CHINA EM FOCO

Trágica morte de criança reabre feridas não curadas entre China e Japão

Aos 10 anos, menino filho de mãe chinesa e pai japonês é vítima de crime violento que reverbera tensões históricas entre os dois países asiáticos

Créditos: Reprodução The Online Citizen - Menino de 10 anos morto após ser vítima de um ataque violento em frente à escola na China reabre feridas das tensas relações com o Japão
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Uma tragédia que resultou na morte de um menino de apenas 10 anos - filho de mãe chinesa e pai japonês - após ter sido esfaqueado na cidade de Shenzhen, no sul da China, abriu feridas antigas e nunca curadas nas relações entre chineses e japoneses.

Desde o ataque, na última quarta-feira (18), o caso tem sido tema constante nas coletivas do Ministério das Relações Exteriores da China.

O porta-voz Lin Jian relatou que o menino de 10 anos foi esfaqueado a 200 metros da escola e que o agressor foi preso no local, estando o caso sob investigação. A China expressou profundo pesar pelo ocorrido e prometeu assistência à família do menino, que tem pais de nacionalidades japonesa e chinesa.

O incidente também gerou grande comoção no Japão, com o primeiro-ministro Fumio Kishida classificando o ataque como "extremamente desprezível" e exigindo uma explicação rápida de Pequim.

A comunicação entre os dois países está em andamento, e o vice-ministro chinês das Relações Exteriores assegurou ao embaixador japonês que o crime foi um caso isolado cometido por alguém com antecedentes criminais.

Caso isolado

Esse episódio se soma a um ataque semelhante ocorrido em junho, quando um cidadão chinês foi morto ao tentar impedir um agressor que atacava uma mãe e uma criança japonesas em Suzhou, província de Jiangsu, no leste do país, próxima a Xangai.

O porta-voz Lin Jian reiterou que ambos os eventos foram isolados, afirmando que casos desse tipo podem ocorrer em qualquer país e que a China continuará tomando medidas para garantir a segurança dos estrangeiros no país.

A situação tem gerado repercussão, mas as autoridades chinesas reforçam que não deve afetar as relações sino-japonesas e que o governo se compromete a manter a segurança de todos os cidadãos estrangeiros em seu território.

Pai da vítima divulga carta tocante

O pai da criança vítima da facada, Junpei Koyama, compartilhou nesta sexta-feira uma carta tocante após a trágica morte do filho, Hangping. Ele descreve o garoto "com uma alma mais gentil do que qualquer outra pessoa", que adorava desenhar e tinha grande talento para línguas, falando fluentemente japonês e chinês.

Koyama ressalta que a família não guarda ódio nem contra a China, nem contra o Japão, e que os considera igualmente como seus países e apela para que o crime não abale as relações entre os dois países.

"Nós não odiamos a China, assim como não odiamos o Japão. Independentemente da nacionalidade, consideramos os dois países como nossos. Apesar das diferenças culturais e de costumes, sabemos, melhor do que ninguém, que todos somos iguais. Portanto, não quero que os crimes de alguns poucos, com pensamentos distorcidos e desprezíveis, destruam a relação entre os dois países. Meu único desejo é que tragédias como essa não se repitam", escreveu.

O pai conclui com gratidão por ter tido Hangping como filho e promete continuar vivendo com força, buscando honrar o legado inacabado do menino.

Suspeito agiu sozinho

Em Shenzhen, local da tragédia desta semana, a polícia informou que o suspeito, identificado apenas pelo sobrenome Zhong, de 44 anos, foi preso no local logo após o crime. Zhong, de etnia Han, não tinha ocupação fixa e possuía um histórico criminal.

Em 2015, foi liberado sob fiança pela polícia de Dongguan, cidade próxima, sob suspeita de danificar instalações de telecomunicações. Já em 2019, foi detido em Shenzhen por perturbação da ordem pública ao falsificar informações.

Zhong confessou o ataque ao estudante japonês e, segundo as autoridades, agiu sozinho. A investigação concluiu que o caso foi isolado. Ele foi formalmente detido no dia 18 de setembro, conforme a legislação criminal chinesa, e o caso segue em investigação. Até o momento, as motivações do crime não foram divulgadas pelas autoridades.

