CHINA EM FOCO

China reage a temor do Reino Unido sobre avanço tecnológico

Pequim defende cooperação internacional em inovação, enquanto Londres aposta em aliança com Washington para conter crescimento chinês

Pequim defende cooperação internacional em inovação, enquanto Londres aposta em aliança com Washington para conter crescimento chinês. Xi Jinping, presidente chinês, e Keir Starmer, primeiro-ministro britânico, se encontram durante 19ª Cúpula de Líderes do G20 no Rio de Janeiro em novembro de 2024.
China reage a temor do Reino Unido sobre avanço tecnológico.Pequim defende cooperação internacional em inovação, enquanto Londres aposta em aliança com Washington para conter crescimento chinês. Xi Jinping, presidente chinês, e Keir Starmer, primeiro-ministro britânico, se encontram durante 19ª Cúpula de Líderes do G20 no Rio de Janeiro em novembro de 2024.Créditos: Xinhua
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Em meio à crescente disputa por supremacia tecnológica global, o embaixador do Reino Unido nos Estados Unidos, Peter Mandelson, defendeu nesta terça-feira (27) uma aliança transatlântica com foco em inteligência artificial (IA) para conter o avanço da China.

Durante evento no Atlantic Council, em Washington, o diplomata britânico afirmou que Pequim representa uma ameaça direta à liderança tecnológica do Ocidente.

“Não há nada neste mundo que eu tema mais do que a China vencendo a corrida pela supremacia tecnológica”, declarou.

Mandelson argumentou que Reino Unido e Estados Unidos são as únicas nações ocidentais com ecossistemas tecnológicos trilionários e que uma colaboração estreita entre ambos é essencial para impulsionar os avanços científicos do século XXI, especialmente no campo da IA. 

A resposta chinesa veio no dia seguinte. Em coletiva de imprensa realizada nesta quarta-feira (28) no Ministério das Relações Exteriores da China, a porta-voz Mao Ning rebateu a declaração e defendeu uma postura oposta à adotada por Londres.

Ela destacou que a China acredita que apenas com abertura e cooperação é possível alcançar melhores perspectivas para a inovação e o desenvolvimento. 

“A China valoriza os intercâmbios internacionais em inovação científica e tecnológica. Todos os países devem ter acesso aos benefícios da inovação científica e tecnológica”, afirmou.

Visões opostas de mundo

A declaração do diplomata britânico e a pronta resposta chinesa evidenciam não apenas um embate retórico, mas também o contraste entre dois modelos de política tecnológica que refletem visões distintas sobre o papel da inovação na nova ordem mundial em construção.

De um lado, a China adota um modelo autônomo, centralizado e ambicioso, no qual o Estado desempenha um papel estratégico e direto na formulação e execução das políticas de inovação. Trata-se de um projeto tecnológico com claros contornos geopolíticos, que busca consolidar soberania, disputar padrões globais e ampliar sua influência nos setores-chave do futuro — como inteligência artificial, semicondutores e infraestrutura digital.

Do outro, o Reino Unido atua como elo da coalizão ocidental, combinando um ecossistema de inovação aberto e descentralizado com crescente preocupação em torno da segurança nacional e da soberania digital. A postura britânica visa fortalecer parcerias com os Estados Unidos e outros aliados ocidentais, posicionando-se como articulador de uma resposta coletiva ao avanço tecnológico chinês.

Mais do que diferenças administrativas, esses modelos revelam projetos distintos de mundo: um orientado pela lógica da autonomia estratégica e da multipolaridade; o outro, pela preservação da hegemonia tecnológica ocidental sob valores liberais e normativos.

Quem é Peter Mandelson

Atlantic Council

Peter Mandelson é uma das figuras mais influentes da política britânica nas últimas décadas. Ligado ao Partido Trabalhista, foi estrategista central do "Novo Trabalhismo" nos anos 1990, durante a liderança de Tony Blair (1997–2007), e ocupou cargos de destaque, como ministro do Comércio e comissário europeu.

Desde 2008, Mandelson detém o título de Barão Mandelson de Foy, que lhe garante assento vitalício na Câmara dos Lordes — a câmara alta do Parlamento do Reino Unido. Como lord vitalício, participa dos processos legislativos e dos debates políticos com função consultiva e revisora. Diferente dos títulos hereditários, sua nomeação foi uma honraria concedida por mérito, refletindo seu peso político.

Além de sua trajetória partidária, Mandelson continua a atuar como voz ativa nos debates sobre geopolítica, tecnologia e relações internacionais, sendo uma ponte entre a política britânica e o cenário global.

Encontro entre Xi Jinping e Keir Starmer no Brasil

Xinhua

Em 18 de novembro de 2024, o presidente da China, Xi Jinping, se reuniu com o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, à margem da Cúpula do G20 no Rio de Janeiro. No encontro, Xi destacou que, apesar das diferenças históricas e culturais entre os dois países, China e Reino Unido compartilham interesses comuns e responsabilidades globais como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e grandes economias mundiais.

