CHINA EM FOCO

Black Myth Wukong: o videogame chinês que quebrou a internet

Envolto em polêmicas, jogo é baseado num dos principais clássicos da literatura da China, 'Jornada ao Oeste', quebra recordes de jogadores simultâneos no dia do lançamento e vira fenômeno global

Créditos: Divulgação - Jogo chinês vira fenômeno global
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A nova sensação no mundo dos videogames vem da China. "Black Myth: Wukong" quebrou recordes no dia de lançamento, nesta terça-feira (20), e atingiu um pico de 2,23 milhões de jogadores simultâneos no Steam (plataforma digital de distribuição de jogos, software e entretenimento), um número impressionante que destaca sua popularidade e aceitação pelo público global.

"Black Myth: Wukong", considerado o primeiro jogo AAA chinês com orçamento de blockbuster, estreou com grande expectativa, refletindo o esforço da China em se posicionar como uma potência cultural global no cenário dos videogames. Além disso, o título foi recebido com orgulho nacional na potência asiática, onde o debate sobre a representatividade cultural e a exportação do soft power chinês ganhou destaque.

O jogo chama atenção para a capacidade da China de competir no mercado global de jogos AAA. Essa categoria de games, a Triple A, refere-se a jogos desenvolvidos e publicados com um alto orçamento, com extensos recursos de desenvolvimento, grandes equipes e um significativo orçamento de marketing. O termo sugere que o produto é de alta qualidade e pretende oferecer uma experiência premium aos jogadores.

O jogo, que contou com um investimento superior a 50 milhões de dólares, se destaca pela jogabilidade sofisticada e gráficos de ponta e se estabelece como um dos projetos mais ambiciosos e caros já desenvolvidos pela indústria chinesa de videogames.

Desenvolvido pela Game Science e promovido pela Hero Games, o jogo é baseado na clássica literatura "Jornada ao Oeste" e se destaca por sua jogabilidade avançada e gráficos impressionantes. O jogo coloca os jogadores no papel de Sun Wukong, o Rei Macaco, e é celebrado por sua narrativa profunda e jogabilidade desafiadora.

Polêmica sobre o lançamento

A reação do lançamento do novo jogo também foi forte internacionalmente, com discussões significativas nas redes sociais e uma recepção calorosa em várias regiões, incluindo os Estados Unidos, onde um dos principais veículos, The New York Times, optou por focar nas polêmicas e não no jogo em si.

Segundo matéria intitulada "Hit Chinese Video Game Seeks to Curb ‘Negative Discourse'" ("Jogo Chinês de Sucesso Busca Conter 'Discurso Negativo'", em tradução livre) a recepção do jogo chinês foi envolta em controvérsias.

Antes do lançamento, diz o texto, a Hero Games emitiu diretrizes restritivas a streamers internacionais, proibindo discussões sobre temas sensíveis como política, feminismo, e a gestão da Covid-19 pela China, o que provocou críticas por parte da comunidade gamer.

Outra controvérsia envolve Feng Ji, co-fundador da Game Science, que está no centro de polêmicas sexistas devido a comentários considerados inapropriados e misóginos feitos por ele em entrevistas e materiais de recrutamento da empresa.

Em 2015, surgiram relatos de que a desenvolvedora de jogos utilizava insinuações sexuais em seus anúncios de emprego, e Feng Ji foi criticado por atitudes que minimizavam a importância das mulheres na comunidade gamer.

Esses comentários geraram indignação nas redes sociais, especialmente agora, com o lançamento do jogo "Black Myth: Wukong", quando o passado da empresa tem sido revisitado.

A hashtag "Black Myth: Wukong insulta mulheres" ganhou tração no Weibo, rede social chinesa, refletindo a desaprovação de muitos jogadores. Em resposta, a empresa removeu os conteúdos ofensivos, mas não ofereceu um comentário público direto sobre as críticas, deixando a polêmica em aberto.

Sexismo estrutural na indústria de games

O sexismo na indústria de jogos global é um problema persistente que se manifesta de várias formas e que, infelizmente, não se restringe à China. A misoginia do setor ocorre desde a representação estereotipada de personagens femininas nos jogos até a discriminação e o assédio de mulheres que trabalham na indústria. Historicamente, os jogos muitas vezes retrataram mulheres como personagens secundárias ou objetificadas, reforçando estereótipos de gênero.

Além disso, muitas desenvolvedoras, designers e jogadoras relatam enfrentar um ambiente de trabalho hostil, com casos frequentes de discriminação, assédio sexual e desigualdade salarial.

Movimentos como #GamerGate e relatos de cultura tóxica em grandes empresas de jogos, como a Ubisoft e a Activision Blizzard, trouxeram essas questões para o centro das atenções, levando a uma maior discussão sobre a necessidade de mudanças estruturais na indústria para promover um ambiente mais inclusivo e equitativo para todos.

Embora algumas empresas e desenvolvedores estejam fazendo esforços para abordar essas questões e melhorar a diversidade e inclusão, o sexismo ainda é um desafio significativo que a indústria global de jogos precisa enfrentar de maneira mais eficaz.

Tiro saiu pela culatra

Em conversa com a coluna China em Foco, o fã de games e estudante de ciências políticas Arthur Mendes, 23, comentou que "Black Myth Wukong" era aguardado com ansiedade por ele e boa parte do público gamer desde 2021. Por isso, admite que ficou feliz com o grande sucesso do lançamento do jogo, apesar das polêmicas envolvidas.

