ELEIÇÕES DOS EUA

Como a luta livre ajudou a moldar o trumpismo

Série documental da Netflix explora a trajetória controversa de Vince McMahon, magnata amigo de Donald Trump que transformou a indústria do entretenimento

Créditos: Reprodução WWE - Donald Trump, “Stone Cold” Steve Austin e Vince McMahon em uma coletiva de imprensa antes da Wrestlemania 23, em 2007.
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A série documental "Mr. McMahon", disponível na Netflix, explora a vida e a carreira de Vince McMahon, o magnata responsável por transformar a luta livre (wrestling) profissional em um fenômeno global através da World Wrestling Entertainment (WWE). 

Dividida em seis episódios, cada um com cerca de uma hora de duração, a minissérie conduziu mais de 200 horas de entrevistas para trazer uma visão abrangente sobre essa figura polêmica dos Estados Unidos. Entre os entrevistados estão Dwayne “The Rock” Johnson, John Cena e Hulk Hogan. 

Lançada em setembro deste ano, em plena campanha eleitoral para a presidência dos EUA, a série está entre as dez mais assistidas na plataforma do país. O documentário mostra o impacto cultural que McMahon teve no cenário político e o vínculo estreito com Donald Trump, um aliado de longa data. 

Caldeirão cultural de onde emergiu o trumpismo

A série estabelece uma conexão entre a luta livre profissional e a base de apoio a Trump nos EUA através de uma relação geracional, na qual a cultura do wrestling, particularmente a WWE, ajudou a moldar uma mentalidade populista e anti-establishment que ressoou com o eleitorado do ex-presidente e candidato republicano à Casa Branca.

A WWE, sob o comando de McMahon, cresceu exponencialmente nas décadas de 1980 e 1990, quando o wrestling se tornou um espetáculo de entretenimento em massa. A criação de personagens como Hulk Hogan, Stone Cold Steve Austin e The Rock, incorporava temas de individualismo, machismo e combate contra uma "autoridade opressiva". 

Esses heróis do wrestling eram frequentemente retratados como defensores do "homem comum" contra as elites ou vilões corporativos, criando uma narrativa anti-establishment que ecoava a insatisfação popular com o sistema.

O fim da Guerra Fria

Com o fim da Guerra Fria em 1991, os EUA emergiram como a principal superpotência mundial e consolidaram a hegemonia do capitalismo de mercado e da democracia liberal. 

Durante as décadas de 1980 e 1990, sob as administrações de Ronald Reagan, George H. W. Bush e Bill Clinton, a economia estadunidense experimentou um crescimento significativo impulsionado pela desregulamentação, pela globalização e pela revolução digital.

O período pós-Guerra Fria também intensificou a globalização econômica, o que levou à transferência de muitas indústrias dos EUA para países de mão de obra mais barata, como China e México. Isso gerou um esvaziamento da indústria manufatureira, especialmente no chamado "Cinturão da Ferrugem" (Rust Belt). 

Embora a economia do país tenha crescido em termos globais, a desigualdade de renda também aumentou significativamente. As classes trabalhadoras e médias sofreram com o fechamento de fábricas e a erosão de empregos estáveis e bem remunerados.

Na indústria do entretenimento, uma das respostas à crescente desigualdade foi encampada pela "Attitude Era" da WWE, que durou aproximadamente de 1997 a 2002, e foi marcada por um conteúdo mais violento, sexualizado e irreverente.

Esse aspecto ressoava com uma base de fãs que se identificava com o antagonismo às elites e ao establishment, algo que seria canalizado na política anos depois com a ascensão de Trump, que personificou essa narrativa como o "outsider" que combate as elites políticas de Washington e ecoou a postura desafiadora dos heróis da luta livre.

Stone Cold Steve Austin, por exemplo, tornou-se uma figura icônica ao representar a revolta contra seu chefe, Vince McMahon, durante a ''Attitude Era". Essa dinâmica entre o trabalhador oprimido e o chefe corporativo reforçou valores de desconfiança em relação às autoridades e empoderamento do cidadão comum, que mais tarde ressoariam com os eleitores de Trump.

Guerra ao Terror e Trump outsider

O ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 marcou uma virada histórica, que impactou profundamente o senso de segurança nacional e a economia global. A guerra ao terror, as intervenções militares no Afeganistão e no Iraque, e o aumento do poder estatal sob a administração de George W. Bush geraram novas tensões sociais e políticas. 

O período seguinte também foi marcado pela crise financeira de 2008, uma das piores crises econômicas desde a Grande Depressão de 1929, que resultou em desemprego em massa, perda de moradias e um questionamento profundo sobre os fundamentos do capitalismo financeiro.

