CHINA EM FOCO

Despertar Tecnológico da China: RedNote e DeepSeek mudam a percepção sobre a potência asiática

Duas inovações chinesas desafiam o domínio ocidental e reposicionam os chineses como líderes em tecnologia e inovação

Despertar Tecnológico da China: RedNote e DeepSeek mudam a percepção sobre a potência asiática.Duas inovações chinesas desafiam o domínio ocidental e reposicionam os chineses como líderes em tecnologia e inovaçãoCréditos: iStock
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"Deixe a China dormir, pois quando ela acordar, o mundo tremerá", teria dito Napoleão Bonaparte. A frase se popularizou ao longo dos anos, mas não há registros históricos que comprovem que o imperador francês realmente a tenha proferido.

Mesmo sendo um mito, a ideia de uma China adormecida, mas poderosa, continua ressoando, especialmente diante da ascensão do país como potência global. O alerta atribuído a Napoleão – verdadeiro ou não – tornou-se um símbolo da transformação do titã asiático no cenário internacional.

Recentemente, dois fenômenos tecnológicos exemplificam esse despertar chinês: o RedNote e o DeepSeek. Ambos estão desempenhando papéis fundamentais na construção de uma nova imagem da China no mundo, especialmente no campo da tecnologia e inovação.

RedNote: a China revelada ao mundo

Após a possibilidade de restrições ao TikTok nos Estados Unidos, muitos usuários migraram para o aplicativo chinês Xiaohongshu, conhecido internacionalmente como RedNote.

Originalmente uma plataforma de compartilhamento de fotos e vídeos voltada para moda, beleza e estilo de vida, o RedNote tornou-se um inesperado ponto de intercâmbio cultural entre os EUA e a China.

Essa migração criou um canal direto para trocas culturais, no qual cidadãos chineses e estadunidenses compartilham experiências diárias, discutem gírias, memes e participam de transmissões ao vivo. Como resultado, muitos usuários dos EUA começaram a conhecer a China real.

Nas redes sociais, viralizou um vídeo de um estadunidense comentando o fenômeno, mostrando como essa nova conexão desconstrói a visão tradicional e, muitas vezes, estereotipada que o Ocidente tem da China.

DeepSeek: a revolução chinesa na inteligência artificial

Outra inovação chinesa que tem chamado atenção global é a DeepSeek, uma startup de inteligência artificial que recentemente lançou o modelo DeepSeek-R1.

Esse sistema rivaliza diretamente com os desenvolvidos por empresas dos EUA, como OpenAI e Meta, mas com um diferencial: foi desenvolvido a um custo muito menor.

O DeepSeek-R1 rapidamente tornou-se o aplicativo gratuito mais baixado na App Store dos EUA, ultrapassando o ChatGPT. O impacto foi tão grande que até mesmo as ações da Nvidia sofreram quedas acentuadas. Esse avanço não apenas mostra a capacidade da China de competir na corrida da IA, mas também desafia o domínio das big techs ocidentais.

Nova percepção global da China

Os casos do RedNote e do DeepSeek têm reformulado a percepção global da China, ao destacar a capacidade de inovação e influência tecnológica do país. Ambos estão contribuindo para uma nova percepção do país asiático entre os estrangeiros. 

Esses fenômenos fazem parte de uma estratégia mais ampla de soft power, na qual a China utiliza recursos culturais e tecnológicos para fortalecer suas relações internacionais e moldar sua imagem global.

China redefine seu soft power 

A influência global de um país não se restringe apenas à cultura e aos valores que exporta. O pesquisador Diego Pautasso, que estuda a China há mais de 20 anos, em conversa com a Revista Fórum argumenta que o soft power não pode ser dissociado da esfera material e tecnológica. 

Segundo ele, o sucesso do desenvolvimento, a postura diplomática e os produtos inovadores desempenham um papel fundamental na maneira como o mundo enxerga a China.

A mais recente investida nesse sentido é o avanço do país no setor de inteligência artificial com o lançamento de ferramentas gratuitas e abertas, como o DeepSeek. O modelo de IA da startup chinesa rapidamente superou concorrentes como ChatGPT na App Store dos Estados Unidos, destacando-se não apenas por sua eficiência, mas também por sua acessibilidade.

