Relíquia

Carta preservada escrita por Shakespeare desafia crenças sobre sua vida pessoal

A carta, escrita entre 1600 e 1610 e endereçada à esposa, Anne Hathaway, traz detalhes curiosos sobre a vida privada de Shakespeare

Escrito em História el
Mestranda em Ciência Política e bacharel em Relações Econômicas Internacionais pela UFMG, já foi treinee de Ciência e Saúde da Folha de S. Paulo e escreve sobre Ciência e Tecnologia para a Revista Fórum. Tem interesse por temas de geopolítica e economia internacional.
Carta preservada escrita por Shakespeare desafia crenças sobre sua vida pessoal
William Shakespeare. MET - Divulgação

Uma carta bem preservada, escrita por William Shakespeare e endereçada à “boa senhora Shakespeare”, sua esposa Anne Hathaway, foi recentemente reexaminada pelo historiador britânico Matthew Steggle, professor do Departamento de Inglês da Universidade de Bristol. Embora descoberta originalmente em 1978, o documento passou anos sem a devida atenção acadêmica, e agora, com novos métodos de análise e uma nova perspectiva de sua autenticidade e conteúdo, a carta desafia uma antiga concepção acerca da vida pessoal de Shakespeare: os detalhes da sua misteriosa relação conjugal.

Durante séculos, a figura de Anne Hathaway foi tratada como um aspecto enigmático da vida do autor, que não escrevia muito a respeito da esposa — ou para ela. Shakespeare, ao que se sabe, passou a maior parte de sua carreira em Londres, enquanto Anne permaneceu em Stratford-upon-Avon, onde criava os filhos do casal — Susanna, de quem estava grávida antes de se casar com Shakespeare, em 1582, quando ele tinha 18 anos e ela, 26; e os gêmeos Hamnet e Judith.

A distância geográfica, somada à escassez de referências diretas à esposa em sua obra, contribuíram para a narrativa de um casamento marcado pela separação física e emocional.

Essa hipótese ganhou força com a leitura de seu testamento, no qual Shakespeare deixou a Anne a “segunda melhor cama” da casa — cláusula que foi interpretada por muitos como um gesto frio ou desdenhoso. Além disso, Shakespeare costumava retratar em suas peças uma visão frequentemente negativa do matrimônio, com maridos ciumentos, traições conjugais e desilusões românticas.

Contudo, a carta recém-analisada por Steggle desafia interpretações estabelecidas. Escrita entre os anos 1600 e 1610 — período em que se supunha que o casal estivesse vivendo em cidades diferentes —, o documento sugere que Shakespeare pode ter passado mais tempo ao lado de Anne do que se imaginava. Detalhes internos da carta, como referências geográficas e nomes de conhecidos comuns ao casal, indicam que ambos talvez compartilhassem residência em Londres nesse período, contrariando décadas de especulação biográfica.

Fragmento da carta escrita por Shakespeare entre 1600 e 1610. Créditos: Hereford Cathedral e Hereford Mappa Mundi Trust / divulgação

O conteúdo da carta é, por si só, curioso: Shakespeare parece estar negando o pagamento de "pensão" a um menino órfão chamado John Butts. Ele solicita, na carta, que Anne Hathaway faça o pagamento. A maneira como se refere a ela — “boa senhora Shakespeare” — parece formal, o que talvez sugira uma parceria mais funcional, talvez mais respeitosa do que apaixonada.

Segundo registros históricos analisados por Steggle, existia, de fato, um John Butts vivendo na Inglaterra elisabetana naquela época: um menino órfão de pai, que se encaixa no perfil descrito na carta. Ele teria sido um jovem aprendiz, possivelmente vinculado a alguma guilda artesanal, para quem Shakespeare deveria prover auxílio. O gesto de transferir essa responsabilidade à esposa pode ser lido de várias maneiras. Seria negligência, confiança, ou talvez o sinal de uma divisão prática das obrigações domésticas e financeiras entre os dois?

No verso da carta, além disso, parece haver uma breve resposta atribuída à própria Anne Hathaway. Caso se confirme autêntico, esse seria o primeiro registro manuscrito conhecido da esposa de Shakespeare.

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