CHINA EM FOCO

China nega uso de dívidas do Sul Global como ‘alavanca política’

Pequim rebate relatório australiano e acusa países ricos de serem os verdadeiros credores dos mais pobres; entenda o embate entre dois modelos de desenvolvimento

Pequim rebate relatório australiano e acusa países ricos de serem os verdadeiros credores dos mais pobres; entenda o embate entre dois modelos de desenvolvimento
China nega uso de dívidas do Sul Global como ‘alavanca política’.Pequim rebate relatório australiano e acusa países ricos de serem os verdadeiros credores dos mais pobres; entenda o embate entre dois modelos de desenvolvimentoCréditos: Fotomontagem Canva
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A China negou que esteja tentando usar dívidas como instrumento de influência política, como sugere um relatório do think tank australiano Lowy Institute. O documento afirma que países em desenvolvimento enfrentam pressão financeira crescente, já que os pagamentos de dívidas à potência asiática bateram recordes em 2025, somando US$ 35 bilhões — dos quais US$ 22 bilhões partem dos 75 países mais pobres e vulneráveis.

Em coletiva de imprensa do Ministério das Relações Exteriores chinês realizada nesta terça-feira (27), a porta-voz Mao Ning afirmou que não conhece os detalhes do relatório, mas garantiu que a cooperação da China com países em desenvolvimento segue normas internacionais, respeita o mercado e busca a sustentabilidade da dívida.

“Alguns poucos países estão propagando a narrativa de que a China é responsável pelas dívidas desses países. No entanto, eles ignoram o fato de que as instituições financeiras multilaterais e os credores comerciais dos países desenvolvidos são os principais credores dos países em desenvolvimento e a principal fonte da pressão para o pagamento das dívidas. Mentiras não podem encobrir a verdade, e as pessoas sabem distinguir o certo do errado”, afirmou.

Para quem o Sul Global deve

A declaração de Mao Ning é confirmada por dados de instituições ocidentais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). 

Acesse aqui as Estatísticas da Dívida Internacional do Banco Mundial

Segundo o Banco Mundial, em 2022, mais da metade dos países mais pobres devia mais de 50% de sua dívida externa a instituições multilaterais como o próprio Banco Mundial e o FMI. 

O FMI destaca que, entre 2006 e 2020, a dívida com credores privados nesses países aumentou de 3% para 11%, enquanto a dívida com o Clube de Paris caiu de 28% para 11%.

A pressão financeira também é crescente. Em 2023, os países em desenvolvimento pagaram US$ 1,4 trilhão em dívidas externas — o maior valor já registrado. Só os países mais pobres gastaram US$ 34,6 bilhões em juros, quatro vezes mais do que há dez anos.

A China, embora seja hoje uma credora importante — principalmente por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, da sigla em inglês) — tem um papel que varia muito entre os países. 

Segundo o Lowy Institute, desde 2022, o país asiático passou a receber mais pagamentos do que conceder novos empréstimos, mudando de financiadora líquida para cobradora líquida.

Leia aqui o relatório do Lowy Institute em inglês

O relatório australiano também afirma que essa posição poderia ser usada como forma de “alavanca política” e pressão diplomática, especialmente em países que mudaram o reconhecimento de Taiwan para Pequim. 

A China nega essa afirmação e argumenta que muitos desses ataques vêm de países que querem deslegitimar os acordos de cooperação Sul-Sul e impedir que outros países escolham alternativas fora do modelo ocidental.

Segundo o governo chinês, seus empréstimos têm como foco principal o financiamento de infraestrutura, como rodovias, portos e energia, e que renegociações podem ser feitas diretamente entre os governos envolvidos.

Entre Washington e Pequim

A disputa entre os modelos chinês e ocidental de financiamento internacional não é apenas uma questão técnica ou econômica — trata-se de uma decisão profundamente política, que define os rumos da soberania, do desenvolvimento e da inserção global dos países do Sul Global.

O Ocidente, por meio de instituições como o FMI e o Banco Mundial, oferece apoio financeiro condicionado à reformas liberais e disciplina fiscal. Já a China se apresenta como alternativa e propõe crédito para obras de infraestrutura, com menos exigências ideológicas, mas nem sempre com menos riscos.

Para países da África, América Latina e Ásia, a escolha entre os dois modelos representa tanto uma oportunidade quanto um dilema: preservar a autonomia política enfrentando riscos financeiros maiores ou aceitar reformas estruturais que podem estabilizar as contas, mas ao custo de políticas públicas e soberania econômica.

Ajuste estrutural: o custo oculto do modelo ocidental

Desde os anos 1980, os empréstimos oferecidos pelo FMI e Banco Mundial vêm acompanhados do que se convencionou chamar de condicionalidades neoliberais. Essas exigências, inspiradas no chamado Consenso de Washington, incluem:

  • Privatizações de estatais;
     
  • Cortes de gastos públicos, especialmente em saúde, educação e subsídios;
     
  • Abertura comercial acelerada;
     
  • Austeridade fiscal (mais impostos, menos investimentos);
     
  • Foco na exportação como motor da economia.

Na teoria, essas medidas visam modernizar as economias e atrair investidores. Na prática, têm gerado impactos sociais profundos, como o enfraquecimento do Estado, aumento da pobreza e perda de controle sobre setores estratégicos.

Impactos na soberania

1. Interferência nas políticas internas: Governos se veem obrigados a seguir orientações externas — de congelamento de salários a reformas da Previdência — sob pena de perder o apoio financeiro.

2. Redução do investimento público: A austeridade imposta por essas instituições muitas vezes significa menos recursos para serviços essenciais. O resultado é a precarização da saúde, da educação e da infraestrutura social.

3. Ciclo de dependência: Sem fôlego para crescer, muitos países recorrem a novos empréstimos para pagar os antigos — alimentando um ciclo contínuo de endividamento.

Diferente do Ocidente, a China não exige reformas estruturais ou abertura de mercado. Seus empréstimos estão geralmente atrelados a grandes projetos de infraestrutura — rodovias, ferrovias, portos e energia — dentro da Nova Rota da Seda. Esse modelo é visto como mais pragmático. Não impõe políticas internas e oferece resultados tangíveis. 

A disputa entre os dois modelos não é neutra. Está no centro da nova geopolítica global. O Ocidente defende governança neoliberal e austeridade. A China oferece pragmatismo estatal e obras concretas. Para os países do Sul Global, o desafio é evitar cair em armadilhas, inclusive as retóricas e ideológicas como a do relatório australiano, que sequer analisa as dívidas dos países em desenvolvimento com instituições do ocidente com Banco Mundial e FMI.

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