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Avá-Guarani: Justiça do Paraná se une ao agronegócio e proíbe doações de alimentos a indígenas

Entenda o processo de retomada de terras ancestrais desse povo indígena e leia depoimento de missionário do Cimi que presenciou ataques de fazendeiros

Imagens da retomada Avá-Guarani no Oeste do Paraná.Créditos: Diedo Pelizzari/Cimi - imagens cedidas à Fórum pelo entrevistado
Escrito en MEIO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE el

As retomadas do povo Avá-Guarani nas adjacências do Tekoha Guaçu-Guavirá, no oeste do Paraná e próximas à fronteira com o Paraguai, receberam novos ataques na última terça-feira (23) com a emissão de múltiplas decisões da Justiça Federal do PR que determinam as reintegrações de posse dos 7 territórios ocupados e proíbem que a Funai faça chegar às comunidades as doações de alimentos e de materiais de construção destinadas aos indígenas. A reportagem obteve cópias das decisões.

Num contexto mais amplo, vemos que a Justiça se uniu ao agronegócio e aos proprietários de terras locais na tentativa de expulsar os Avá-Guarani das áreas ocupadas. No último dia 13 de julho, um sábado, o Tekoha Arapoty foi atacado. Os agressores dispararam suas armas de fogo contra os indígenas e atearam fogo em barracos utilizados como abrigo e no estoque de alimentos da comunidade. Dias depois, na última quarta (17), fazendeiros atearam fogo a área do Tekoha Tatury obrigando os indígenas a fugirem do local e na sexta (19) cercaram o Tekoha Tatarendy, aumentando as tensões.

A Revista Fórum entrevistou dois missionários do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) que atuam na região, Diego Pelizzari e Marina de Oliveira. Eles deram maiores detalhes acerca da reivindicação indígena e da reação dos ruralistas e da Justiça.

“São seis ações de reintegração de posse e duas ou três interdito proibitório. O pessoal não pode mover uma palha, fazer nada no local. O argumento dos fazendeiros é de que os indígenas seriam paraguaios que estão tentando desapropriar as terras de fazendeiros brasileiros”, explicou Marina.

A missionária indigenista critica a Lei 14.701, que estabelece o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, desrespeitando a decisão do Supremo Tribunal Federal de que não há marco temporal previsto na Constituição. Ela defende que a solução para o problema envolve a revogação dessa lei, a demarcação das terras indígenas conforme a Constituição, a indenização justa para os agricultores de boa-fé, e a regularização e reassentamento dos não indígenas. A missionária aponta que o processo de reparação estaria beneficiando os não indígenas em vez dos Avá-Guarani, que deveriam receber o benefício devido. Ela pede que o Supremo julgue a inconstitucionalidade da lei e critica a lentidão do processo judicial, mencionando que os ruralistas já estão preparando novas leis para substituir a 14.701.

O Tekoha Guaçu-Guavira

O Tekoha Guaçu-Guavirá é uma terra identificada e delimitada no ano de 2018. E no mesmo ano a Prefeitura de Guaíra (PR) entrou em uma ação na Justiça Federal do Paraná questionando dos estudos que embasaram a delimitação do território. O juiz então anulou os estudos e determinou que a Funai interrompesse o processo de demarcação.

Quando começa a pandemia, em 2020, a Justiça deu decisão favorável à prefeitura. E a Funai, à época sob a liderança do bolsonarista Marcelo Xavier, acatou a decisão do juiz de primeira instância e editou a pontaria 418/2020, anulando os estudos da terra indígena Guaçu-Guavirá e retirando a terra da sua listagem de terra da Funai.

Em 2022, o Ministério Público fez apenas uma recomendação, pedindo para Marcelo Xavier voltar com a validade dos estudos, mas ele ignorou. Os estudos só voltariam a ter validade depois que trocou o governo e Joenia Wapichana, a nova presidente da Funai, acatou a recomendação do MP.

“Só que por decisão de primeira instância, e pelo fato de a Funai não ter feito a defesa dos indígenas no processo judicial - eles enviaram o ofício para a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, dizendo que não iam recorrer da decisão e não iam fazer a defesa dos Avá-Guarani – o processo ficou paralisado, e aí iniciou-se um processo de discussão com o novo governo, em que se negociava que a Itaipu faria a reparação, com a compra das terras”, conta Marina de Oliveira.

A missionária explica que o processo foi andando e que em dezembro de 2023 foi decidido que o estudo era válido e que a futura Terra Indígena Guaçu-Guavirá teria pouco mais de 24 mil hectares.

“Não dava mais para viver do jeito que estavam vivendo, todos amontoados, sem ter local para plantar. Eram obrigados a viver de cesta básica, e, portanto, quando os estudos foram validados, eles decidiram ocupar os cantinhos do território”, explica Marina.

Essa ocupação dos “cantinhos” são as as chamadas retomadas, a ferramenta de reivindicação de território ancestral para diversos povos indígenas, e não apenas do Brasil. São ocupações de pequenas porções de terras por comunidades ou aldeias – os Tekoha, no caso dos Guarani. Podem estar adjacentes a terras indígenas e servir a um processo de ampliação ou podem estar isoladas. Geralmente são territórios em que os povos foram expulsos nas últimas décadas. No caso dos Avá-Guarani de Guaçu-Guavirá foram feitas duas retomadas ainda em dezembro nas áreas adjacentes ao território, e outras cinco mais recentes, ao longo de 2024, as mesmas que nas últimas semanas têm sido alvos dos ataques dos fazendeiros.

