Empreendedorismo combinado com a economia digital virou uma espécie de solução mágica para desafios socioeconômicos que o mundo todo enfrenta, como o desemprego entre os jovens.
Em geral, a noção brasileira de empreendedorismo está fortemente relacionada à visão dos Estados Unidos, baseada no livre mercado. Mas como a segunda maior economia do mundo, a China socialista, enxerga o empreendedorismo?
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China e EUA têm noções diametralmente opostas no que diz respeito à atuação do Estado no empreendedorismo. Dá para compreender essas diferenças ao observar a trajetória de dois jovens empreendedores da economia digital extremamente bem-sucedidos: Zhang Yiming, do TikTok, e Mark Zuckerberg, do Facebook.
Zhang, da China, fundou a empresa por trás do aplicativo TikTok, em 2012 e transformou a ByteDance em uma das startups mais valiosas do mundo como foco na inteligência artificial e no uso de algoritmos avançados para personalizar o conteúdo entregue aos usuários.
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O governo chinês apoiou o rápido crescimento da empresa com um ambiente de inovação focado em alta tecnologia, especialmente em termos de infraestrutura e recursos financeiros.
Zuckerberg, dos EUA, cofundou o Facebook (agora Meta) em 2004 enquanto ainda era estudante em Harvard que rapidamente se transformou em uma das maiores plataformas de mídia social do mundo.
O Facebook cresceu em um ecossistema onde o financiamento por capital de risco e o acesso ao mercado global foram cruciais.
Na China, um ecossistema controlado e apoiado com políticas de incentivo à inovação tecnológica alinhadas com os objetivos de longo prazo do país e a prosperidade comum.
Nos Estados Unidos, um governo com papel limitado e o empreendedorismo focado na iniciativa privada e no financiamento por capital de risco.
Trabalho para a juventude
Tanto o TikTok quanto o Facebook têm sido importantes gerador de empregos, tanto diretamente quanto indiretamente, para jovens em todo o mundo. As duas empresas empregam muitos jovens em áreas como desenvolvimento de software, engenharia de inteligência artificial e moderação de conteúdo.
A plataforma de Zuckerbergck está mais estabelecida, com uma presença em múltiplos setores digitais que inclui realidade aumentada e virtual (Metaverso). O aplicativo chinês tem crescido rapidamente e inovado no uso de IA para personalizar conteúdo.
O Facebook (e Instagram) tende a ser mais benéfico para influenciadores já estabelecidos e campanhas de marketing mais estruturadas. O TikTok tem tido um impacto maior em criar oportunidades para microinfluenciadores e jovens que podem viralizar rapidamente com um vídeo.
Desemprego entre os jovens
Apesar de uma economia digital em expansão e com exemplos de sucesso como o Zhang e Zuckerberg, o fato é que o desemprego entre os jovens é um problema global.
Em 2024, a taxa média global de desemprego entre os jovens, que engloba pessoas de 15 a 24 anos, foi estimada em cerca de 13%, de acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT). No Brasil, gira em torno de 17,9%; nos Estados Unidos, 9,8%; e na China, 18,8%.
Ao contrário do que os críticos à presença estatal afirmam, tanto o capitalista Estados Unidos quanto a socialista China aplicam políticas públicas para enfrentar essa crise de desemprego entre os jovens, mesmo que tenham abordagens sociais e econômicas diferentes.
Nos EUA, o foco está no livre mercado e no incentivo ao empreendedorismo privado com acesso a capital de risco e orientação por redes de mentoria. Na China, o governo tem um papel central e regulador com incentivo a setores estratégicos e fornecimento de subsídios diretos e financiamento estatal para startups.
Nos EUA, o apoio ao empreendedorismo é mais diversificado, com forte presença em tecnologia e inovação, mas com menos direcionamento estatal. Na China, o governo foca em setores estratégicos definidos pelo Estado, como tecnologia verde e inteligência artificial, com uma abordagem mais alinhada ao planejamento econômico central.
O governo chinês é mais ativo no apoio direto a jovens empreendedores e proporciona um ecossistema controlado, enquanto nos EUA o suporte vem principalmente de programas de incentivo e redes de investimento privado, com menor intervenção estatal.
Como a China lida com o desemprego juvenil
A alarmante taxa de desemprego entre jovens na China é um desafio. Cerca de 11,79 milhões de pessoas devem se formar nas universidades chinesas este ano, um aumento de 210 mil em relação ao ano anterior, de acordo com o Ministério da Educação. Esses novos formados vão se juntar ao recorde de 11,5 milhões de pessoas que concluíram seus estudos em 2023.
Pequim tem enfrentado pressão para criar empregos em meio à recuperação pós-pandemia em um cenário com prolongada queda no mercado imobiliário e a desaceleração do setor privado. Em resposta, tem implementado uma série de políticas, com foco especial no empreendedorismo, para impulsionar o crescimento econômico e fornecer alternativas de emprego.
No dia 3 de outubro, o Banco Central da China (PBOC, da sigla em inglês) lançou um pacote de estímulo econômico no valor de 1,07 trilhão de dólares. Inclui destinação de 109,6 bilhões de dólares para o mercado de ações e 274 bilhões de dólares em emissões de títulos para incentivar o consumo e os gastos dos governos locais.
