Em meio à crescente disputa por supremacia tecnológica global, o embaixador do Reino Unido nos Estados Unidos, Peter Mandelson, defendeu nesta terça-feira (27) uma aliança transatlântica com foco em inteligência artificial (IA) para conter o avanço da China.
Durante evento no Atlantic Council, em Washington, o diplomata britânico afirmou que Pequim representa uma ameaça direta à liderança tecnológica do Ocidente.
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“Não há nada neste mundo que eu tema mais do que a China vencendo a corrida pela supremacia tecnológica”, declarou.
Mandelson argumentou que Reino Unido e Estados Unidos são as únicas nações ocidentais com ecossistemas tecnológicos trilionários e que uma colaboração estreita entre ambos é essencial para impulsionar os avanços científicos do século XXI, especialmente no campo da IA.
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A resposta chinesa veio no dia seguinte. Em coletiva de imprensa realizada nesta quarta-feira (28) no Ministério das Relações Exteriores da China, a porta-voz Mao Ning rebateu a declaração e defendeu uma postura oposta à adotada por Londres.
Ela destacou que a China acredita que apenas com abertura e cooperação é possível alcançar melhores perspectivas para a inovação e o desenvolvimento.
“A China valoriza os intercâmbios internacionais em inovação científica e tecnológica. Todos os países devem ter acesso aos benefícios da inovação científica e tecnológica”, afirmou.
Visões opostas de mundo
A declaração do diplomata britânico e a pronta resposta chinesa evidenciam não apenas um embate retórico, mas também o contraste entre dois modelos de política tecnológica que refletem visões distintas sobre o papel da inovação na nova ordem mundial em construção.
De um lado, a China adota um modelo autônomo, centralizado e ambicioso, no qual o Estado desempenha um papel estratégico e direto na formulação e execução das políticas de inovação. Trata-se de um projeto tecnológico com claros contornos geopolíticos, que busca consolidar soberania, disputar padrões globais e ampliar sua influência nos setores-chave do futuro — como inteligência artificial, semicondutores e infraestrutura digital.
Do outro, o Reino Unido atua como elo da coalizão ocidental, combinando um ecossistema de inovação aberto e descentralizado com crescente preocupação em torno da segurança nacional e da soberania digital. A postura britânica visa fortalecer parcerias com os Estados Unidos e outros aliados ocidentais, posicionando-se como articulador de uma resposta coletiva ao avanço tecnológico chinês.
Mais do que diferenças administrativas, esses modelos revelam projetos distintos de mundo: um orientado pela lógica da autonomia estratégica e da multipolaridade; o outro, pela preservação da hegemonia tecnológica ocidental sob valores liberais e normativos.
Quem é Peter Mandelson
Peter Mandelson é uma das figuras mais influentes da política britânica nas últimas décadas. Ligado ao Partido Trabalhista, foi estrategista central do "Novo Trabalhismo" nos anos 1990, durante a liderança de Tony Blair (1997–2007), e ocupou cargos de destaque, como ministro do Comércio e comissário europeu.
Desde 2008, Mandelson detém o título de Barão Mandelson de Foy, que lhe garante assento vitalício na Câmara dos Lordes — a câmara alta do Parlamento do Reino Unido. Como lord vitalício, participa dos processos legislativos e dos debates políticos com função consultiva e revisora. Diferente dos títulos hereditários, sua nomeação foi uma honraria concedida por mérito, refletindo seu peso político.
Além de sua trajetória partidária, Mandelson continua a atuar como voz ativa nos debates sobre geopolítica, tecnologia e relações internacionais, sendo uma ponte entre a política britânica e o cenário global.
Encontro entre Xi Jinping e Keir Starmer no Brasil
Em 18 de novembro de 2024, o presidente da China, Xi Jinping, se reuniu com o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, à margem da Cúpula do G20 no Rio de Janeiro. No encontro, Xi destacou que, apesar das diferenças históricas e culturais entre os dois países, China e Reino Unido compartilham interesses comuns e responsabilidades globais como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e grandes economias mundiais.
Xi defendeu uma relação baseada em respeito mútuo, abertura e cooperação, com foco em benefícios compartilhados. Segundo ele, há amplo espaço para ampliar parcerias em áreas como comércio, energia limpa, finanças, saúde e bem-estar social. Também ressaltou a importância da confiança política e da governança global da inteligência artificial.
