Chipre

A bela ilha do Mediterrâneo que já pertenceu a 12 impérios e hoje é dividida em dois territórios

Sua localização estratégica, entre Europa, Ásia e África, tornou-a um território de disputa ao longo de séculos; hoje, continua a refletir as divisões territoriais e instabilidades políticas de sua formação

Escrito em História el
Mestranda em Ciência Política e bacharel em Relações Econômicas Internacionais pela UFMG, já foi treinee de Ciência e Saúde da Folha de S. Paulo e escreve sobre Ciência e Tecnologia para a Revista Fórum. Tem interesse por temas de geopolítica e economia internacional.
A bela ilha do Mediterrâneo que já pertenceu a 12 impérios e hoje é dividida em dois territórios
Mapa de navegação otomano do Chipre, feito no século XVI. Wikipedia

Uma ilha mediterrânea rodeada por um mar azul cristalino e repleta de sítios arqueológicos que remontam ao Neolítico e a diferentes incorporações de civilizações clássicas, como a grega, guarda ainda hoje uma divisão de jurisdição interna que a transforma em três territórios distintos: a Ilha de Chipre, ao sul da Turquia e a leste do Mediterrâneo, tem uma longa história de indefinições políticas.

Apesar de ser parte da União Europeia, a ilha está localizada no Mediterrâneo Oriental. É justamente sua localização estratégica (um ponto de passagem entre Europa, Ásia e África) que a torna um território de disputa, e foi o que definiu sua múltipla ocupação ao longo dos séculos, sob o domínio de 11 impérios e a influência de um. Cada um deles deixou marcas (arquitetônicas, culturais e políticas) na sua formação.

A história da sucessão de poderes orientais e ocidentais sobre a ilha começa ainda na Antiguidade Clássica.

Entre os séculos VIII e VI a.C., Chipre foi habitada por fenícios e micênicos. Os fenícios, originários do território que hoje é o Líbano, eram mestres da navegação e do comércio, e dominaram o Mediterrâneo entre 1200 e 300 a.C. Em Chipre, estabeleceram feitorias em pontos estratégicos.

Já os micênicos, uma civilização indo-europeia da Idade do Bronze (1600–1100 a.C.), também estabeleceram na ilha colônias e rotas comerciais, nas quais praticavam técnicas avançadas de metalurgia e cerâmica. Enquanto os fenícios ligavam Chipre ao mundo oriental, os micênicos a conectavam à civilização grega. Os "reinos das cidades cipriotas", como eram chamadas as ocupações de culturas distintas na ilha (Salamina, Kition e Pafos eram alguns deles), cresceram em complexidade ao longo do tempo, até a chegada dos assírios, no fim do século VIII a.C.

Sarcófago de Amathus, resquício do domínio fenício em Chipre.
Créditos: Wikipedia

Entre 708 e 669 a.C., o Império Neoassírio, sob o domínio de Sargão II, estendeu uma espécie de controle indireto sobre o território da ilha após ser bem-sucedido em suas campanhas militares no Levante. Apesar disso, não tomou a ilha por completo, mas apenas exigiu o pagamento de tributos dos reinos cipriotas, que continuavam a ter autonomia sobre seus territórios.

No século VII a.C., então, a ilha foi conquistada — desta vez com perda de autonomia — pelo faraó Amásis II, que governou o Egito entre 570 e 526 a.C. (da vigésima sexta dinastia).

O domínio egípcio foi total e integrou a Ilha de Chipre como território marítimo. Governadores instalados localmente supervisionavam a produção de matérias-primas estratégicas, como o cobre, usado pelos egípcios para a produção de ferramentas agrícolas, armas e na arquitetura.

Em 545 a.C., no entanto, a interrupção do domínio egípcio no território veio com sua tomada pelos persas, que derrotaram o Egito na Batalha de Pelusa, travada entre o já fragilizado faraó Psamético III — num momento em que o Egito lutava contra a Babilônia e tentava conter revoltas internas em seu território — e o Império Aquemênida de Cambises II, filho de Ciro, o Grande, que buscava expandir seu império em direção ao Egito. A batalha por Pelusa era também uma disputa pelo acesso ao Egito pelo leste.

Com a vitória de Cambises II na batalha, Chipre passou ao domínio persa, adentrando o período clássico (entre 545 a.C. e 395 d.C.). O governo persa foi estabelecido com um sistema de vassalagem sobre os reinos cipriotas, que mantinham suas lideranças locais, mas eram leais ao Grande Rei persa. A ilha também enviava à Pérsia cobre — seu recurso mais precioso — e madeira.

O período não foi sem tentativas de se esquivar do poder persa: em 499 a.C., explodiram as Revoltas Jônicas, rebeliões de cidades gregas da Jônia, na costa turca, contra os persas, das quais Chipre participou ativamente. A ilha se uniu à revolta dos gregos e, durante a Batalha de Salamina, que opôs cipriotas e persas em 498 a.C. (os primeiros liderados por Onésilo de Salamina), recebeu auxílio de Atenas e Erétria, que enviaram navios para apoiar os rebeldes. Os gregos e cipriotas não saíram vitoriosos, entretanto, e a revolta foi contida com a traição do rei de Soloi, que entregou informações privilegiadas aos persas. A resistência cipriota terminou com a morte de Onésilo em combate.

No período helenístico, entre 332 e 323 a.C., Chipre passou ao domínio de Alexandre, o Grande, que derrotou os persas na Batalha de Isso. Os cipriotas apoiaram os esforços de Alexandre contra a Pérsia, fornecendo 120 navios para ajudá-lo na conquista de Tiro, uma cidade fenícia fortificada que resistia ao controle dos macedônios. Essa ajuda foi crucial para a vitória e determinou a integração de Chipre ao império de Alexandre, que a transformou em base naval para suas campanhas sobre o Egito e a Mesopotâmia.

