O ano de 1989 marcou o início do fim da Guerra Fria simbolizado pela queda do muro de Berlim, no dia 9 de novembro, há 35 anos. A fervura por mudanças guiadas por pautas difusas de “liberdade e democracia” que se alastrou pelo bloco soviético também alcançou a China.
No país asiático, o clamor por mudanças que pairava sobre o mundo galvanizou protestos estudantis que culminaram com o episódio da Praça Tiananmen, ou Praça da Paz Celestial, em 4 de junho de 1989.
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No Ocidente, esses protestos são vistos como um movimento pró-democracia, onde milhares de estudantes e cidadãos se reuniram em Pequim para exigir reformas políticas e liberdade de expressão.
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A repressão pelo Exército, em 4 de junho, foi amplamente coberta pela imprensa internacional e marcada por imagens icônicas, como a do "Homem do Tanque".
Por outro lado, o governo chinês descreve o evento como um "distúrbio contrarrevolucionário", defendendo que a intervenção militar foi necessária para manter a ordem e evitar o caos social, alegando que os protestos foram influenciados por forças anti-China e estrangeiras.
Visita de Gorbachev
Semanas antes do fatídico 4 de junho, em maio de 1989, Deng Xiaoping recebeu a visita de Mikhail Gorbachev, o primeiro líder soviético a realizar uma visita oficial ao país em 30 anos. Esse encontro marcou um ponto significativo de reaproximação entre a China e a União Soviética.
Victor Gao, ex-intérprete de Deng e atual professor na Universidade Soochow, em entrevista à VOA quando Gorbachev morreu aos 91 anos, em 30 de agosto de 2022, relembrou como o então líder chinês via a política de abertura do colega soviético como um equívoco.
Para Deng, Gorbachev interpretou mal a perestroika (reestruturação) ao priorizar a reforma política em detrimento das mudanças econômicas.
"Deng considerava que Gorbachev se equivocou na sequência e na prioridade das reformas. No final das contas, o essencial é garantir o bem-estar da população", observou Gao.
A liderança do país asiático observava com atenção o que ocorria naquele momento na União Soviética, que se esfacelava sob a liderança de Gorbachev. Ao fim de debates intensos, prevaleceu a política de Deng de "reforma econômica sem reforma política", o que moldou o caminho da China nas décadas seguintes.
Primeira década de Reforma e Abertura
A política de Deng foi muito além de discursos. Naquele ano de 1989, a China já havia iniciado há uma década o processo de Reforma e Abertura, lançado em 1978. Nesse período, a evolução econômica do país asiático foi marcada por transformações significativas.
A economia chinesa deu início ao processo de modernização e mudava gradualmente de um modelo centralmente planejado para uma economia socialista de mercado, com foco em liberalização econômica, abertura ao investimento estrangeiro e desenvolvimento de uma economia mista.
Em 1978, o PIB nominal da China era de aproximadamente US$ 150 bilhões e até 1989 havia crescido para cerca de US$ 458 bilhões, uma taxa média de crescimento anual do PIB de aproximadamente 9,4%.
Em 1978, 80% da população chinesa vivia em áreas rurais e dependia da agricultura. A introdução do sistema de responsabilidade familiar permitiu que os agricultores vendessem o excesso de produção no mercado livre, o que melhorou significativamente a produtividade agrícola.O setor agrícola registrou uma taxa média de crescimento anual de cerca de 5,9% entre 1978 e 1984.
O governo chinês estabeleceu Zonas Econômicas Especiais (ZEEs) em regiões costeiras, como Shenzhen, Zhuhai, Shantou e Xiamen, para atrair investimento estrangeiro e incentivar o desenvolvimento econômico. Essas áreas incentivaram a criação de joint ventures e investimentos diretos estrangeiros, contribuindo para o crescimento do setor manufatureiro e exportador da China.
Em 1978, mais de 250 milhões de chineses viviam abaixo da linha de pobreza. Entre 1978 e 1989, as reformas econômicas reduziram significativamente a pobreza rural, com milhões de pessoas saindo da pobreza extrema.
A China passou a se concentrar na produção de bens manufaturados, favorecendo o desenvolvimento industrial. As exportações totais da China aumentaram de US$ 9,75 bilhões em 1978 para aproximadamente US$ 52,5 bilhões em 1989.
