lembrada é que se fala muito da resistência do Estadão, de ter publicado trechos de Camões e receitas de bolo. O Oliveiros Ferreira [ex-diretor do Estado de S. Paulo] me concedeu uma entrevista, na época de minha pesquisa de tese, e ele contou que as pessoas ligavam para a redação e diziam assim: ‘Olha, aquela receita de bolo da primeira página tem alguma coisa errada, porque o bolo está solando’. Ou seja, se era uma forma de avisar ao leitor que o jornal está sob censura, não emplacou.
Fórum – Pode relembrar algumas histórias dessa época relacionada à censura?
Beatriz Kushnir – Nos arquivos, eu encontrei cartas do chefe da Polícia Federal, Moacyr Coelho, para o Civita [dono da Editora Abril], agradecendo o envio de um funcionário, porque esse funcionário mandou uma carta, dizendo que o cinema não estava sendo bem censurado e que ele queria ensinar aos censores como censurar. Lá, também, você pode encontrar uma série de cartas das Senhoras de Santana de São Paulo [grupo que defendia a censura] também reclamando ao ministro que a televisão estava muito liberada, pedindo uma coisa mais rigorosa. Lembrando que o Brasil é um país conservador e autoritário, em sua maioria, que a nossa República foi um golpe militar e que se tem muito mais momentos de exceção do que de democracia na sociedade brasileira, que os valores democráticos de nossa sociedade são muito frágeis, visto o que acontecem em 2016 e agora, que tudo está ruindo tão rapidamente. Então, a população solicitava do governo ações fortes de censura. Isso faz a gente pensar que a sociedade brasileira encara os governos como pais protetores, quase como aquela ideia sebastianista de que vai vir alguém e salvar você do mal. Essa é a sociedade daquela época e também de agora. A gente repara que isso está introjetado no brasileiro. A TV Globo, por exemplo, contratou censores aposentados para fazer uma autocensura dos roteiros e, assim, evitar ter algum problema. No fundo, não há resistência, há uma ideia de colaboração, ou seja, como ter menos prejuízos ao aderir ao sistema. Tem também o caso da Folha da Tarde. Em 1967, a Folha de S. Paulo, revitalizou esse jornal, que havia terminado em 1959, para fazer oposição ao Jornal da Tarde, do Grupo Estado, que estava cobrindo manifestações de estudantes, entre 1967 e 1968. Quando ocorreu o assassinato do Marighella, toda a redação caiu, porque tinha vínculos com a ALN [Aliança Libertadora Nacional – organização revolucionária]. Quem assumiu a redação foi o jornalista, que veio de Santos, Antônio Aggio, que também era funcionário da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Mais tarde, depois de se aposentar da Folha, ele foi assessor de imprensa do Romeu Tuma, que tinha ligações com o Dops. Então, a maior parte da redação era de policiais. Relatos dizem que o próprio Antônio Aggio ia com uma carabina para a redação. A Folha da Tarde imprimia o relato oficial da tortura. Quando as pessoas eram mortas nas casas de tortura, saía uma nota oficial, informando que a morte tinha sido em decorrência de um tiroteio na rua ou de um atropelamento na fuga da polícia. O jornal noticiava a versão oficial como sendo verdadeira. Por exemplo, se você procurar na Folha da Tarde, a missa de sétimo dia do Herzog [Vladimir Herzog, jornalista assassinado sob tortura nos porões da ditadura], não vai encontrar.
Fórum – Qual a importância da imprensa alternativa no processo de resistência à ditadura e, mais especificamente, à censura?
Beatriz Kushnir – A imprensa alternativa é uma forma de resistência, a partir da limpa nas redações. O Pasquim, por exemplo, sofreu uma forte censura. Eu entrevistei censoras que agiram no Pasquim. Tinha uma matéria de jornal que eu localizei, onde o Ziraldo contava que tinha ido para Roma e mandou um cartão postal para as censoras, dizendo: ‘Estou mandando Davi [escultura de Michelangelo] de costas, porque de frente vocês censuram’. Quando eu contei essa história lá nos anos 90, a censora abriu a gaveta, tirou o postal e falou: ‘Éramos nós’. Muitas delas recontavam suas histórias nos anos 90, querendo dizer que entraram para a censura para fazer resistência. E não é verdade. Elas estavam querendo recontar seu passado. A imprensa alternativa também sofreu muito quando o Pasquim fez uma matéria sobre racismo e as censoras deixaram passar, porque o pessoal do jornal descobriu que uma das censoras gostava de whisky. Então, eles davam whisky e ela deixava as matérias passar. Também teve o caso do pai da Helô Pinheiro, a garota de Ipanema, que era o chefe da censura no Rio e atendia na praia. Os jornalistas do Pasquim iam lá conversar. O próprio general Antônio Bandeira, que era o diretor da Polícia Federal e uma pessoa envolvida diretamente com a tortura no Araguaia, veio ao Rio de Janeiro para explicar ao Pasquim que não existia racismo no Brasil. Ele começou a censurar o Pasquim de Brasília, o que quebrava o jornal. Eu encontrei um documento no Arquivo Nacional do Rio do desenho de uma mão pedindo “help”, que era o Ziraldo pedindo arrego ao ministro para diminuir a censura. O que acaba acontecendo é que, quando houve uma certa flexibilização no número 300 do Pasquim e os censores dizendo que a partir dali a responsabilidade era deles, em 1975, o Millor Fernandes escreveu um editorial lindo, que se chama “Sem censura não quer dizer sem responsabilidade”. Ele disse que o tempo todo, com censura ou não, o que saía impresso era de responsabilidade daquela redação. O jornal foi novamente censurado, apreendido, o Pasquim rachou e o Millor saiu.
