O governo de Donald Trump anunciou, em 1º de fevereiro de 2025, uma nova tarifa de 10% sobre as importações da China, sob a justificativa de que Pequim não estaria fazendo o suficiente para conter o fluxo de fentanil e seus precursores químicos para os Estados Unidos.
A medida gerou forte rejeição da China, que classificou a ação como injustificada e uma violação das regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Em nota divulgada no último domingo (2), o Ministério das Relações Exteriores chinês declarou que os EUA estão instrumentalizando a crise dos opioides para justificar novas sanções econômicas, intensificando as tensões comerciais entre as duas potências.
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"Os EUA impuseram essa tarifa sob o pretexto da questão do fentanil. A China rejeita veementemente essa medida e tomará contramedidas para defender seus interesses legítimos."
O governo chinês argumenta que é um dos países mais rigorosos no combate às drogas e que, desde 2019, proibiu a exportação de fentanil e substâncias relacionadas atendendo a pedidos dos próprios EUA.
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Além disso, Pequim sustenta que a crise dos opioides é um problema doméstico dos EUA, decorrente de políticas falhas de saúde pública e do papel da indústria farmacêutica, que por anos promoveu a prescrição indiscriminada de opioides, resultando na atual epidemia de dependência e overdoses.
A disputa atual evoca um conflito histórico: a Guerra do Ópio (1839-1842), quando o Reino Unido forçou a China a aceitar o comércio da droga, resultando em um século de exploração estrangeira. Agora, os EUA tentam inverter a narrativa, responsabilizando a China por sua própria epidemia de opioides.
Negligência e ganância: a indústria farmacêutica e a crise dos opioides
A crise dos opioides nos Estados Unidos é considerada um dos maiores desafios de saúde pública do século 21 e não aconteceu por acaso. Foi resultado de anos de negligência corporativa, influência política e falhas regulatórias, que permitiram que empresas farmacêuticas priorizassem seus lucros em detrimento da saúde pública.
O problema teve início nos anos 1990, quando a indústria farmacêutica promoveu agressivamente analgésicos à base de opioides, resultando em milhões de dependentes químicos e centenas de milhares de mortes por overdose.
Empresas farmacêuticas lucraram bilhões de dólares ao promover opioides como medicamentos seguros e não viciantes. Quando os riscos da substância se tornaram inegáveis, recorreram a lobbies políticos e acordos judiciais para minimizar sua responsabilidade.
Principais escândalos da indústria farmacêutica
Entre os maiores escândalos da crise, destaca-se o caso da Purdue Pharma e da família Sackler. A empresa, responsável pela fabricação do OxyContin, foi uma das grandes impulsionadoras da epidemia, ao promover agressivamente seu opioide como um medicamento seguro e com baixo risco de dependência. No entanto, as evidências mostraram o contrário, e milhões de pessoas acabaram viciadas no analgésico.
Quando os processos judiciais começaram a se acumular contra a Purdue Pharma, a empresa declarou falência como parte de um acordo judicial, comprometendo-se a pagar indenizações bilionárias a vítimas e governos estaduais.
Contudo, a família Sackler conseguiu preservar grande parte de sua fortuna, escapando de consequências significativas. Embora tenham perdido o controle da empresa, os Sackler permaneceram entre os bilionários mais ricos dos Estados Unidos, graças a anos de lucros exorbitantes extraídos da comercialização irresponsável do OxyContin.
Outro escândalo envolve acordos de US$ 26 bilhões firmados com empresas como Johnson & Johnson e grandes distribuidoras farmacêuticas, incluindo McKesson, AmerisourceBergen e Cardinal Health. Essas empresas foram acusadas de inundar o mercado com opioides, sem qualquer controle sobre a distribuição dos medicamentos.
Elas enviavam milhões de pílulas para pequenas cidades, muitas vezes superando em centenas de vezes o número de habitantes locais. Esse comportamento imprudente facilitou a proliferação da dependência química e alimentou o mercado ilegal de opioides.
O lobby farmacêutico e a perpetuação da crise
Além das práticas irresponsáveis da indústria, o lobby farmacêutico teve um papel central na perpetuação da crise. Empresas farmacêuticas investiram milhões de dólares em campanhas políticas, financiando congressistas e senadores para garantir que medidas mais rígidas contra a prescrição de opioides fossem bloqueadas.
Um exemplo claro dessa influência ocorreu em 2016, quando o Congresso dos EUA aprovou a Lei de Proteção ao Paciente e Comunidades, que, na prática, reduziu os poderes da Agência de Combate às Drogas (DEA, na sigla em inglês) para fiscalizar e coibir a distribuição descontrolada de opioides. Essa legislação, apoiada por grandes empresas farmacêuticas e seus lobistas, dificultou a ação de agentes reguladores, permitindo que a epidemia continuasse a se alastrar.