Ao longo dos turbulentos anos 2000, em plena era do reality show e durante a construção de Trump como um "outsider", o ex-presidente, conhecido por sua carreira no ramo imobiliário e pelo reality show "The Apprentice" (O Aprendiz), apareceu em eventos de wrestling, como a WrestleMania de 2007 - evento anual de luta livre - em que protagonizou um embate simbólico no ringue contra McMahon. 

Essa exposição no mundo do wrestling solidificou a imagem de Trump como uma figura pública que não tinha medo de entrar em combate, seja literal ou figurativo. 

Para muitos fãs de luta livre, o candidato republicano representava um "outsider", uma figura de poder não convencional que estava disposta a desafiar as elites políticas e empresariais – uma narrativa semelhante às histórias contadas nos ringues.

O público do wrestling e a base populista

O público do wrestling, composto majoritariamente por homens brancos de classe trabalhadora, muitos deles de regiões que sofreram com a desindustrialização, formou um elo cultural que se traduziu em apoio a Trump. 

A luta livre profissional há décadas explora o teatro de heróis e vilões, onde questões sociais e políticas muitas vezes são simplificadas em confrontos de bem contra mal. Essa simplificação, aliada a um sentimento de perda de status ou representação, foi canalizada na política com a campanha de Trump, que prometia “drenar o pântano” e devolver o poder ao povo.

A ideia de que Trump era o “campeão do povo” contra as elites corruptas ecoava diretamente as narrativas populares no wrestling, onde os “heróis” frequentemente lutam contra os “vilões” autoritários e corporativos. 

O wrestling ajudou a criar uma mentalidade de resistência e identificação com figuras que prometiam mudança radical, e Trump capitalizou essa narrativa durante sua campanha em 2016 e também nesta de 2024.

Papel da WWE na construção do trumpismo

Vince McMahon, dono da WWE, desempenhou um papel central na formatação do discurso e da estética da "Attitude Era". Embora a WWE fosse voltada para o entretenimento, McMahon sempre manteve uma proximidade com a direita política. 

Ele e sua esposa, Linda McMahon, que mais tarde se tornaria chefe da Administração de Pequenas Empresas no governo Trump, têm fortes laços com o Partido Republicano, tendo doado milhões para campanhas. 

A performance ultrajante da WWE, muitas vezes, canalizava os sentimentos de frustração de um público operário branco, frustrado com as mudanças sociais e econômicas.

A WWE, especialmente na "Attitude Era", serviu como uma válvula de escape para ansiedades sociais, muitas vezes exacerbando temas de masculinidade, violência e conflito de classes. 

Essa fase contribuiu para preparar o terreno cultural que permitiu a ascensão de uma política de confronto e espetáculo como a do trumpismo, sendo uma manifestação mais ampla de descontentamento social e identitário nos EUA.

Esses temas ressoaram na política dos EUA com a ascensão do populismo de direita, que se apoiou fortemente em uma identidade branca e masculina ameaçada pelas transformações sociais. 

Os eventos da luta livre, com sua divisão clara entre "heróis" e "vilões", encontram reflexo no discurso político de Trump, que também se posicionava como um "salvador" contra inimigos da nação, sejam eles a mídia, imigrantes ou elites políticas.

Macho alfa

Tanto McMahon quanto Trump cultivam uma imagem de "macho alfa", na qual são vistos como figuras dominantes e inabaláveis ao rejeitar qualquer aparência de fraqueza.

Na WWE, McMahon frequentemente se envolvia em brigas físicas, mesmo com lutadores muito mais fortes, sempre em busca de demonstrar sua superioridade e poder.

Já Trump construiu sua imagem em torno de sua autossuficiência, riqueza, e sua habilidade de derrotar adversários, muitas vezes fazendo uso de uma retórica hipermasculina para reafirmar sua virilidade e força.

A teatralidade é central para as personalidades de ambos. Na WWE, McMahon sempre foi deliberadamente exagerado, com expressões faciais dramáticas, gestos amplos e um comportamento muitas vezes cômico, mas intimidante. 

Essa teatralidade é espelhada em Trump, que durante seus comícios e discursos usa retórica inflamada, expressões faciais dramáticas e gestos, como suas famosas mãos no ar, para criar um efeito visual e emocional. Ambos entendem o poder da performance pública para influenciar suas audiências.

Ambos adotam uma postura de defensores dos "verdadeiros estadunidenses", uma narrativa que ressoa especialmente com a classe trabalhadora branca nos EUA. 

McMahon muitas vezes moldava seu personagem como o protetor dos interesses corporativos e da “ordem” contra figuras que desafiam a autoridade, como "Stone Cold" Steve Austin. 