Fórum – Nos dias atuais, a imprensa está mudando de perfil. Você acredita que a censura também vai mudar a forma de agir?
Beatriz Kushnir – A censura, por mais que tenha uma cara, um discurso de moral e bom costume, é sempre política e sempre vai agir com a questão econômica. A gente não pode esquecer que quando os governos do mundo inteiro estão em situação apertada eles liberam verbas de publicidade para a imprensa. A censura sempre vai ser econômica, pois se eu fechar esse patrocínio eu posso quebrar aquele meio de comunicação. Então, se um veículo não consegue se manter por si ou por colaboração dos seus leitores, vai estar sempre na mão dos governos e à mercê do que os governos querem ver publicado.
Fórum – Quais os riscos da censura nos veículos digitais de imprensa?
Beatriz Kushnir – Esse mundo digital é uma terra de ninguém. Por isso, é muito difícil a gente checar se a notícia é falsa ou não, porque primeiro ela é publicada e se espalha rapidamente. A questão econômica é sempre muito forte, porque vai definir se o veículo vai conseguir ficar no ar. Vamos lembrar, por exemplo, de 2014, quando a Folha de S. Paulo publicou uma suposta ficha do Dops da Dilma Rousseff, que estaria no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Era uma ficha falsa, uma coisa muito fácil de checar, pois estava no Arquivo. Deu uma grande confusão, difícil de desfazer. Então, pela complexidade do mundo atual, com essa rapidez que as notícias se espalham no mundo digital, é muito difícil fazer qualquer controle, para o bem e para o mal. Quando você tem a possibilidade de noticiar algo que realmente está acontecendo, é ótimo. A gente tem acesso a muitas informações, mas vive num mundo que, por termos muitas informações, fazemos poucas sinapses, temos muitos dados, mas não sintetizamos. Então, acho muito difícil, eu sempre acho o poder econômico, infelizmente, ainda define as coisas.
Fórum – Em sua opinião, as agências contratadas para, supostamente, fiscalizar e combater fake news nas redes sociais podem agir como censores?
Beatriz Kushnir – Checar se uma informação é falsa ou verdadeira, eu não acho que seja um ato de censura. Se alguém escreveu alguma coisa e você quer checar se é verdadeiro ou falso, acho legítimo. Você querer desmontar a propagação de uma ideia falsa é legítimo, é uma obrigação. Censura, para mim, é quando você impede que uma pessoa chegue a uma determinada informação.
Fórum – Sobre o recente caso no qual uma empresa contratada pelo Facebook (Agência Lupa) acusou blogs progressistas de divulgar fake news, quando, na verdade, a notícia era verdadeira. Você não acha que existe uma questão ideológica embutida aí, que pode representar um risco para a liberdade de imprensa?
Beatriz Kushnir – Sim, mas no mundo, sempre vai ter esse embate ideológico, onde as pessoas vão querer construir narrativas. Então, sempre existirá a informação e a contrainformação. Não tem como a gente ser purista e achar sempre que isso não vai acontecer. É o jogo. Enfim, a gente tem que ter as nossas armas para desmontar as armadilhas do outro lado. Não tem como a gente achar que vai ter um mundo sebastianista de alguém que vai lá de cima dizer o que pode e o que não pode. São os embates políticos, as disputas. Infelizmente, faz parte. Mas que bom que a gente ainda tem liberdade de dizer não, provar que isso é verdadeiro. O ruim daquele momento de censura é você não ter espaços e, por isso, a imprensa alternativa era tão importante, para dizer: ‘Olha, o que esses caras estão noticiando não é verdade’. Os meios de comunicação vendem um serviço que é público. Eles vendem uma informação, que se torna uma mercadoria e isso é uma disputa. É a arena política. Não tem como a gente achar que isso não vai acontecer sempre.