A perseguição a jornalistas no Mato Grosso ganhou um novo episódio durante o Carnaval. No último sábado (10) o juiz João Bosco Soares negou o pedido de prisão preventiva contra o jornalista Alexandre Aprá, formulado pelo delegado Ruy Guilherme da Silva, titular da Delegacia Especializada em Repressão a Crimes Informáticos (Derci). Três dias antes em Cuiabá, Aprá já havia sido - ao lado dos também jornalistas Enock Cavalcanti e Marco Pinheiro - alvo de busca e apreensão no âmbito da Operação Fake News, que investiga reportagens negativas em relação ao governador Mauro Mendes (União Brasil).
A investigação acusa os jornalistas de veicularem informações falsas com o objetivo de prejudicar a imagem do governador. Entre os crimes apurados estão “calúnia majorada”, “perseguição majorada” e “associação criminosa”, o que daria arcabouço legal e burocrático para colocar os civis na cola dos jornalistas. Ao todo, 17 jornalistas alegam estar sendo perseguidos pelo mandatário.
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Alexandre Aprá deu o seu depoimento com exclusividade à Revista Fórum. Ele narra uma longa história de perseguição, oriunda de reportagem que denunciou uma fraude em licitação. O profissional trabalha em Cuiabá desde 2007, onde já passou por jornais, emissoras de televisão e sites de notícias locais. Em 2013 abriu o Isso é Notícia, seu próprio site, voltado para o jornalismo investigativo, e diz que nunca presenciou uma situação como a vivida por si e pelos colegas, em que, segundo suas palavras, o aparato da Polícia Civil está sendo utilizado para perseguir desafetos do governador.
“Levaram meu celular, meus computadores e notebook por determinação do mesmo juiz que sempre aparece emitindo essas decisões favoráveis ao governador. É sempre o mesmo juiz, são sempre os mesmos promotores e é sempre o mesmo delegado. Agora no começo do ano ficou meio feio, então trocaram o delegado da Derci. Eles investigam golpes e crimes de ódio, mas ultimamente, a maior parte do trabalho deles é fazer essa repressão política. Abrem inquéritos aos montes. O advogado do governador peticiona e o inquérito é aberto contra quem quer que seja”, denunciou.
O depoimento de Alexandre Aprá
“Quando comecei a fazer algumas reportagens sobre o governador, ainda na época que ele era prefeito de Cuiabá, eu já comecei a perceber uma animosidade. Ele não aceitava ser questionado ou criticado. Ou que a imprensa tocassem assuntos espinhosos pra ele. Desde então fiz algumas reportagens investigativas, algumas apurações minhas mesmo, que começaram a gerar uma série de processos para ele e para juízes do TRT (Tribunal Regional do Trabalho)”, conta Aprá.
Uma das primeiras reportagens, ainda em 2013, falava sobre fraudes em dois leilões judiciais que o atual governador, Mauro Mendes, participou. Nesse caso, Mendes passou a responder a ação por improbidade administrativa e dois juízes foram aposentados compulsoriamente nos anos seguintes. Segundo o jornalista, foi a partir daí foi gerada a “animosidade”.
“Em 2021 publicamos com exclusividade na coluna do Enock Cavalcanti que um publicitário, que já era o detentor das contas do governo nas redes e já tinha sido o responsável pela comunicação da Prefeitura de Cuiabá quando o Mauro Mendes era prefeito, teve a si concedida a administração de um parque urbano da cidade. Ele então deu um anel, uma joia, para a primeira-dama. E a própria primeira-dama mostrou o presente no Instagram, agradecendo-o em 2019. Resgatamos isso dois anos depois logo que esse mesmo publicitário venceu outro processo licitatório e deu um enorme alvoroço”, explica o jornalista.
Ele conta a seguir que a primeira-dama foi acompanhada do diretor-geral da Polícia Civil registrar um boletim de ocorrência na Delegacia da Mulher se dizendo vítima de fake news. E, para piorar, três dias após a publicação a comissão de licitação suspendeu o processo.
“Foi aí que o governador ficou muito bravo. Mas também a imprensa local, que ficou sem verba publicitária por meses por conta da suspensão dessa licitação. Tanto que quando a licitação foi suspensa comecei a receber recados de colegas, donos de veículos e outras pessoas envolvidas no meio, que interlocutores de dentro do Palácio diziam que colocariam um ‘investigador’ na minha cola. Em junho de 2021, procurei o Gaeco (Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado), do Ministério Público, expliquei a situação, e ele disse que não poderia fazer nada. Dois meses depois fiquei sabendo do tal ‘detetive’. Um empresário me falou que uma pessoa foi contratada, um detetive particular, para me monitorar”, relatou.
