CHINA EM FOCO

'Borgen' x Realidade: como a guerra cultural molda a disputa pela Groenlândia

Série dinamarquesa foca na China, mas na vida real são os EUA que ampliam sua influência sobre o território

Como a guerra cultural molda a disputa pela Groenlândia.Série dinamarquesa 'Borgen' foca na China, mas na vida real são os EUA que ampliam sua influência sobre o territórioCréditos: Fotomontagem (Canva)
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Desde a Guerra Fria, o entretenimento ocidental tem sido uma ferramenta estratégica na guerra cultural, influenciando a percepção global sobre adversários políticos dos Estados Unidos. Filmes e séries refletem não apenas os temores de cada época, mas também servem como instrumentos para moldar narrativas geopolíticas.

Se antes a União Soviética dominava o posto de vilã nas telas, o fim da Guerra Fria levou ao surgimento de novos antagonistas, como terroristas do Oriente Médio e magnatas da tecnologia. Agora, a ascensão da China reacende o embate entre ficção e realidade.

Divulgação Netflix
Divulgação Netflix

A quarta temporada de Borgen: O Reino, o Poder e a Glória (2022) é um exemplo recente dessa dinâmica. A série dinamarquesa retrata a Groenlândia como alvo do interesse chinês devido a seus recursos naturais e posição estratégica no Ártico.

No entanto, na realidade, são os Estados Unidos que têm feito esforços concretos para aumentar sua presença no território. A inversão narrativa evidencia como a cultura pop pode ser usada para reforçar determinadas visões geopolíticas e desviar o foco dos verdadeiros protagonistas das disputas internacionais.

Groenlândia: o embate entre ficção e geopolítica real

O interesse dos Estados Unidos na Groenlândia não é novo. Em 2019, durante seu primeiro mandato na Casa Branca, Donald Trump sugeriu que os EUA comprassem o território da Dinamarca, comparando a ideia à aquisição do Alasca em 1867. A proposta foi rejeitada pelo governo dinamarquês e pela Groenlândia, que reafirmou sua autonomia. Como resposta, Trump chegou a cancelar uma visita oficial ao país nórdico.

Desde então, os EUA têm reforçado sua presença no território por meio da diplomacia e investimentos. Em 2020, Washington abriu um consulado em Nuuk, capital groenlandesa, e ofereceu financiamento para projetos de infraestrutura, evitando que investimentos chineses ganhassem espaço na região.

De volta à Casa Branca, em 2025, Trump voltou a afirmar que estava "determinado a tomar" a Groenlândia, elevando as tensões internacionais. A França, por exemplo, reagiu à declaração sugerindo o envio de tropas para reforçar a soberania da Dinamarca sobre a ilha.

Enquanto os EUA avançam na Groenlândia, a China tem sido mais discreta em sua presença. Pequim tem interesse na exploração de terras raras e no derretimento das calotas polares, que podem abrir novas rotas comerciais.

Em 2018, empresas chinesas tentaram financiar a construção de três aeroportos na Groenlândia, mas os EUA intervieram, oferecendo financiamento alternativo para impedir a influência chinesa. Além disso, em 2021, o governo groenlandês proibiu a exploração de urânio, dificultando ainda mais os investimentos chineses na região.

Apesar dessas movimentações, Borgen opta por apresentar a China como a principal ameaça ao território, ignorando as ações concretas dos EUA. A série ilustra como narrativas culturais podem ser usadas para reforçar determinadas percepções, distorcendo ou simplificando disputas geopolíticas complexas.

Áudiovisual na guerra cultural: uma linha do tempo

A construção de inimigos nas produções ocidentais sempre acompanhou os conflitos e interesses políticos da época. Desde a Guerra Fria até os dias atuais, vilões cinematográficos e televisivos refletem as mudanças na geopolítica global.

Anos 1950-1980: A Guerra Fria e os Vilões Soviéticos

Durante a Guerra Fria, a União Soviética era retratada como a grande ameaça ao Ocidente, e Hollywood e indústrias de outros países aliados reforçou esse medo com narrativas que apresentavam espiões comunistas e líderes soviéticos como vilões. Nessa fase, foi reforçada a ideia da União Soviética como inimiga do mundo livre, alimentando o sentimento anticomunista nos EUA.

  • Dr. Strangelove (1964) – Satiriza o medo da guerra nuclear entre EUA e URSS.
     
  • Rocky IV (1985) – O boxeador soviético Ivan Drago simboliza a brutalidade do regime comunista.
     
  • Top Gun (1986) – Embora os inimigos nunca sejam nomeados, é evidente que são inspirados na URSS.

Anos 1990-2000: O Fim da URSS e o Surgimento do Terrorismo

Com o colapso da União Soviética, os inimigos passaram a ser grupos terroristas do Oriente Médio, refletem o medo do extremismo islâmico após os ataques de 11 de Setembro. O entretenimento ocidental reforçou o estereótipo de que o maior perigo global vinha do mundo árabe.

  • True Lies (1994) – Vilões árabes são retratados como terroristas implacáveis.
     
  • 24 Horas (2001-2010) – A série apresenta diversas tramas onde terroristas do Oriente Médio são ameaças aos EUA.
     
  • Homem de Ferro (2008) – O primeiro vilão de Tony Stark é um grupo terrorista afegão.

Anos 2010-2020: A Ascensão da China e a Nova Guerra Fria

Com a ascensão da China como potência global, Hollywood se viu diante de um dilema: criticar Pequim poderia fechar as portas do valioso mercado chinês. A indústria cultural ocidental evita antagonizar diretamente a China, mas mantém narrativas sutis sobre sua ameaça.

  • Missão: Impossível - Efeito Fallout (2018) – Vilões genéricos evitam mencionar a China.
     
  • Top Gun: Maverick (2022) – Para não desagradar Pequim, símbolos de Taiwan foram retirados dos uniformes de Tom Cruise.
     
  • Borgen: O Reino, o Poder e a Glória (2022) – Retrata a China como agressiva na Groenlândia, invertendo a realidade geopolítica.

Quem controla a narrativa global?

A representação da China como a grande ameaça geopolítica na Groenlândia em Borgen se encaixa em um padrão maior da cultura pop ocidental: a utilização do entretenimento como instrumento de guerra cultural. Em diferentes períodos, Hollywood e as produções europeias têm moldado o imaginário global sobre quem são os "inimigos" do Ocidente.

A distorção da realidade geopolítica, seja retratando os soviéticos como vilões unidimensionais na Guerra Fria ou exagerando o papel da China em disputas territoriais, reforça determinadas narrativas e influencia a opinião pública. Dessa forma, a ficção não apenas reflete as tensões políticas do mundo real, mas também ajuda a justificar posturas diplomáticas e militares.

Seja em Borgen, nos blockbusters de Hollywood ou nas campanhas midiáticas, a guerra cultural continua sendo travada nos roteiros e telas do mundo inteiro. O desafio agora é discernir até que ponto essas narrativas refletem a realidade – ou apenas reforçam uma versão conveniente dos fatos.

O futuro dos vilões do ocidente

Desde a Guerra Fria até os dias atuais, a indústria do entretenimento tem sido usada para moldar a percepção do público sobre os desafios geopolíticos do Ocidente. Com a ascensão da China, as produções audiovisuais enfrentam um novo dilema: como criticar uma potência emergente sem perder acesso ao seu mercado bilionário?

No embate entre ficção e realidade, a Groenlândia se tornou um novo palco para disputas internacionais – tanto na política quanto na cultura pop. No entanto, a pergunta que fica é: quem serão os próximos vilões do Ocidente?

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