Além disso, 137 bilhões de dólares foram alocados para os principais bancos estatais, com o objetivo de financiar novos negócios e startups, especialmente lideradas por jovens empreendedores.
Futuro digital
Entre os focos desse crédito de Pequim estão os jovens graduados, encorajados a criar negócios em setores de alta tecnologia e inovação, como inteligência artificial, energias renováveis e comércio eletrônico.
As plataformas digitais são uma peça-chave para a China enfrentar o desemprego juvenil. Além de revitalizar o setor de serviços, também promove a expansão do emprego flexível e do autoemprego como formas de criar renda em setores como educação online e entrega de produtos.
Regiões específicas na China foram designadas como hubs de inovação e oferecem subsídios e incentivos fiscais para que os jovens lancem suas startups. Essas zonas são focadas em promover o desenvolvimento de empresas que utilizam novas tecnologias.
Empreendedorismo para erradicar a extrema pobreza
Na China, o empreendedorismo é promovido como uma força inovadora e produtiva, mas sempre subordinada às metas e diretrizes estabelecidas pelo Estado.
Para Pequim, o empreendedorismo serve como um meio para impulsionar a modernização econômica, reduzir a pobreza e garantir que o empreendedorismo beneficie a sociedade como um todo, de acordo com os princípios socialistas chineses.
A potência asiática erradicou a pobreza extrema em 2020, uma das metas mais ambiciosas do país e para isso utilizou várias estratégias, e o incentivo ao empreendedorismo foi uma peça chave desse processo. Não só gerou empregos locais como também criou novas oportunidades econômicas para as áreas mais pobres do país.
Combinando incentivo ao empreendedorismo, desenvolvimento de infraestrutura e apoio governamental contínuo, a China conseguiu transformar regiões rurais e comunidades antes empobrecidas em centros de crescimento econômico sustentável, promovendo a prosperidade comum.
Digitalização e crise capitalista
A mudança na forma como os jovens enxergam o mercado de trabalho e o empreendedorismo está fortemente ligada a, pelo menos, dois fatores: digitalização e crise capitalista.
A digitalização reconfigurou o ambiente de trabalho e abriu portas para que jovens, antes dependentes de empregos formais, criem seus próprios negócios com baixo custo. Plataformas como Facebook e TikTok facilitaram o surgimento de novos empreendedores, rompendo com a estrutura rígida dos empregos tradicionais.
Além disso, a possibilidade de trabalhar remotamente e em horários flexíveis se tornou atrativa e reflete o desejo crescente por maior autonomia e controle sobre a rotina.
Por outro lado, a crise capitalista, agravada por recessões e o aumento do desemprego juvenil, levou muitos jovens a buscar alternativas ao mercado formal.
Em todo o mundo houve aumento do número de microempreendedores individuais, uma resposta à precarização do trabalho formal, que frequentemente oferece baixos salários e pouca segurança.
A pandemia de Covid-19 intensificou a insatisfação com empregos tradicionais e acelerou a migração para a economia informal e o trabalho autônomo.
Esses dois fatores — digitalização e crise econômica — combinado com diversos outros aspectos que variam em cada país e cultura, têm moldado um novo paradigma, no qual o empreendedorismo e o trabalho independente emergem como as opções mais viáveis para a juventude global.
Finja até conseguir
Em algumas oportunidades as maravilhas do sistema de livre mercado aplicado pelos Estados Unidos mostra que a realidade é mais complexa do que noções difusas de liberdade.
O caso de Elizabeth Holmes, fundadora da Theranos, é conhecido como um dos maiores escândalos de fraude no setor de tecnologia e saúde dos Estados Unidos e deixou à mostra como a falta de supervisão e regulamentação no ecossistema de startups pode colocar em xeque a cultura de "fake it till you make it" (finja até conseguir) e da busca desenfreada por inovação sem a devida validação tecnológica.
Holmes fundou a startup em 2003 com a promessa de revolucionar o diagnóstico médico e alardeava que a sua tecnologia poderia realizar centenas de exames com apenas uma gota de sangue.
A empresa atraiu bilhões de dólares em investimentos de figuras renomadas, incluindo os ex-secretários de Estado, Henry Kissinger e George Shultz, e os ex-secretários de Defesa James Mattis e William Perry, e se tornou uma das startups mais valiosas do Vale do Silício.
Investigações revelaram que a tecnologia da Theranos nunca funcionou conforme anunciado. Reportagens do Wall Street Journal em 2015 expuseram as falhas, levando a um escrutínio legal e ao colapso da empresa. Em novembro de 2022, Holmes foi condenada a 11 anos e 3 meses de prisão por fraude contra investidores e ordenada a pagar restituições aos seus investidores lesados?.
O caso de Holmes marcou a história do Vale do Silício e jamais teria ocorrido na China, que adota uma abordagem muito mais regulada no empreendedorismo digital. O governo central exerce um controle rígido sobre as startups, especialmente em setores como tecnologia e saúde, que são considerados críticos para a segurança nacional e o desenvolvimento econômico.
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