ENTREVISTA

O caminho da tempestade: meteorologista explica quebra-cabeça climático da tragédia no litoral norte de SP

A Fórum entrevistou Marina Hirota, professora de meteorologia da UFSC, para entender como se formaram as maiores chuvas já registradas no Brasil e que deixaram mais de 60 mortos durante o carnaval

Chuva forte em São Sebastião (SP) em 2020.O caminho da tempestade: meteorologista explica quebra-cabeça climático da tragédia no litoral norte de SPCréditos: Reprodução/Redes Sociais
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As chuvas que atingiram o litoral norte de São Paulo no fim de semana de carnaval, ainda em fevereiro, estiveram entre as mais fortes já registradas no Brasil – a mais volumosa, em Bertioga, teve 600 mm de chuva. As tempestades causaram uma série de tragédias, sobretudo decorrentes de deslizamentos de terras nas encostas da Serra do Mar que ocasionaram desabamentos de residências. Só na Vila do Sahy, em São Sebastião, comunidade localizada em encosta de morro, houve mais de 50 mortos pelos deslizamentos. Em Ubatuba uma menina de 7 anos foi vitimada.

Ainda pensando nesta tragédia e buscando mais elementos para compreendê-la, sobretudo o que teria causado as descomunais tempestades, a Revista Fórum entrevistou Marina Hirota, professora do Departamento de Física da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), que dá aulas de meteorologia para a graduação e ecologia na pós-graduação.

A professora, bastante didática, começou explicando sobre elementos básicos da formação de quaisquer chuvas: é preciso que haja levantamento de ar e vapor d’água em abundância – o que não falta nos litorais do Sul e Sudeste do Brasil. Além disso, também explicou as distintas procedências de chuvas: desde as que se formam localmente trazidas por ventos de direção leste, até aquelas que vêm do sul do continente, trazendo consigo frentes frias e ciclones extratropicais.

“Sobre as chuvas de São Sebastião, o que nós observamos é que aconteceram diversas dinâmicas em paralelo, não exatamente ao mesmo tempo, mas uma reforçando a outra. Uma espécie de sinergia entre três sistemas”, explicou. Segundo foi apurado por ela e seus pares, houve uma convergência dos dois tipos de chuvas na região afetada pela tragédia. No entanto, um terceiro sistema atmosférico, do Nordeste do país, teria impedido a passagem das chuvas rumo ao oceano, mantendo-as estacionadas na região.

“Isso serve como exemplo para que vejamos o quão interligados são os sistemas. Esse vórtice lá no Nordeste, que geralmente tem mais influência sobre o clima de lá, segurou o pequeno ciclone extratropical gerado localmente e a frente fria vinda do sul do continente. No final das contas, choveu tudo no mesmo local”, analisou.

Leia os principais trechos da entrevista a seguir

Marina Hirota é professora do Departamento de Física da UFSC, e leciona para os cursos de graduação em meteorologia e pós-graduação em ecologia. Reprodução/Redes Sociais

Há dois tipos de movimentações atmosféricas que desembocam em chuvas no nosso litoral – sobretudo no sul e sudeste: uma que vem do sul e outra que vem do leste. Como explicar essa dinâmica para o leitor que é completamente leigo no assunto?

Para entendermos como se formam essas chuvas, temos de entender os seus ingredientes principais: vapor d’água e levantamento de ar. Se prestarmos atenção, veremos que as nuvens que mais trazem chuvas, ou seja, as que trazem essas tempestades e chuvas torrenciais, são as que começam bem baixas e vão até o alto da atmosfera terrestre. As chamamos de cúmulos-nimbos. São nuvens aparentemente ‘fofinhas’ que vemos ao alto e longe quando olhamos para o mar, por exemplo.

Basicamente quando temos ar sendo levantado junto com uma grande quantidade de vapor d’água, esse vapor vai condensar nos cúmulos-nimbos, e assim vai se formando essa nuvem profunda, até que a água comece a cair.

Existem dois mecanismos básicos de levantamento de ar. O primeiro é por aquecimento, em que o ar aquece e começa a subir, a depender das condições. O segundo se dá pelo efeito de montanhas, que faz o ar se levantar por oferecer um obstáculo a ele.

As chuvas se formam de leste quando há ventos vindos desta direção – podem vir também do sudeste ou nordeste – que encontram com a Serra do Mar, uma barreira de relevo que faz com que esse ar levante. E é um ar carregado de vapor d’água, que vem do oceano.