Trump, por sua vez, se posiciona como o protetor dos estadunidenses "esquecidos" com a promessa de restaurar a grandeza dos EUA para a classe trabalhadora e enfrentar o establishment político e midiático que, segundo ele, traiu o país.

Predadores sexuais

Tanto Mc Mahon e Trump também são conhecidos por estarem no centro de escândalos em que são acusados de assédio sexual

McMahon enfrentou diversas acusações de assédio sexual ao longo de sua carreira, especialmente a partir de 2022, quando surgiram relatos de que ele teria pago milhões de dólares a várias mulheres para silenciar alegações de má conduta sexual. 

O Wall Street Journal revelou que, durante 16 anos, o ex-CEO da WWE pagou mais de US$ 12 milhões (R$ 65 milhões) para calar quatro mulheres e reprimir as alegações de má conduta sexual. A investigação, inclusive, forçou o empresário para aposentadoria.

Trump também enfrentou múltiplas alegações de assédio sexual e má conduta ao longo de sua carreira, especialmente durante a campanha presidencial de 2016, quando o famoso vídeo do "Access Hollywood" veio à tona, no qual ele fez comentários depreciativos sobre mulheres.

Mais de uma dúzia de mulheres acusaram Trump de comportamento inadequado e assédio sexual ao longo dos anos. No entanto, assim como McMahon, Trump negou as acusações, e seus apoiadores o defenderam, mantendo sua popularidade intacta entre uma parte significativa de seu eleitorado.

Machismo na luta livre e no trumpismo

O machismo na luta livre profissional tem uma longa história, muitas vezes manifestado por meio da objetificação e subvalorização das mulheres no esporte.

Na WWE, por exemplo, as lutadoras foram tradicionalmente vistas como atrações secundárias ou hipersexualizadas, com menos destaque e respeito em comparação aos lutadores masculinos.

Esse cenário só começou a mudar com o movimento de empoderamento feminino no wrestling na última década, mas resquícios de sexismo ainda são visíveis.

Muito semelhante à atuação política de Trump, marcada pelo machismo e pela masculinidade tóxica que emergem em suas retóricas e atitudes públicas e nos frequentes ataques contra adversárias políticas.

O ex-presidente frequentemente utiliza uma linguagem desdenhosa e sexista contra mulheres, tanto no contexto político quanto pessoal.

Assim como no wrestling, onde o poder e a força são frequentemente usados como mecanismos de dominação, a política de Trump reflete essa postura de masculinidade exacerbada, alimentada pela subjugação e desvalorização das figuras femininas.

Trumpismo como Wrestling Político

A relação entre a luta livre profissional e a ascensão da extrema direita e do trumpismo nos Estados Unidos envolve uma convergência de narrativas culturais, performatividade política e a construção de identidades nacionais em torno de figuras e discursos polarizadores.

A estética de Trump na política – seus discursos incendiários, sua abordagem combativa e o uso de slogans simplificados como "Make America Great Again" – também reflete o estilo teatral e provocador do wrestling profissional. 

O ex-presidente usa uma linguagem acessível e dramática, frequentemente vista nos eventos da WWE, para mobilizar seu público, semelhante ao modo como os lutadores se comunicam diretamente com seus fãs.

Nesta campanha de 2024, Trump usa táticas semelhantes às que adotou no mundo do wrestling ao empregar a mesma teatralidade e provocação característica de suas aparições na WrestleMania. 

Ele rotineiramente se refere à vice-presidenta e candidata democrata à Presidência, Kamala Harris, com termos desdenhosos e exagerados e a retrata como uma figura fraca e incompetente, uma "vilã" nos moldes do wrestling político. 

Trump tem feito vários ataques contra Harris desde que ela foi indicada como vice de Joe Biden e durante essa campanha de 2024. 

O ex-presidente frequentemente caracteriza Harris como inadequada para a liderança ao sugerir que ela é incapaz de lidar com as demandas do cargo. Também a acusa de defender políticas socialistas que, segundo ele, destruiriam a economia dos EUA.

Trump já insinuou dúvidas sobre a elegibilidade de Harris devido às suas origens imigrantes, a chamou de desagradável em debates e interações públicas, um termo que usou contra várias mulheres na política; e já sugeriu que, caso Harris assuma a Presidência, ela seria um desastre para o país.

Assim como na WWE, Trump adota uma postura de herói "outsider" para enfrentar inimigos "vilanescos" em uma narrativa simplificada de bem contra o mal, o que ressoa com eleitores que rejeitam o establishment.

Na era Trump, a política dos EUA se transformou em um ringue ao incorporar elementos da luta livre com uma abordagem teatral e confrontativa e uma estratégia de comunicação que mobiliza emoções intensas e alimenta sua base de apoiadores. 

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