Protocolo de emergência

Após o trágico incidente na Escola de Filhos de Expatriados Japoneses de Shenzhen, onde todos os alunos são crianças de nacionalidade japonesa que residem na cidade e arredores, as autoridades locais reagiram prontamente.

O Departamento de Educação do Distrito de Nanshan, onde a escola está localizada, formou uma equipe de consultores psicológicos para fornecer apoio emocional aos alunos. O objetivo é garantir assistência humanitária e cuidar do bem-estar psicológico das crianças afetadas.

Além disso, as autoridades municipais visitaram o hospital onde o estudante ferido estava sendo tratado e também foram à casa da família para prestar condolências. O governo local intensificou as medidas de segurança em escolas e áreas públicas, orientando as instituições de ensino a adotarem medidas preventivas para garantir a segurança de estudantes e residentes.

As autoridades de Shenzhen estão oferecendo apoio contínuo à família da vítima, facilitando o processo de luto e ajudando nas questões práticas de assistência junto a amigos e familiares.

Segurança pública na China

A China, reconhecida por seus baixíssimos índices de violência, apresenta uma das menores taxas de homicídios do mundo, com aproximadamente 0,5 homicídios por 100 mil habitantes, segundo dados de 2022 do Banco Mundial. A tragédia recente envolvendo a morte de um menino japonês esfaqueado em Shenzhen, portanto, gerou grande comoção no país.

Em comparação, países ocidentais como os EUA possuem taxas muito mais elevadas. Em 2021, os EUA registraram cerca de 6,9 homicídios por 100 mil habitantes, conforme dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), com a violência armada sendo um fator relevante para essa alta.

No Brasil, a violência é ainda mais alarmante, com uma taxa de 22,3 homicídios por 100 mil habitantes em 2022, de acordo com o Atlas da Violência 2023, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Comoção social

Na noite de 19 de setembro, moradores de Shenzhen prestaram homenagens no local do ataque ao menino japonês esfaqueado, levando flores e expressando indignação pelo ato de violência.

Muitas mensagens deixadas pelos cidadãos condenaram o agressor, descrevendo-o como alguém que desafiou os princípios da lei e da civilização. Um morador afirmou que a nacionalidade da criança não importava, pois, por viver e estudar em Shenzhen, ela era considerada "uma criança de Shenzhen".

O incidente gerou fortes reações nos dois países. Usuários japoneses na plataforma X (antigo Twitter), segundo relatos da mídia daquele país, pediram ao governo que cortasse relações diplomáticas com a China e orientasse os cidadãos a deixar o país, além de sugerirem a proibição de turistas chineses no Japão.

Na China, algumas postagens online acusaram escolas japonesas de serem centros de espionagem e exigiram seu fechamento.

As autoridades de Shenzhen reiteraram seu compromisso de manter um ambiente seguro para todos os residentes, incluindo estrangeiros, e de continuar adotando medidas para proteger a vida e os direitos de todos.

Tragédia na data do Incidente de 918

O ataque contra uma criança japonesa em Shenzhen, ocorrido no dia 18 de setembro de 2024, coincide com a data simbólica do Incidente de 918, também conhecido como Incidente de Mukden ou Incidente da Manchúria, de 1931.

Esse evento foi um marco crucial nas tensões sino-japonesas, servindo de pretexto para a invasão japonesa da Manchúria, região no nordeste da China.

O Incidente de Mukden começou com uma pequena explosão em uma ferrovia controlada pelos japoneses, nas proximidades da cidade de Mukden (atual Shenyang). Embora os danos tenham sido mínimos, o exército japonês culpou os chineses e utilizou o incidente como justificativa para ocupar a Manchúria.

Em 1932, o Japão estabeleceu o Estado fantoche de Manchukuo, sob o controle nominal do último imperador da China, Puyi, mas na prática, controlado pelos japoneses.

Este episódio representou um desafio à ordem internacional da época e violou os acordos da Liga das Nações e o Pacto Kellogg-Briand, que condenava a guerra como forma de resolver disputas.

A incapacidade da Liga das Nações de agir de forma eficaz contra o Japão ajudou a isolar o país e contribuiu para a escalada das tensões globais, culminando na Segunda Guerra Sino-Japonesa e no eventual envolvimento japonês na Segunda Guerra Mundial.