Tapeçaria mostra Alexandre, o Grande recebendo a submissão do rei do Chipre. 
???Créditos: Belgian School / Meisterdrucke

Esse período envolveu, além disso, transformações profundas nas bases culturais da ilha, sob a influência de elementos helenísticos e greco-macedônicos. O grego koiné tornou-se sua língua oficial (em substituição aos dialetos locais e ao fenício), e deuses gregos (como Zeus e Afrodite) foram incorporados de maneira sincrética à sua religiosidade.

Até hoje, antigos teatros e templos de estilo grego permanecem como sítios da cultura clássica em Chipre, como o santuário de Afrodite em Palepafos, hoje um sítio arqueológico tornado Patrimônio Mundial da UNESCO. 

Mapa do Santuário de Afrodite em Palepafos, no Chipre.
Créditos: Wikipedia

Após a morte de Alexandre, em 323 a.C., Chipre entrou em novo período de disputas. Além das lideranças locais deixadas pelo domínio alexandrino, os diádocos — generais que lutavam entre si pelo controle do vasto império deixado por ele — envolveram a ilha em suas contendas.

E foi para os egípcios que ela retornou: em 294 a.C., Ptolemeu X Alexandre I, filho de Cleópatra III, que governou entre 305 e 285 a.C., conquistou a ilha e iniciou um domínio que duraria mais de 200 anos.

A partir de então, a ilha passou a ser governada por um estratego, general indicado pelo faraó, e Pafos tornou-se seu centro administrativo. A exploração de cobre e madeira para abastecer o Egito prosseguiu, somando-se à produção de vinho, azeite e cerâmica, exportados ao Mediterrâneo.

Outras revoltas vieram, como a de 312 a.C., quando um dos reis de Chipre, Nicocreonte de Salamina, levantou-se contra o domínio de Ptolemeu (mas acabou derrotado).

Disputas territoriais pelo controle de Chipre seguiram ao longo dos séculos III e II a.C., principalmente entre Ptolomeus e Selêucidas; mas, em 58 a.C., a ilha foi anexada por Roma e adicionada à sua província de Cilícia, ao sul da Anatólia.

Em 22 a.C., o imperador romano Augusto a tornou uma província senatorial separada, e enviou um procônsul para governá-la. O porto de Pafos virou, em Chipre, um centro de intermediação comercial para Roma no Oriente, e a ilha ganhou construções típicas do período romano, como estradas, aquedutos e teatros (como o Teatro de Kourion).

Mosaico do período romano em Chipre. 
Créditos: Cyprus Tourism Organisation. 

Entre 45 e 49 d.C., além disso, após receber uma visita de São Paulo, que conseguiu converter o procônsul romano da ilha ao cristianismo, o Chipre se tornou um dos primeiros territórios cristianizados de Roma. O episódio é descrito na Bíblia, no livro de Atos, versículos 13:4-12. 

Mural de influência cristã no Chipre. 
Créditos: Wikipedia

No século III, uma crise — causada sobretudo por invasões de piratas e vários terremotos que assolaram a região à época — levou a uma nova transição de poder; e, no ano 395 d.C., a ilha passou ao domínio do Império Bizantino (sob o qual permaneceu até 1191).

Sob os bizantinos, Chipre era governada por um estratego, general encarregado por Constantinopla. Os ataques árabes à região começaram por volta de 659, e, em 688, Chipre tornou-se um domínio bizantino-árabe, que pagava impostos a ambos os impérios.

Só em 965 a ilha foi restaurada ao controle total do Império Bizantino, sob o imperador Nicéforo II Focas.

Depois, com o advento das Cruzadas, Chipre foi conquistada por Ricardo Coração de Leão em 1191 e vendida aos Templários católicos, que a entregaram à dinastia de Gui de Lusignan.

A ilha foi reconfigurada sob um sistema feudal de nobreza composta por francos, enquanto os gregos ortodoxos tornaram-se seus vassalos. A arquitetura cipriota passou a incorporar o estilo de mais esse domínio, num sincretismo entre a tradição greco-helenística e a arquitetura medieval e gótica europeia.

A queda da dinastia ocorreu em 1489, quando a última rainha de Chipre, Catarina Cornaro, cedeu o domínio do território — de maneira forçada — a Veneza, cujo comércio em ascensão se beneficiava da rota mediterrânea.

"A chegada de Catarina Cornaro em Veneza", pintura de  Antonio Vassillacchi. 
Créditos: Fine Art

Em 1571, após um cerco de 11 meses, o domínio veneziano foi contestado pelo Império Otomano, que tomou a ilha, iniciando um longo período de domínio otomano, encerrado apenas em 1878, com a tomada pelos britânicos na instauração do Tratado de Berlim.

Mapa de Chipre publicado por Willem Jansz em 1635, derivado de um exemplar do século XVI feito por Giacomo Gastaldi. Chipre foi conquistada em 1570 pelo exército turco da República de Veneza.
Créditos: Wikipedia

A independência territorial de Chipre ocorreu em 1960, embora não tenha eliminado as tensões internas entre as influências grega e turca da região, nem encerrado as disputas pelo controle da ilha.

Em 1974, o governo independente do Chipre sofreu um golpe de governistas pró-Grécia, o que levou à invasão pelos turcos e à divisão atual da ilha, hoje formada pela República de Chipre ao sul (de origem grega e membro da União Europeia), pela República Turca de Chipre do Norte (sem reconhecimento internacional) e por uma zona de interferência das Nações Unidas, transformada em área neutra (Buffer Zone), que se estende por 180 km entre o norte e o sul (cerca de 3% do território total) e separa as disputas territoriais internas.

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