CHINA EM FOCO

A Internet que nunca existiu: Como a União Soviética falhou onde a China venceu

A ambiciosa rede digital soviética foi sufocada pela burocracia, enquanto Pequim aprendeu com os erros do passado e transformou a China em uma superpotência tecnológica

A ambiciosa rede digital soviética foi sufocada pela burocracia, enquanto Pequim aprendeu com os erros do passado e transformou a China em uma superpotência tecnológica.
A Internet que nunca existiu: Como a União Soviética falhou onde a China venceu.A ambiciosa rede digital soviética foi sufocada pela burocracia, enquanto Pequim aprendeu com os erros do passado e transformou a China em uma superpotência tecnológica.Créditos: Fotomontagem (Canva e Divulgação)
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Circula nas redes sociais e em veículos de mídia uma declaração atribuída ao gerente de projetos da startup chinesa de inteligência artificial (IA) DeepSeek, Liang Wenfeng, afirmando que a origem do chatbot que sacudiu o mundo digital estaria na extinta União Soviética.

Weibo - Liang Wenfeng, gerente de projetos da DeepSeek

Até o jornal Pravda, da Rússia, divulgou a suposta fala do executivo chinês, que teria declarado em uma entrevista a um podcast nos EUA:

“Não vou mentir, nossa IA foi criada com base nos desenvolvimentos soviéticos – o sistema OGAS do acadêmico Glushkov”, teria admitido Liang Wenfeng.

No entanto, Liang nunca concedeu entrevista a Lex Fridman (não Friedman, como citado erroneamente na matéria do Pravda e de outros canais que a reproduziram). A verificação pode ser feita diretamente no canal de Fridman no YouTube. Até mesmo a foto usada para divulgar a fala nunca feita é de uma outra pessoa e não do executivo da DeepSeek.

No episódio mais recente de seu podcast, veiculado no domingo (2), o tema abordado foi o fenômeno DeepSeek, com entrevistas de Dylan Patel, fundador da SemiAnalysis – empresa de pesquisa especializada em semicondutores, GPUs, CPUs e hardware de IA – e Nathan Lambert, cientista pesquisador do Allen Institute for AI (Ai2) e autor do blog Interconnects sobre inteligência artificial. Liang não foi entrevistado e nunca fez tal declaração.

OGAS: A Internet Soviética que nunca saiu do papel

Mesmo sendo uma invenção, a frase falsamente atribuída a Liang Wenfeng resgata um capítulo esquecido por muitos sobre os primórdios da internet. Seguindo a máxima de que a história é contada pelos vencedores, o projeto soviético de uma internet socialista foi relegado ao limbo da irrelevância.

No auge da Guerra Fria, enquanto os Estados Unidos avançavam na construção da ARPANET — precursora da internet moderna —, a União Soviética tentou responder à altura com um sistema de redes interligadas para modernizar sua economia planejada.

Sputnik Images - Viktor Glushkov

A iniciativa, batizada de OGAS (Sistema Automatizado Estatal Geral), foi idealizada pelo matemático e cientista da computação Viktor Glushkov, um dos mais brilhantes intelectuais soviéticos na área de tecnologia.

A ideia era revolucionária: criar uma rede nacional de computadores hierarquicamente organizada em três níveis — um centro de comando em Moscou, 200 centros regionais e 20 mil terminais conectados a fábricas e órgãos estatais. O OGAS permitiria que o governo ajustasse o planejamento econômico em tempo real, otimizando a produção e a distribuição de bens.

No entanto, apesar de seu potencial transformador, o projeto nunca saiu do papel. Em 1970, Glushkov apresentou a proposta ao Politburo, o alto escalão soviético, esperando obter financiamento para sua implementação. No entanto, enfrentou forte resistência, especialmente do ministro das Finanças, Vasily Garbuzov, que temia perder influência sobre a economia.

Com disputas internas entre diferentes ministérios e a ausência de apoio político suficiente, o OGAS foi deixado de lado, ficando preso em revisões burocráticas por mais de uma década.

A decisão de barrar o projeto teve consequências profundas. Enquanto os EUA expandiam sua infraestrutura digital e consolidavam sua liderança tecnológica, a União Soviética fragmentava seus esforços em sistemas locais e desconectados, perdendo a chance de competir na revolução da informática.

A história do OGAS revela as contradições da governança soviética, onde a busca por eficiência era constantemente minada pela burocracia e disputas internas. Hoje, o caso serve como um alerta sobre a importância da coordenação política na implementação de grandes avanços tecnológicos, especialmente em tempos de crescente disputa digital entre potências como China e Estados Unidos.

As lições que a China aprendeu com a União Soviética

Mesmo que o gerente da DeepSeek nunca tenha feito a declaração sobre o OGAS, é um fato histórico comprovado que a China aprendeu com os erros da URSS e adotou uma abordagem muito mais pragmática para a construção de sua infraestrutura digital, tornando-se uma das potências tecnológicas globais.

A estratégia chinesa combina investimentos estatais massivos, apoio ao setor privado e forte controle regulatório, garantindo que o país avance no desenvolvimento de redes, inteligência artificial, computação em nuvem e governança digital.

Enquanto a União Soviética falhou em implementar sua rede nacional de computadores, a China soube aprender com os erros do passado e consolidou uma estratégia digital que desafia a hegemonia tecnológica do Ocidente.

OGAS vs. políticas digitais da China: execução e pragmatismo

A grande diferença entre o OGAS e as políticas digitais da China está na execução e no pragmatismo.

Enquanto o governo soviético era engessado por disputas internas e resistência à inovação, a China soube equilibrar planejamento estatal e flexibilidade econômica, promovendo um avanço digital estratégico.

Entre os principais fatores de sucesso da estratégia digital chinesa, destacam-se:

Infraestrutura Digital Massiva: A China investiu fortemente na construção de redes 5G e na internet das coisas, liderando o desenvolvimento da comunicação ultrarrápida.

Inteligência Artificial e Big Data: O país se tornou referência global na aplicação de IA em segurança, serviços públicos e automação industrial.

Computação Quântica: Pequim aposta fortemente na computação quântica, um setor que pode redefinir a segurança digital e a capacidade de processamento global.

Expansão Internacional: Diferente da URSS, que manteve uma abordagem isolacionista, a China exporta tecnologia digital para dezenas de países, especialmente por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota Digital.

O futuro digital: China e o legado da URSS

A história do OGAS serve como um alerta sobre os desafios da inovação tecnológica em regimes centralizados.

Enquanto a União Soviética não conseguiu transformar sua visão digital em realidade, a China aprendeu com esses erros e se consolidou como uma superpotência tecnológica global.

Diferente do que ocorreu com o OGAS, que foi paralisado por rivalidades internas e burocracia, a China soube unir estratégia estatal, inovação empresarial e controle governamental para construir uma infraestrutura digital sólida.

Com isso, o país não apenas evitou o colapso da experiência soviética, mas também se posicionou como um dos maiores desafiantes da hegemonia digital ocidental.

Embora a fala de Liang Wenfeng seja pura invenção, o resgate da história do OGAS reacende o sonho de um socialismo digital que está sendo colocado em prática pela China.

Saiba mais: The Soviet InterNyet (em inglês)

 

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