O Tekoha Y’Hovy foi o segundo a ser ocupado em dezembro e logo foi atacado, com queima das motos dos indígenas e também dos seus cachorros na Véspera de Natal.

No início de janeiro, os Guarani do Y’Hovy ocuparam o terreno em frente, que é público e onde funcionava uma área de lazer, que estava abandonada. O local estava dentro da área delimitada para os indígenas, mas não impediu mais um ataque a tiros dos ruralistas, em 10 de janeiro, que deixou quatro pessoas feridas. Depois disso, a Força Nacional foi enviada para o território, onde segue mobilizada.

“Nesse momento houve uma tentativa de pressionar também a Itaipu a resolver o problema fundiário. A proposta dos Guarani dizia que depois que a Funai delimitou a terra e reconheceu o direito tradicional, então a Itaipu poderia pagar as benfeitorias dessas pessoas que estão ali dentro da terra e liberar o território para usufruto dos indígenas, fazendo-o entrar no inventário da União”, explicou Marina.

“Em janeiro, quando teve esse conflito dos tiros, a Comissão Guavirá, ela entrou com ação que trata de reparação com relação a Itaipu, Funai e Incra por violações de direitos, e pediu ao ministro Edson Fachin, que estava em plantão, que suspendesse as reintegrações de posse para que a FUNAI pudesse continuar a regularização da terra. O ministro concordou, no dia 16 de janeiro ele suspendeu as reintegrações de posse e falou pra Funai fazer o estudo e concluir o processo de regularização da terra. Só que esse processo da está com o ministro Dias Toffoli, que julgou abril a decisão do Fachin, votando contrário a ela e sendo seguido por todos os ministros, com exceção do próprio Fachin e de Cármen Lúcia. A decisão acirrou os ânimos novamente, porque a Federação Paranaense de Agricultura começou a comemorar, a CNA entrou com o pedido de Amicos Curiae e o processo do Guaçu-Guavirá permaneceu anulado. Então, esse retrocesso fez com que os Guaranis decidissem fazer novas retomadas – e aí vieram as cinco ocupações de 2024. Eles decidiram fazer esse movimento forçar a Funai e os órgãos a se mexerem sobre a regularização da terra, porque já estão cansados nesse processo de espera”, resumiu Marina.

Os ataques recentes

E foi nesse contexto que ocorreram os recentes ataques. O missionário Diego Pelizzari, que em 13 de julho levava alimentos para um dos tekoha da retomada Avá-Guarani, foi atacado pelos ruralistas.

“Eu já tinha ido com três indígenas na quarta-feira (10), isto é, menos de 48 horas depois que o cacique Isaías e o cacique Aníodo tinham montado os dois acampamentos a cerca de uns 400 metros um do outro, dentro de uma mata naquela terra indígena. Nós fomos logo em seguida, um dia e meio depois que eles fizeram isso, porque já tinham sido cercados pelos fazendeiros da região. Os fazendeiros tinham montado um acampamento a uns 200 metros, 300 talvez, da aldeia do acampamento do cacique Isaías. Entre os dois tinha a posição, meio que protegida, num pequeno mato, da viatura da Força Nacional com dois agentes. Então, nós fomos lá, entramos na roça, uns 300 metros, 400, e descemos até o mato. Os Guarani sempre montam os seus acampamentos onde há fonte de água, obviamente. Na saída, teve um fazendeiro que tentou impedir nossa chegada a estradinha que vai para Guaíra. Mas eu, vendo a caminhonete, consegui desviar, eu fiz tchau e fui embora”, contou.

Mas Diego cometeria um erro crasso: retornaria ao local mais tarde. Ele avisou as lideranças indígenas e as entidades que apoiam os Avá-Guarani de que voltaria. O que se segue, é uma perseguição em plena estrada rural.

“No sábado eu combinei com as lideranças que ia levar mais uma carga de alimentos, cobertores e lonas, às 11 horas da manhã. 15 minutos antes de eu sair de Guaíra, chamei o cacique Isaías, que me garantiu que haveria a escolta da Força Nacional, devido aquilo que aconteceu na quarta. Mas ao nos aproximarmos da entrada, havia uma retroescavadeira cavando uma fossa para impedir a nossa entrada, e uns 20 fazendeiros armados de espingarda, de pau na mão. Nós não atendemos ao chamado de parar o carro. Fomos para a frente, houve três tentativas de nos alcançar, e o terceiro se colocou no meio dessa estradinha da roça, e não tinha como passar por cima. Abri o vidro, ele me reconheceu, e pediu para que eu descesse para conversar. Falei: ‘não vai ser hoje, vai ser outro dia’. E dali que começou a perseguição com as caminhonetes. Primeiro duas, depois três, depois quatro. Eu não sabia onde estava, depois que descobri, depois de uns seis, sete quilômetros, me dei conta que estava próximo da estrada de asfalto. Ali havia um carro, aparece inclusive na gravação que eu fiz [e que a reportagem teve acesso]. Pensávamos que era a polícia, mas era uma segurança particular que tentou nos parar com o braço – ao invés de atravessar o veículo na pista. Mas obviamente um braço não foi suficiente para nos parar. Botei a caminhonete a mais 150 km por hora e consegui despistar eles”, relatou o padre.

Após a perseguição em plena estrada rural, o Padre Diego finalmente chegou a Guaíra, onde entregou as doações à Funai, que os levou em seguida aos indígenas. No entanto, parte dos suprimentos acabou queimado naquele 13 de julho durante o ataque dos fazendeiros.