Xi defendeu uma relação baseada em respeito mútuo, abertura e cooperação, com foco em benefícios compartilhados. Segundo ele, há amplo espaço para ampliar parcerias em áreas como comércio, energia limpa, finanças, saúde e bem-estar social. Também ressaltou a importância da confiança política e da governança global da inteligência artificial.

Keir Starmer, por sua vez, afirmou que uma relação sólida e duradoura com a China é essencial para o Reino Unido e para o mundo. Ele manifestou interesse em ampliar o diálogo e a cooperação em temas como economia, ciência, educação e mudanças climáticas, sempre com base no respeito e na transparência. Ambos reafirmaram o compromisso com o multilateralismo e a busca por soluções pacíficas para conflitos regionais.

Reino Unido é ator secundário

Apesar da fala do embaixador britânico em Washington, para a China o país não tem tanta relevância. O vice-presidente do Center for China and Globalization (CGC), Victor Gao, afirmou que o Reino Unido não é visto por Pequim como um adversário estratégico, tampouco como parte central da disputa por hegemonia tecnológica e geopolítica entre China e Estados Unidos.

Ex-tradutor de Deng Xiaoping e figura influente nos debates sobre diplomacia chinesa, Gao declarou em entrevista à emissora britânica LBC, em setembro de 2023, que, do ponto de vista chinês, o Reino Unido “não é um rival, não é um competidor, não é um inimigo, não é um adversário”.

A declaração reflete a percepção oficial da China de que Londres é uma nação relevante, mas com papel limitado nas grandes disputas estratégicas do século XXI. Gao comentou ainda sobre a postura britânica diante da ascensão chinesa e fez uma crítica direta à autopercepção do Reino Unido no cenário internacional.

“O governo britânico não deve superestimar seu impacto no cenário global”, disse.

Assista (em inglês)

As declarações de Victor Gao sugerem que, embora o Reino Unido mantenha uma aliança estratégica com os Estados Unidos e atue em áreas como inteligência, defesa e regulação tecnológica, a China o enxerga como um ator secundário em um tabuleiro dominado pela rivalidade entre as duas maiores economias do mundo.

China ascende, Reino Unido perde relevância

A ascensão da China e a decadência relativa do Reino Unido representam dois caminhos opostos que ajudam a explicar as transformações do cenário geopolítico atual.

De um lado, está um país que, há poucas décadas, vivia sob ocupação estrangeira e extrema pobreza, e que hoje disputa a liderança global com os Estados Unidos. Do outro, a antiga potência imperial britânica, que já dominou vastos territórios e liderou a economia mundial, mas que hoje atua como coadjuvante no sistema internacional.

No início do século XX, a China era uma nação fragmentada, enfraquecida por guerras e com status de semicolônia, dominada por potências estrangeiras. O Reino Unido, por sua vez, vivia o auge de seu império, com colônias nos quatro cantos do mundo e uma economia industrial poderosa.

Enquanto a China passou por uma revolução comunista em 1949 e iniciou reformas econômicas profundas em 1978, o Reino Unido começou a perder protagonismo após as duas guerras mundiais e com o processo de descolonização.

A virada chinesa começou com as reformas de Deng Xiaoping, que abriram espaço para o mercado e os investimentos estrangeiros, mas mantiveram o controle estatal sobre setores estratégicos. O país cresceu a taxas altíssimas por mais de três décadas, ingressou na Organização Mundial do Comércio em 2001 e se tornou a "fábrica do mundo". Hoje, é a segunda maior economia global em termos nominais e a maior em paridade de poder de compra. Lidera setores como exportações, infraestrutura tecnológica e produção industrial, e desafia abertamente a hegemonia dos EUA.

Enquanto isso, o Reino Unido enfrentou o desgaste imperial, perdeu suas colônias — a começar pela Índia, em 1947 — e teve seu declínio simbolizado pela crise do Canal de Suez, em 1956, quando precisou recuar diante da pressão dos Estados Unidos. Mais recentemente, o Brexit enfraqueceu ainda mais sua influência, afastando o país do mercado europeu. Atualmente, o Reino Unido mantém relevância diplomática, cultural e acadêmica, mas sua economia é menor que a de Alemanha, Japão, China e EUA, e sua capacidade de influência global é limitada.

Na disputa por quem define as regras da ordem internacional, a China aposta em um modelo com forte presença estatal e ambições geopolíticas, propondo um mundo multipolar e menos dependente do Ocidente. O Reino Unido, por sua vez, mantém-se fiel à ordem liberal liderada pelos Estados Unidos e pela OTAN, com ênfase na regulação, na inovação aberta e em alianças estratégicas.

Faz todo o sentido, portanto, o temor de Lord Mandelson: seu país, que já foi um império global, passou a ocupar um papel secundário, enquanto a China avança com um projeto político que desafia a hegemonia ocidental.

 

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