“O app de inteligência artificial aberto gratuito é, sem sombra de dúvida, um reforço na imagem de um país disposto a compartilhar conhecimento, expertise e tecnologia e a romper o monopólio das big techs cujos efeitos deletérios são para lá de conhecidos”, observa.

O impacto desse tipo de estratégia transcende o campo tecnológico, reforça Pautasso. A China, ao fornecer uma alternativa acessível às dominantes empresas do Vale do Silício, remodela a percepção internacional sobre seu papel na economia digital e nas relações internacionais. Ao mesmo tempo, desafia a lógica de monopólio das gigantes dos EUA e sugere um modelo alternativo de desenvolvimento tecnológico global.

Em um cenário onde o domínio da tecnologia se tornou um dos pilares da influência geopolítica, iniciativas como essa consolidam a China não apenas como um polo de inovação, mas também como um ator estratégico na construção de um mundo mais multipolar no setor digital.

Sobre o fenômeno do RedNote, Pautasso avalia com um “grande tiro no pé” dos EUA.

“A censura do Tik Tok abriu uma realidade oculta para muitos estadunidenses. Definitivamente eles não aceitam que o mundo está mudando rapidamente e lhes escapam a mão”, analisa.

China rompe estereótipos

Outro brasileiro que pesquisa a China, o professor e advogado Evandro Menezes de Carvalho, em entrevista à Revista Fórum, destaca que os casos do RedNote e do DeepSeek estão desmontando um dos mitos mais arraigados sobre o país: a ideia de que a China seria apenas uma imitadora incapaz de inovar. 

O lançamento de um modelo de inteligência artificial exponencialmente mais barato e eficiente que seus concorrentes ocidentais desafia essa visão ultrapassada e reforça o protagonismo chinês no cenário tecnológico global.

“Criar um modelo de inteligência artificial exponencialmente mais barato e melhor não deixa de ser uma inovação. A grande lição da China no fenômeno do Deep Seek mostra que a inteligência natural ainda é melhor do que a inteligência artificial”, afirma.

O avanço do DeepSeek mostra que a China está investindo fortemente em ciência, pesquisa e desenvolvimento, entregando produtos que não apenas competem com os ocidentais, mas os superam em diversos aspectos, elenca Carvalho.

Além do campo da inteligência artificial, o RedNote surge como outro exemplo do impacto das inovações chinesas, observa o professor. Com uma proposta mais atraente para o consumidor global, a plataforma reforça o potencial da China em criar tecnologias acessíveis, funcionais e estrategicamente disruptivas.

“Isso é apenas a ponta do iceberg dos inúmeros produtos, aplicativos e invenções que estão sendo feitas na China e que boa parte do Ocidente desconhece porque ela é também boicotada”, comenta.

A China, frequentemente tratada como uma sombra tecnológica, começa a se revelar como a outra face da inovação mundial. Para muitos, é a chance de finalmente enxergar “o outro lado da lua” e compreender que o país asiático não apenas acompanha, mas redefine o futuro da tecnologia, conclui Carvalho.

Superação da escassez

O advogado especializado em administração pública chinesa José Renato Peneluppi Jr, brasileiro radicado na China há 15 anos , explicou para a Revista Fórum como a potência asiática tem driblado as táticas de Washington para conter seu avanço tecnológico.

Para criar modelos de IA poderosos, são necessários chips de alta performance, e atualmente a NVIDIA é a única fabricante significativa dessa tecnologia nos Estados Unidos. No entanto, o governo dos EUA proíbe a venda desses chips para empresas chinesas, diz Peneluppi.

Diante dessas restrições, como a China conseguiu desenvolver um modelo mais avançado que o da OpenAI? Com um número limitado de chips da NVIDIA, insuficientes para um modelo robusto, eles implementaram inovações tecnológicas que otimizaram a eficiência, utilizando apenas uma fração dos recursos usados por OpenAI, Microsoft e Google.