Combinando estratégias de marketing agressivo, influência sobre médicos e controle político no Congresso, a indústria farmacêutica garantiu anos de lucros bilionários, mesmo à custa da morte de milhares de estadunidenses por overdose. Enquanto as empresas envolvidas são obrigadas a pagar indenizações, muitos especialistas argumentam que os valores acordados são irrisórios em relação ao impacto devastador da crise e que poucos executivos enfrentaram qualquer punição criminal.
A crise dos opioides não apenas revelou falhas sistêmicas no setor de saúde e na regulação de medicamentos, mas também mostrou como o poder econômico pode ser usado para influenciar decisões políticas e proteger grandes corporações da responsabilização plena por seus crimes.
Comércio de drogas como ferramenta geopolítica
Ao longo da história, o comércio de drogas tem sido usado não apenas como um fenômeno social e econômico, mas também como um instrumento geopolítico. A Guerra do Ópio (1839-1842) e a atual crise dos opioides nos Estados Unidos apresentam paralelos impressionantes, demonstrando como substâncias entorpecentes podem ser exploradas por Estados para obter vantagens estratégicas ou justificar políticas externas agressivas.
No século 19, o Império Britânico utilizou o ópio como uma ferramenta de dominação econômica contra a China, visando equilibrar a balança comercial que até então favorecia os chineses. O Reino Unido, que importava grandes quantidades de chá, seda e porcelana, via sua prata escoar para os cofres chineses sem encontrar uma maneira viável de compensar essa saída de riqueza.
A solução encontrada foi introduzir o ópio produzido na Índia britânica no mercado chinês, criando uma população viciada e dependente da droga. O comércio do ópio não apenas enfraqueceu a China socialmente, mas também gerou um enorme fluxo de prata de volta para os britânicos, consolidando sua vantagem econômica.
Fentanil como pretexto político
Atualmente, os EUA adotam uma estratégia semelhante ao usar a crise dos opioides como justificativa para impor barreiras comerciais contra a China. Washington alega que as exportações chinesas de fentanil são uma ameaça à segurança nacional, mas essa retórica mascara os interesses protecionistas da administração Trump, que busca reduzir a dependência da economia estadunidense de produtos chineses.
Além disso, essa narrativa desvia a atenção do verdadeiro culpado da crise dos opioides nos EUA: a indústria farmacêutica e o lobby político, que permitiram a prescrição desenfreada dessas substâncias por décadas. Em vez de focar na regulação interna e no combate ao abuso de opioides dentro do próprio país, os EUA optam por um discurso de culpabilização externa, reforçando sanções e tensões diplomáticas contra a China.
Linha do tempo do ópio
O uso dos opioides evoluiu de uma ferramenta medicinal para um dos maiores desafios de saúde pública do mundo moderno. A história mostra como interesses econômicos, médicos e políticos moldaram a trajetória dessas substâncias, levando à crise devastadora que testemunhamos hoje.
Antiguidade – O Uso Ritualístico e Medicinal da Papoula
- 3.400 a.C. – Primeiros registros do cultivo da papoula do ópio na Mesopotâmia, pelos sumérios, que chamavam a planta de "planta da alegria".
- 1.500 a.C. – O ópio é citado no Papiro de Ebers, um dos mais antigos textos médicos egípcios, sendo utilizado como analgésico e sedativo.
- 300 a.C. – Hipócrates, considerado o "pai da medicina", reconhece as propriedades analgésicas do ópio e o recomenda para tratar insônia e dores.
- 130-200 d.C. – O médico grego Galenos prescreve ópio para uma ampla gama de doenças, desde cólicas até transtornos mentais.
Idade Média e Renascimento – Expansão Comercial e Uso Alquímico
- 800-900 d.C. – O ópio chega à China e à Índia através do comércio árabe, sendo utilizado na medicina tradicional.
- 1500s – O médico e alquimista Paracelso cria o láudano, uma solução de ópio com álcool, amplamente utilizada como analgésico e sedativo na Europa.
- 1600s – Companhias de Comércio Europeias, como a Companhia Holandesa das Índias Orientais, começam a traficar ópio entre a Índia e a China.
Século 19 – A Guerra do Ópio e o Crescimento da Dependência
- 1804 – O farmacêutico alemão Friedrich Sertürner isola a morfina, um alcaloide do ópio, revolucionando a medicina com um analgésico muito mais potente.
- 1839-1842 – Primeira Guerra do Ópio: A China tenta banir o comércio ilegal da droga, mas é forçada pelo Reino Unido a aceitar sua comercialização.
- 1853-1856 – Segunda Guerra do Ópio: A legalização do ópio é imposta à China, agravando sua epidemia de dependência.
- 1874 – Cientistas sintetizam a heroína, inicialmente comercializada como um analgésico "não viciante" pela Bayer.