O Incidente de 918 permanece um símbolo da ocupação imperialista japonesa e das tensões históricas entre China e Japão.

Massacre de Nanjing, uma ferida aberta

Outro triste episódio que permanece como uma ferida nas relações entre China e Japão é o Massacre de Nanjing, ocorrido em dezembro de 1937 durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa. É um dos eventos mais brutais e trágicos da história moderna.

Sob a ocupação das tropas japonesas, a então capital da China, Nanjing, foi palco de um massacre que durou cerca de seis semanas. Estima-se que aproximadamente 300 mil civis e prisioneiros de guerra chineses foram mortos, e até 80 mil mulheres foram estupradas, em um dos maiores casos de violência sexual em massa.

Além das mortes, as tropas japonesas saquearam a cidade e destruíram propriedades, incluindo casas, comércios e edifícios públicos. O massacre é lembrado como uma das mais graves atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, com o Japão imperial alinhado às potências do Eixo, como a Alemanha nazista e a Itália fascista.

O evento ainda gera tensões nas relações sino-japonesas, já que, apesar de o governo japonês ter reconhecido oficialmente o massacre, alguns setores no Japão continuam a minimizar ou negar sua extensão, o que provoca ressentimento na China e em outros países asiáticos.

O Massacre de Nanjing continua a ser uma ferida aberta nas relações entre os dois países e é amplamente lembrado como um símbolo do trauma nacional na China e uma das maiores atrocidades da história da guerra.

Tensões históricas entre China e Japão

As tensões entre China e Japão têm raízes históricas, políticas, econômicas e geopolíticas. Essas questões moldam um relacionamento complexo e frequentemente tenso, embora ambos os países também mantenham importantes laços econômicos e diplomáticos.

História da Segunda Guerra Mundial: O legado das atrocidades cometidas pelo Japão durante a ocupação da China na Segunda Guerra Mundial, incluindo o Massacre de Nanquim (1937), continua a ser uma fonte de ressentimento. A percepção de que o Japão não reconhece plenamente ou não se desculpa adequadamente por seu passado militarista afeta negativamente as relações.

Disputa territorial nas Ilhas Senkaku/Diaoyu: Ambos os países reivindicam soberania sobre um grupo de ilhas no Mar da China Oriental, conhecidas como Senkaku no Japão e Diaoyu na China. Essa disputa territorial gera tensões periódicas, com confrontos diplomáticos e incidentes marítimos.

Militarização e Defesa: A expansão militar da China e o aumento do papel das Forças de Autodefesa do Japão têm levado a tensões. A China vê o fortalecimento das capacidades militares japonesas com desconfiança, enquanto o Japão expressa preocupações com as atividades militares chinesas na região, incluindo no Mar do Sul da China.

Econômico e Competição Regional: Embora China e Japão sejam grandes parceiros econômicos, eles também competem por influência política e econômica na Ásia. A Iniciativa do Cinturão e Rota da China e as iniciativas japonesas para construir alianças na região representam diferentes visões de desenvolvimento.

Política de Taiwan: A posição do Japão sobre o território chinês Taiwan tem gerado tensão. O Japão, embora siga a política de "uma China", apoia tacitamente a manutenção do status quo em Taiwan, o que é uma linha vermelha traçada por Pequim.

Visitas ao Santuário Yasukuni: As visitas de políticos japoneses ao Santuário Yasukuni, onde estão enterrados soldados japoneses, incluindo criminosos de guerra condenados, são vistas pela China como uma glorificação do passado militarista japonês.

Concorrência Tecnológica e Comercial: Ambos os países estão na vanguarda da inovação tecnológica e disputam a liderança em áreas como inteligência artificial, eletrônicos e infraestrutura de telecomunicações, o que pode exacerbar tensões econômicas.

Nacionalismo: O aumento do nacionalismo em ambos os países tem alimentado sentimentos anti-China no Japão e anti-Japão na China.

Aliança Japão-EUA: A estreita aliança de segurança do Japão com os Estados Unidos é vista com desconfiança pela China. A presença militar estadunidense no Japão e a cooperação estratégica entre Japão e EUA são percebidas por Pequim como uma ameaça à sua segurança.

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