A economia chinesa começou a se integrar com o mercado global, e o setor privado cresceu rapidamente. Pequenas e médias empresas foram incentivadas, o que ajudou na criação de empregos e no aumento da renda da população.
Lições para Xi com o colapso soviético
Na trajetória do Partido Comunista da China (PCCh), a União Soviética começou como um ideal revolucionário e terminou como um exemplo de fragilidade quando a disciplina e a firmeza ideológica são negligenciadas.
Esse episódio histórico tornou-se um dos fundamentos do pensamento de Xi Jinping, atual líder chinês, e influenciou profundamente sua visão de governo. Desde que assumiu o poder em 2012, ele se refere frequentemente à dissolução soviética como uma advertência.
Xi acredita que o colapso soviético ocorreu devido à falta de disciplina e de firmeza ideológica, além da perda do controle político centralizado. Em discursos internos, ele expressou que a União Soviética desmoronou “sem mais nem menos” porque "ninguém foi homem o suficiente" para manter o partido unido e fiel aos seus princípios.
Ele também critica o que vê como uma "fragilidade ideológica" do Partido Comunista Soviético, apontando que os líderes da URSS perderam a crença no comunismo, permitiram a corrupção e o enfraquecimento do controle estatal e cederam a pressões por reformas políticas precipitadas.
Para Xi, a experiência soviética serve como um alerta constante sobre os perigos de uma abertura política descontrolada e de uma falta de centralização do poder. Ele usa essa lição para justificar a necessidade de controle central do PCCh e para intensificar as políticas de disciplina partidária, combate à corrupção e fortalecimento da ideologia comunista.
Ele defende que, para manter a estabilidade e evitar o “caos” que acometeu a União Soviética, o PCCh deve continuar com uma postura firme e centralizada, colocando o desenvolvimento econômico à frente de qualquer reforma política significativa.
Queda do Muro de Berlim e o tsunami do neoliberalismo
A queda do Muro de Berlim deflagrou o tsunami do neoliberalismo. Com a dissolução da União Soviética em 1991 e o colapso do bloco socialista, o mundo viu o fim do sistema bipolar que opunha EUA e URSS e a queda das barreiras ideológicas que dividiam o Ocidente capitalista do Oriente socialista.
A ausência de um rival ideológico deu margem ao avanço do capitalismo de mercado e das reformas neoliberais, que transformaram a economia global e alteraram a relação entre Estado e mercado. Essa combinação moldou profundamente a estrutura econômica e as políticas públicas em todo o mundo que reverberam até hoje.
China não caiu na armadilha neoliberal
A China saiu ilesa desse tsunami neoliberal. O país asiático nunca aderiu ao Consenso de Washington, embora tenha se beneficiado dele. Mesmo que tenha adotado políticas econômicas de mercado desde o final dos anos 1970, com o início da Reforma e Abertura, ela não seguiu estritamente o modelo neoliberal promovido pelo acordo ultraliberal liderado pelos EUA.
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Em vez disso, a China implementou uma abordagem gradualista e pragmática para a reforma econômica, mantendo um forte controle estatal sobre setores-chave da economia, como o setor financeiro e as empresas estatais. Essa abordagem resultou no socialismo com características chinesas.
Longa marcha de desenvolvimento
O caminho escolhido pela liderança da China na encruzilhada de 1989, de focar nas reformas econômicas e não nas políticas, acabou se mostrando acertada.
O colapso da União Soviética sob Gorbachev foi e continua sendo amplamente estudado e analisado pela China. No final das contas, o país foi bem-sucedido ao navegar por mais de quatro décadas de reforma e abertura ao mundo.
O país asiático liderado pelo PCCh foi capaz de se reinventar para sobreviver a traumas que teriam derrubado quase qualquer outro partido, como os protestos da Praça da Paz Celestial, a queda do Muro de Berlim e o colapso soviético.
Esse sucesso é atribuído à capacidade de manter a estabilidade política como uma tarefa crucial. Para a China, uma reforma em seu sistema político precisa ser gradual e estável. O país segue em sua longa marcha de reformas e abertura ao mundo e de construção de um sistema de socialismo com características chinesas.
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