Keir Starmer, por sua vez, afirmou que uma relação sólida e duradoura com a China é essencial para o Reino Unido e para o mundo. Ele manifestou interesse em ampliar o diálogo e a cooperação em temas como economia, ciência, educação e mudanças climáticas, sempre com base no respeito e na transparência. Ambos reafirmaram o compromisso com o multilateralismo e a busca por soluções pacíficas para conflitos regionais.
Reino Unido é ator secundário
Apesar da fala do embaixador britânico em Washington, para a China o país não tem tanta relevância. O vice-presidente do Center for China and Globalization (CGC), Victor Gao, afirmou que o Reino Unido não é visto por Pequim como um adversário estratégico, tampouco como parte central da disputa por hegemonia tecnológica e geopolítica entre China e Estados Unidos.
Ex-tradutor de Deng Xiaoping e figura influente nos debates sobre diplomacia chinesa, Gao declarou em entrevista à emissora britânica LBC, em setembro de 2023, que, do ponto de vista chinês, o Reino Unido “não é um rival, não é um competidor, não é um inimigo, não é um adversário”.
A declaração reflete a percepção oficial da China de que Londres é uma nação relevante, mas com papel limitado nas grandes disputas estratégicas do século XXI. Gao comentou ainda sobre a postura britânica diante da ascensão chinesa e fez uma crítica direta à autopercepção do Reino Unido no cenário internacional.
“O governo britânico não deve superestimar seu impacto no cenário global”, disse.
Assista (em inglês)
As declarações de Victor Gao sugerem que, embora o Reino Unido mantenha uma aliança estratégica com os Estados Unidos e atue em áreas como inteligência, defesa e regulação tecnológica, a China o enxerga como um ator secundário em um tabuleiro dominado pela rivalidade entre as duas maiores economias do mundo.
China ascende, Reino Unido perde relevância
A ascensão da China e a decadência relativa do Reino Unido representam dois caminhos opostos que ajudam a explicar as transformações do cenário geopolítico atual.
De um lado, está um país que, há poucas décadas, vivia sob ocupação estrangeira e extrema pobreza, e que hoje disputa a liderança global com os Estados Unidos. Do outro, a antiga potência imperial britânica, que já dominou vastos territórios e liderou a economia mundial, mas que hoje atua como coadjuvante no sistema internacional.
No início do século XX, a China era uma nação fragmentada, enfraquecida por guerras e com status de semicolônia, dominada por potências estrangeiras. O Reino Unido, por sua vez, vivia o auge de seu império, com colônias nos quatro cantos do mundo e uma economia industrial poderosa.
Enquanto a China passou por uma revolução comunista em 1949 e iniciou reformas econômicas profundas em 1978, o Reino Unido começou a perder protagonismo após as duas guerras mundiais e com o processo de descolonização.
A virada chinesa começou com as reformas de Deng Xiaoping, que abriram espaço para o mercado e os investimentos estrangeiros, mas mantiveram o controle estatal sobre setores estratégicos. O país cresceu a taxas altíssimas por mais de três décadas, ingressou na Organização Mundial do Comércio em 2001 e se tornou a "fábrica do mundo". Hoje, é a segunda maior economia global em termos nominais e a maior em paridade de poder de compra. Lidera setores como exportações, infraestrutura tecnológica e produção industrial, e desafia abertamente a hegemonia dos EUA.
Enquanto isso, o Reino Unido enfrentou o desgaste imperial, perdeu suas colônias — a começar pela Índia, em 1947 — e teve seu declínio simbolizado pela crise do Canal de Suez, em 1956, quando precisou recuar diante da pressão dos Estados Unidos. Mais recentemente, o Brexit enfraqueceu ainda mais sua influência, afastando o país do mercado europeu. Atualmente, o Reino Unido mantém relevância diplomática, cultural e acadêmica, mas sua economia é menor que a de Alemanha, Japão, China e EUA, e sua capacidade de influência global é limitada.
Na disputa por quem define as regras da ordem internacional, a China aposta em um modelo com forte presença estatal e ambições geopolíticas, propondo um mundo multipolar e menos dependente do Ocidente. O Reino Unido, por sua vez, mantém-se fiel à ordem liberal liderada pelos Estados Unidos e pela OTAN, com ênfase na regulação, na inovação aberta e em alianças estratégicas.
Faz todo o sentido, portanto, o temor de Lord Mandelson: seu país, que já foi um império global, passou a ocupar um papel secundário, enquanto a China avança com um projeto político que desafia a hegemonia ocidental.