Segundo o jornalista, o objetivo da ‘investigação particular’, conforme lhe foi relatado pela fonte, seria o de forjar flagrantes gravíssimos. “Queriam ou forjar flagrante de tráfico de drogas, colocando drogas no meu carro, ou armar uma situação onde eu estaria com um menor num hotel”, conta.
Logo em seguida, o suposto detetive particular teria ficado incomodado com o serviço, gravou uma conversa com o contratante e decidiu passar as imagens na íntegra a Alexandre, que tomou as devidas providências para verificar a veracidade das mesmas. Ele então fez a denúncia à Polícia Federal porque “sabia que aqui já havia um clima de aparelhamento da Polícia Civil”.
“Na mesma semana, três delegados da Polícia Civil denunciavam na Assembleia Legislativa de Mato Grosso que foram remanejados dos seus cargos na Delegacia Fazendária por resistirem às pressões do governador para que ele e seu grupo fossem favorecidos em detrimentos de adversários políticos”, frisou Aprá.
A PF não aceitou a denúncia do jornalista e a encaminhou para a Civil. A partir daí, segundo o jornalista, foi aberto o primeiro inquérito da Operação Fake News, mas ao invés de vítima, ele era o investigado. Ele diz que foi incluído porque à época circularam mensagens apócrifas em grupos de WhatsApp locais que faziam "outras denúncias" [diferentes das expostas no seu site] e misturavam a perseguição que ele já denunciara em relação ao detetive particular. No fim das contas, as mensagens eram de pessoas ligadas a um adversário político de Mauro Mendes, mas isso não tirou o jornalista da condição de investigado.
“Por outro lado, não fizeram nada para investigar o detetive que colocaram na minha cola. Havia fartos indícios do envolvimento do governador, não apenas as imagens que o detetive me cedeu. Recentemente fizeram um acordo de não persecução penal com o detetive em que ele não teve de entregar nada, nem ninguém. Pagou uma multa e voltou para Campo Grande (no Mato Grosso do Sul). Ele não vai mais precisar se pronunciar sobre o caso”, lamentou o jornalista.
Com o apoio da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) e do Sindicato dos Jornalistas do Mato Grosso, Aprá entrou com um pedido de federalização do caso na Procuradoria-Geral da República, que segue tramitando em sigilo. O subprocurador Carlos Frederico dos Santos é o responsável por decidir se o caso vai para a Justiça Federal ou se segue a cargo dos tribunais mato-grossenses. Nesse meio tempo, as mesmas entidades fizeram um abaixo-assinado elencando mais de 15 jornalistas perseguidos no Estado e pedindo o afastamento do governador.
“Estão usando a estrutura da Polícia Civil para perseguir jornalistas e opositores políticos. Abrem queixas-crime contra jornalistas que tenham publicado algo, mas que nada têm a ver com o ofício de jornalista, para colocar a máquina da polícia para trabalhar. Querem que saia foto do jornalista sendo buscado em casa, entrando na delegacia, prestando depoimento. Na melhor das hipóteses buscam um assassinato de reputação”, avaliou.
Federalização é “única esperança” diante da falta de republicanismo
"A única esperança da gente é conseguir federalizar esses casos. Aqui há uma subserviência dos órgãos, do Poder Judiciário, do Ministério Público. Há uma dependência muito grande. É promotor viajando com o governador, é promotor alugando imóvel para o governo a preços milionários. Há uma série de casos que mostra uma dependência muito forte que, na prática, impede que esses órgãos ajam com isenção nessas investigações que já são absurdas por si".
“Querem impedir o exercício do jornalismo”
"O que mais chama a atenção é que até o lance da 'fake news' serve para destruir a carreira da pessoa. Agora que pegaram meus celulares as minhas fontes não falam mais comigo. Ninguém está falando comigo no celular ou me ligando, ninguém quer saber de falar comigo porque sabe que pode estar sendo monitorado pela polícia e pelos órgãos de governo. As fontes somem. Não querem mais saber de passar informação para um jornalista que está recebendo a polícia em casa e levando o celular dele, com o risco de as fontes serem reveladas".