É por isso que muita gente chama Ubatuba de “Ubachuva”. Ali a Serra do Mar fica bem pertinho do encontro com o oceano. É comum que se formem muitas chuvas justamente por conta do levantamento de ar que a serra proporciona.

Temos as chuvas que vêm do sul, que não são tempestades locais, ou seja, não se originam com o levantamento de ar da própria região, mas em uma escala maior, apresentando relação com as chamadas frentes frias.

Já as frentes frias vêm do sul, acompanhando o que chamamos de ciclones extratropicais. A gênese dessa chuva envolve uma dinâmica diferente na sua formação. Se formam geralmente mais longe, em regiões mais próximas da Argentina, ou mesmo na própria região central daquele país, e vêm caminhando na direção nordeste, para o oceano Atlântico.

Essas formações passam por nós. O mais comum é que os ciclones não passem sobre o continente, mas pelo oceano. A frente fria associada, ao contrário, é o que geralmente se registra em terra firme. E essa frente fria também traz muitas chuvas. Quando a chuva vem acompanhada das frentes, a temperatura tende a abaixar acentuadamente.

Quem vai muito para o litoral norte de São Paulo – e ali era o quintal da minha casa, sou de São José dos Campos, então sempre ia muito para a região pela proximidade – pode perceber que quanto mais perto do mar, mais chuva vai ter. E na maioria das vezes é aquela chuvinha quente, que é até agradável – ou aquela chuva de fim de tarde que refresca após um dia quente. Pode permanecer ao longo do dia ou em períodos curtos, de manhã cedo e no final da tarde. Essa chuva não vem do sul, não está relacionada a uma massa de ar frio ou a um ciclone extratropical.

A diferença é muito fácil de ser sentida. Essa chuva formada localmente, pelos ventos do leste, geralmente são mais leves e rápidas, e, se está muito calor, causam uma leve sensação de refresco. Já as chuvas que vêm do sul, vão apresentar quedas acentuadas na temperatura e uma agressividade maior, além da ocorrência do chamado vento sul, geralmente mais agressivo.

Entrando nas tempestades que atingiram o litoral de São Paulo, de onde elas vieram? Quais foram os fatores que as levaram para o local onde caiu e com a intensidade que pudemos observar? Que “caminho” podemos dizer que as águas fizeram?

Sobre as chuvas de São Sebastião, o que nós observamos é que aconteceram diversas dinâmicas em paralelo, não exatamente ao mesmo tempo, mas uma reforçando a outra. Uma espécie de sinergia entre três sistemas.

Um deles foi uma frente fria, que baixou as temperaturas no Sul do Brasil e foi subindo. É muito curioso, porque sempre converso com a minha mãe, que está em São Paulo, sobre as chuvas. A chuva passa aqui por Santa Catarina, chove, e só depois que a frente passa, com aquela massa de ar frio, a chuva segue na direção nordeste. Enquanto vai para São Paulo, a massa de ar frio deixa o céu aqui do Sul bem azul, com as nuvens lá no alto, ralinhas. Nesse momento a temperatura cai. Em Florianópolis é quando entra o vento sul. Dias depois essa mesma chuva vai aparecer em São Paulo e no Rio de Janeiro. O contrário também é visto: quando entra o vento nordeste ou leste, as temperaturas podem subir.

Então, tivemos uma frente dessas, e as temperaturas caíram aqui no Sul, enquanto ao mesmo tempo essa frente continuou subindo para o Sudeste. Naturalmente causaria chuvas no Sudeste, mas teve um agravante: ao mesmo tempo em que foi passando, havia uma outra chuva, ou melhor, um pequeno ciclone resultado de uma região de baixa pressão, que se formou no litoral do Paraná e de São Paulo – todos os ciclones estão associados às chuvas.

Esse ciclone que se formou localmente atuou sinergicamente com a frente fria que vinha do sul deixando a chuva mais agressiva. Até este ponto, tudo normal, pois as chuvas seguiriam o seu caminho na direção nordeste. Mas ao invés do caminho que se esperava, que faria chover forte mas que logo em seguida as chuvas seguiriam para o oceano, os dois sistemas acabaram ficando parados por conta de um terceiro.

Esse freio foi dado por um sistema meteorológico presente no Nordeste do Brasil, chamado Vórtice Ciclônico de Altos Níveis, que forçou esses dois sistemas – o ciclone local e a frente fria do sul – a ficarem estacionados no meio do caminho, ou seja, no litoral norte de São Paulo. Ao invés dessa chuva passar, ela ficou acumulada.