Século 20 – A Revolução Farmacêutica e o Controle Global
- 1914 – O Harrison Narcotics Tax Act, nos EUA, regula o comércio e uso da morfina e da heroína, marcando o início do controle estatal sobre opioides.
- 1924 – Os EUA proíbem a heroína, mas ela continua sendo usada ilegalmente.
- 1950s-60s – Avanços na farmacologia levam ao desenvolvimento de novos opioides sintéticos, como a metadona e a fentanila.
Década de 1990 – A Epidemia dos Opioides Começa
- 1995 – A Purdue Pharma lança o OxyContin, promovendo-o como um analgésico seguro e de baixo risco de dependência.
- 2000s – Milhões de pessoas nos EUA se tornam dependentes de opioides prescritos.
- 2010 – O governo dos EUA restringe a prescrição de opioides, levando muitos usuários a migrar para a heroína.
2010s-2020s – A Crise do Fentanil
- 2013 – O fentanil, um opioide sintético 50 vezes mais potente que a heroína, começa a dominar o mercado ilícito.
- 2017 – Os EUA declaram a crise dos opioides uma emergência de saúde pública.
- 2020 – Mais de 100.000 mortes por overdose nos EUA em um único ano, sendo a maioria relacionada ao fentanil.
- 2025 – EUA impõem tarifas contra a China, acusando Pequim de ser a principal fornecedora de precursores químicos usados na produção de fentanil.
Comércio global de entorpecentes
O Relatório Mundial sobre Drogas 2024, publicado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) em junho de 2024, apresenta uma visão abrangente sobre as principais tendências do tráfico e consumo de drogas no mundo. O documento destaca desafios crescentes relacionados ao comércio ilícito de drogas, a expansão de mercados de entorpecentes e os impactos sociais e ambientais dessa atividade criminosa.
Crescimento no tráfico de cocaína e opioides
- A produção global de cocaína atingiu um recorde de 2.700 toneladas em 2022, um aumento de 20% em relação ao ano anterior.
- A América do Sul continua sendo o principal centro de cultivo da coca, com a maior parte da droga destinada à América do Norte e à Europa Ocidental e Central.
- A repressão ao cultivo de papoula no Afeganistão gerou uma queda de 95% na produção de ópio em 2023, afetando economias locais e impulsionando os preços do mercado ilegal.
Expansão dos mercados de metanfetamina e sintéticos
- O comércio global de metanfetamina continua em expansão, com destaque para o aumento das apreensões no Oriente Médio, Sudeste Asiático e América do Norte.
- O tráfico de "Captagon", um estimulante à base de anfetamina, cresceu significativamente no Oriente Médio, especialmente nos mercados do Golfo.
- O consumo de drogas sintéticas está se tornando cada vez mais globalizado, com laboratórios surgindo em diversas regiões, incluindo Ásia, África e América Latina.
A crise dos opioides e o impacto do fentanil
- O número de mortes por overdose de opioides continua aumentando, especialmente nos EUA e Canadá.
- Em 2022, foram registradas 82 mil mortes nos EUA por opioides, principalmente devido ao fentanil e seus derivados.
- A crise dos opioides se tornou um problema de saúde pública global, com países da Europa e Ásia começando a relatar casos crescentes de uso de fentanil.
Crime organizado e impacto ambiental
- Grupos criminosos transnacionais estão diversificando suas atividades ilícitas, utilizando o tráfico de drogas para financiar outros crimes, como tráfico de pessoas, exploração de recursos naturais e fraude financeira.
- O Triângulo Dourado, região que engloba Mianmar, Tailândia e Laos, continua sendo um dos principais centros de produção de drogas sintéticas, agora ampliando suas atividades para o tráfico de animais silvestres e extração ilegal de madeira.
- A fabricação clandestina de metanfetamina gera impactos ambientais severos, incluindo a contaminação de rios e solos devido ao descarte de produtos químicos tóxicos.
Desafios na política global sobre drogas
- O relatório destaca a necessidade de uma abordagem mais equilibrada entre repressão ao tráfico e políticas de redução de danos.
- Muitos usuários de drogas, especialmente mulheres, enfrentam barreiras no acesso a tratamentos de saúde devido ao estigma e discriminação.
- O documento enfatiza que a justiça criminal deve focar nos grandes traficantes, enquanto os usuários devem receber apoio e tratamento adequado.
O Relatório Mundial sobre Drogas 2024 evidencia a complexidade do problema das drogas no mundo, abordando desde o aumento da oferta de substâncias ilícitas até as novas estratégias adotadas pelo crime organizado.
A crise dos opioides, a ascensão das drogas sintéticas e os impactos sociais e ambientais do tráfico estão no centro das preocupações globais. O documento sugere que políticas públicas mais eficazes devem equilibrar repressão, prevenção e tratamento, promovendo ações que considerem os direitos humanos e a saúde pública como prioridades.