"Acredito que a orientação da Game Science de evitar certos tópicos nas críticas da imprensa tenha vindo de uma preocupação com a recepção do jogo pela sua origem chinesa. O objetivo era que as críticas fossem focadas no produto e que essas avaliações não fossem utilizadas para a realização de propaganda política anti-China por parte da mídia ocidental", observou.

No final das contas, o tiro saiu pela culatra, pois mesmo com a orientação polêmica da empresa desenvolvedora, o lançamento do jogo foi polemizado graças a essas orientações, especialmente a contra "propaganda feminista", considerando o histórico sexista da Game Science.

"O machismo na indústria de videogames é um problema com profundas raízes, que somente na última década começou a ser combatido pelo mercado ocidental de videogames, mais pelo crescimento do público gamer feminino do que por qualquer preocupação com inclusão", opina.

Mendes ressalta ainda que a questão do sexismo da Game Science deve ser levada a sério. Mas, observa, também é preciso levar em conta o duplo parâmetro da mídia ocidental, que se esforça para noticiar o machismo nesse caso específico, mas não em diversos casos de estúdios AAA estadunidenses e europeus.

"É irônico que, ao orientar os críticos a não falarem de certos temas para evitar que o debate político sobre a China ocupasse a discussão sobre o lançamento do jogo, a empresa fez com que boa parte das notícias da mídia ocidental focassem nessas orientações ao invés do jogo em si, e utilizassem isso para  atacar a indústria chinesa de videogames. A indústria de videogames é apenas mais um dos fronts da disputa do soft power, e 'Black Myth Wukong' é uma grande manobra chinesa para conquistar o público gamer ocidental, de forma que o jogo será posto sob uma régua de análise muito mais leniente com outros AAA",  finaliza Mendes.

'Embaixador' da China

O barulho do lançamento do novo jogo chinês foi tão estrondoso que foi até abordado durante coletiva regular de imprensa realizada pelo Ministério das Relações Exteriores da China nesta quarta-feira (21).

A Reuters observou que o videogame tem causado um grande impacto no mundo dos jogos desde a estreia e impressionou os jogadores com suas características culturais chinesas. "O Ministério das Relações Exteriores consideraria o jogo um 'embaixador' da China e quais ganhos diplomáticos mais amplos você esperaria deste desenvolvimento", questionou a agência.

A porta-voz Mao Ning admitiu não ter conhecimento sobre videogames, mas agradeceu ao questionamento por chamar a atenção para o jogo.

"O nome deste jogo sugere que ele é inspirado pelo clássico romance chinês Jornada ao Oeste. Acho que isso fala do apelo da cultura chinesa", respondeu.

A obra "Jornada ao Oeste" ("Journey to the West"), também conhecida como "Viagem ao Oeste", é uma das quatro grandes obras clássicas da literatura chinesa. Escrita no século XVI durante a dinastia Ming por Wu Cheng'en, é uma combinação de aventura, comédia, e elementos de espiritualidade budista, taoísta e confucionista, e tem sido extremamente influente na literatura e na cultura asiática ao longo dos séculos.

"Jornada ao Oeste" narra a peregrinação épica do monge budista Xuanzang (também conhecido como Tang Sanzang) da China para a Índia, com o objetivo de obter textos sagrados budistas (sutras) e trazer esses ensinamentos para o leste. Ele é acompanhado por três protetores que concordam em ajudá-lo como uma forma de expiação por seus pecados passados. Esses protetores são figuras icônicas e carismáticas:

  • Sun Wukong (Rei Macaco) - Um macaco nascido de uma pedra e dotado de poderes incríveis, ele é impulsivo e imensamente forte, conhecido por sua habilidade de transformar-se e pelo seu bastão mágico que pode mudar de tamanho.
  • Zhu Bajie (Porco Oito Preceitos) - Antigamente um comandante celestial, agora transformado em um porco glutão e preguiçoso, ele traz um tom cômico à narrativa com sua natureza lasciva e sua tendência a cair em tentações.
  • Sha Wujing (Areia Monástica) - Um demônio de rio reformado, caracterizado pela sua diligência e força constante, ele é o mais calmo e menos problemático dos três.

A obra não é apenas uma história de aventura; ela explora temas de redenção, a natureza da religião e a busca pelo autoaperfeiçoamento e iluminação espiritual. "Jornada ao Oeste" é rica em comentários sociais e utiliza alegorias para discutir a ética e a moralidade.

O texto também é conhecido por sua rica tapeçaria de mitologia e folclore chineses, incorporando uma variedade de demônios, deuses e outras criaturas sobrenaturais. A habilidade do Rei Macaco de desafiar os deuses e enfrentar inúmeras provações é uma metáfora para as lutas espirituais e físicas enfrentadas na busca pelo conhecimento e pela verdade espiritual.

"Jornada ao Oeste" teve um impacto duradouro na cultura popular asiática, inspirando uma miríade de adaptações em filmes, séries de televisão, operas tradicionais, e até mesmo videogames, como a nova sensação "Black Myth: Wukong". Personagens, especialmente o Rei Macaco, tornaram-se ícones culturais em muitas interpretações artísticas e de entretenimento.

O livro não apenas moldou a literatura e o entretenimento, mas também oferece insights sobre a filosofia e as crenças religiosas da China antiga, mantendo-se relevante até hoje como uma obra que fala sobre a jornada espiritual e pessoal.