Sem apoio de empresas dos EUA, a China produziu modelos de IA de ponta e os disponibilizou como código aberto. Isso significa que compartilharam não apenas os modelos, mas também o conhecimento detalhado do processo de desenvolvimento, permitindo que outros o reproduzissem. Além disso, forneceram a saída e o código, possibilitando um uso flexível, esclarece Peneluppi.

“Como resultado, o valor de muitos modelos da OpenAI despencou, pois agora existe uma alternativa gratuita e superior. A China está, sem dúvida, inovando de forma impressionante através do seu capital privado abundante e competitivo”, observa.

No que diz respeito ao RedNote, Peneluppi observou que o aplicativo chinês virou uma referência de liberdade. A internet chinesa, que até então era considerada um espaço controlado e vigiado, serviu de porto seguro para os estadunidenses, que sempre tiveram esse símbolo e sempre carregaram esse sentimento de liberdade na sua nação.

“Para os chineses foi um momento de orgulho, de felicidade, de entender que o sistema deles está acolhendo outros povos que procuram maior liberdade de diálogo. É como se o RedNote tivesse virado uma praça pública global para o encontro dos povos, para uma troca mais livre de informação e um diálogo mais franco”, conclui.

Políticas para promover o soft power

A China tem implementado diversas políticas para fortalecer seu soft power, buscando ampliar sua influência cultural e diplomática no cenário global. 

Uma das principais iniciativas nesse sentido é a criação dos Institutos Confúcio, estabelecidos pelo Ministério da Educação chinês em 2004. Esses institutos promovem a língua e a cultura chinesas em diversos países, funcionando como centros de intercâmbio cultural e educacional. 

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Além disso, o governo chinês anunciou planos para investir em projetos culturais que beneficiem diretamente a população, aumentando o acesso gratuito a espaços culturais e promovendo atividades que reforcem a imagem positiva do país no exterior. Essas iniciativas visam não apenas disseminar a cultura chinesa, mas também apresentar a China como uma nação moderna e inovadora. 

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No campo da inteligência artificial, a China tem se destacado ao incentivar a colaboração entre universidades, institutos de pesquisa e empresas para acelerar o desenvolvimento e a aplicação dessa tecnologia. Esse esforço não apenas demonstra a capacidade de inovação do país, mas também contribui para a construção de uma imagem de liderança tecnológica no cenário internacional. 

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Mito de Napoleão virou verdade

Embora a frase "Deixe a China dormir, pois quando ela acordar, o mundo tremerá" seja atribuída a Napoleão Bonaparte, não há registros históricos para confirmar que o imperador francês tenha realmente proferido essas palavras. 

Apesar disso, Napoleão expressou opiniões sobre a China durante seu exílio na ilha de Santa Helena, demonstrando uma visão estratégica sobre o potencial da nação asiática.

Segundo relatos de seu médico, Barry O'Meara, Napoleão alertava contra uma guerra com a China. Para ele, ainda que uma potência europeia obtivesse vitórias iniciais, isso apenas levaria os chineses a tomar consciência de sua própria força. Ele previu que, com o tempo, a China fortaleceria suas defesas, desenvolveria uma frota naval robusta e, eventualmente, poderia superar militarmente seus agressores.

Essas reflexões demonstram que Napoleão já enxergava a China como um império com vastos recursos e um potencial adormecido. Sua advertência sugeria que a prudência deveria guiar a política das potências ocidentais ao lidar com a China.

A despeito da popularidade da frase atribuída a Napoleão, historiadores, como Peter Hicks, afirmam que não há qualquer evidência documental que comprove sua autenticidade. De acordo com Hicks, nenhum registro da citação aparece nos discursos ou escritos do imperador, e é possível que a frase tenha sido atribuída a ele posteriormente, sem fundamento histórico.

Seja mito ou verdade, a ideia de uma China adormecida, mas poderosa, ressoa no mundo atual. E, com os avanços tecnológicos demonstrados pelo RedNote e pelo DeepSeek, a previsão de Napoleão – real ou não – parece estar se concretizando diante dos nossos olhos.

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