Isso serve como exemplo para que vejamos o quão interligados são os sistemas. Esse vórtice lá no nordeste, que geralmente tem mais influência sobre o clima de lá, segurou o pequeno ciclone extratropical gerado localmente e a frente fria vinda do sul do continente. No final das contas, choveu tudo no mesmo local.

Por um lado, é sabido que nesta época do ano o litoral do Sul e do Sudeste, assim como outras regiões do país, recebem fortes tempestades. Por outro lado, também é de conhecimento público que já podemos sentir, de forma geral e em especial nos eventos extremos, os efeitos das mudanças climáticas. Como identificar o que é apenas a estação de chuvas e o que pode ser efeito das mudanças climáticas?

Existem formas de diferenciar o que seria uma condição considerada ‘normal’, dentro de um padrão climático, e o que seria anormal nesse sentido. Do ponto de vista técnico, uma coisa é fato: precisamos melhorar a maneira como diferenciamos e separamos um sinal de evento extremo de uma tempestade comum. Sempre pode haver elementos que estão dentro dos padrões do que é “natural”, e elementos que não estão, ou seja, que tenham relação com as mudanças climáticas antrópicas, causadas pelo ser humano. É preciso ter cautela.

Existem evidências de que os eventos extremos de forma geral, desde secas a períodos de chuvas muito intensas e em diversas escalas de tempo e concentração, estão em tendência de aumento. Imediatamente, sem fazer análise alguma, o que podemos associar é que além do que é natural, teremos a adição de algo que não é natural e está associado a mudanças antrópicas. Sejam mudanças no clima atmosférico com emissão de gases ou as relacionadas ao uso da terra.

Existe também a expectativa de que isso seja mais frequente e intenso. É uma situação muito preocupante, mas mesmo com uma evidência muito forte, ainda é preciso um tempo para ‘batermos o martelo’ com as técnicas que temos disponíveis.

O que comenta sobre possíveis freios a essas mudanças climáticas de forma geral?

Essa é a pergunta de um milhão de dólares: como frear e mitigar o efeito das mudanças climáticas. Bem, é preciso que levemos em consideração que o clima, de maneira geral, tem algo que chamamos ‘inércia’. Significa que os efeitos daquilo que fazemos agora serão sentidos mais adiante.

Desde os anos 90 com o primeiro relatório do IPCC já era sabido o potencial da influência dos gases de efeito estufa. Demoraram décadas até que a gente começasse a sentir esses efeitos, e não apenas os eventos extremos que ocorrem localmente, como também o derretimento de geleiras nos polos que vão afetando todo o planeta em paralelo.

Mesmo que parássemos tudo agora, e zerássemos as emissões de carbono, o desmatamento etc., ainda teria um tempo para o clima global se ajustar. É importante de se dizer isso. As mudanças não ocorrem instantaneamente.

Isto posto, acredito que devemos por em práticas ações que busquem zerar as emissões, e somos capazes disso. Já fizemos nos anos 80 e 90 com a abolição dos CFCs, os gases de spray, e agora a camada de ozônio vem se recuperando.

Dessa vez, os cortes serão um pouco mais incômodos e desafiadores. Teremos que mudar, de maneira global, a forma como se dá a produção da nossa alimentação, vestuário, entre muitas outras coisas, para tentar uma reversão.

Em termos de adaptação, vislumbrados uma mudança que precisará ser implementada em muitos níveis. Os países precisam não apenas formular as melhores políticas públicas para a recuperação ambiental e climática de cada local, como colocá-las em prática. A nível individual, as pessoas precisam ter mais informação e consciência sobre o tema, até para poderem reavaliar hábitos de consumo sem que tenham grandes perdas na qualidade de vida.

Em termos de mitigação, precisamos retirar carbono da atmosfera. E isso só acontecerá com a restauração dos ecossistemas. No caso do litoral do Sul e Sudeste do Brasil, com o reflorestamento da Mata Atlântica. Mas isso não pode ser feito de forma a excluir as pessoas que moram nessas áreas – ou seja, não pensar que vamos repor uma paisagem exatamente igual ao que era um século atrás por exemplo. Temos que olhar o futuro e incluir as populações no processo. O que está sendo estudado atualmente na academia é justamente como fazer isso.