Tradução: Hugo Albuquerque
No dia do aniversário da guerrilha que levou Cuba à Revolução, em 26 de julho de 1964, fez um mês exato que o líder camponês Francisco Julião (1915-1999) permanecia na prisão, onde foi confinado pela nascente Ditadura Militar. Os sertões, de Euclides da Cunha, foi um dos três livros que ele pediu para ler no cárcere, seguido de Os lusíadas de Camões, e, por fim, a Bíblia Sagrada, como ele pontuou em uma carta escrita à sua filha, datada daquele dia – depois publicada no livro Até quarta, Isabela!
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Depois de fazer seu discurso final no Congresso Nacional, com o golpe em curso, Julião passou três meses no interior de Goiás, sob o pseudônimo de Antônio Ferreira da Silva. Ele passou um ano e meio na cadeia, nunca recebendo sua cópia de Os sertões, e foi libertado por meio de um habeas corpus. Ele prontamente se exilou no México, onde permaneceu pelos 15 seguintes, até que a Lei de Anistia de 1979 permitiu o seu retorno junto com os demais exilados.
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Nascido no agreste de Pernambuco, Julião não era de origem camponesa, mas era filho e neto de proprietários de engenhos de açúcar. Ele ingressou na luta camponesa como advogado. Embora tenham existido muitas ligas camponesas organizadas em diferentes regiões e momentos da história do Brasil, inclusive aquelas associadas ao Partido Comunista, as Ligas Camponesas começaram no Engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão, a cerca de 80 quilômetros do Recife.
Lá, dez anos antes do golpe, os camponeses e trabalhadores agrícolas formaram a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores Pernambucanos (SAPPP) para enfrentar os aluguéis exorbitantes da terra, os despejos, o analfabetismo e a impossibilidade de enterrar seus mortos, problemas agravados pela entrada do capitalismo na zona rural – como narra Elide Rugai Bastos, em seu Ligas camponesas.
Com o apoio jurídico de Julião e por meio de uma batalha feroz, os trabalhadores rurais venceram suas demandas em 1959, levando à desapropriação da plantação para as mãos de 140 famílias. Essa vitória teve um impacto incrível para a luta camponesa na região – e foi um terremoto para os latifundiários. No Brasil, a luta dos “galileus”, os trabalhadores sindicalizados do Engenho Galileia, passou a simbolizar a luta dos camponeses nordestinos contra a exploração capitalista no campo.
O rápido crescimento das Ligas Camponesas, as quais mobilizaram centenas de milhares de militantes em 1962 em cerca de dez estados, gerou um jornal próprio, A Liga, e buscou construir seu próprio partido político, também despertando o interesse dos revolucionários chineses por afinidades óbvias. Julião visitou a China pelo menos uma vez durante esse período de intenso crescimento, embora não tenha havido cobertura midiática chinesa das suas visitas – mas é citado por Cecil Johnson em seu livro sobre o intercâmbio entre China e América Latina.
Após a Revolução Cubana, Julião, juntamente com a líder camponesa e sua esposa, Alexina Crespo, também visitaram Cuba várias vezes. Diante do aumento das ameaças de sequestro, Alexina e seus quatro filhos com Julião se mudaram para Cuba para viver e estudar em 1962, onde souberam da notícia do golpe em seu país de origem.
O fio vermelho entre Julião e Mao
Marxista desde a juventude, as Revoluções Chinesa e Cubana tiveram um impacto profundo no seu próprio pensamento e visão estratégica e ele se referiu, frequentemente, a elas nos seus escritos e discursos. Além de advogado, Julião foi escritor e poeta, e seu primeiro livro publicado foi uma coletânea de seus contos chamado Cachaça, publicado em 1951.
Como líder das Ligas Camponesas, escreveu diversas e importantes cartilhas populares que orientaram a luta camponesa, os quais podiam ser lidos como obras de poesia. Em A cartilha do camponês, de 1960, Cuba e a China são frequentemente chamadas apaixonadamente a unir os camponeses:
Teu inimigo cruel — o latifúndio — não anda bem de vida, e eu te garanto que a moléstia é grave. Não há remédio para ele. Morrerá espumando de raiva como um cão danado. Ou como um leão velho que perdeu as garras. Morrerá como morreu na China, um país muito parecido com o nosso Brasil. Morrerá como foi morto em Cuba onde o grande Fidel Castro entregou a cada camponês um fuzil e disse: “Democracia é o governo que arma o povo”. Eu fui lá e vi tudo, camponês.
Da mesma forma que os romances de Jorge Amado e Euclides da Cunha apresentaram o Brasil como um espelho da realidade chinesa, a situação pré-revolucionária do campesinato chinês também foi projetada nas lutas pela terra no Brasil, particularmente no Nordeste. As revoluções e os processos de reforma agrária na China e em Cuba, tendo o campesinato organizado como protagonista, foram retratados como o futuro eventual do Brasil.
Ao falar da tirania, da injustiça e da miséria trazidas pela grande classe latifundiária, Julião escreve: “Foi a união que acabou com tudo lá em Cuba. O mesmo aconteceu com a China. O mesmo acontecerá também aqui no Brasil!” Nos seus escritos e discursos, os povos cubano, chinês e brasileiro não só partilharam uma história comum de opressão colonial e feudal, mas também, inevitavelmente, partilharam um destino comum.
Nas páginas de abertura de Que são as Ligas Camponesas?, de 1962, escrito depois de visitar a China, Julião pinta um panorama de realidade de classe no interior do Brasil:
São quarenta e cinco milhões de seres humanos que esperam pela madrugada. São doze milhões de vendedores de força de trabalho, presos ao campo como à galé perpétua, de que falava Castro Alves. Essa população está assim dividida: proletários, semiproletários e camponeses. Os proletários são os assalariados. Os semiproletários são os colonos, os peões, os camaradas, os empreiteiros. Os camponeses são os foreiros ou arrendatários, os meeiros, os parceiros, os vaqueiros, os posseiros, os condiceiros e os sitiantes. Toda ela se encontra manietada pelo regime de servidão.
Nomeadamente nesse texto, Julião introduz o termo “semiproletariado” para descrever os trabalhadores agrícolas que podiam ter acesso a terras e meios de produção limitados para a agricultura de subsistência, mas dependiam, pelo menos parcialmente, da venda da sua força de trabalho para sobreviver. Essa nova classe, em parte trabalhadora, em parte camponesa, emergiu com a expansão capitalista no campo, acelerada naquele período.
Curiosamente, a escrita de Julião tem uma notável semelhança com a Análise das classes na sociedade chinesa, de 1926, de Mao Zedong, escrita quando o líder chinês trabalhava em contato estreito com as associações camponesas auto-organizadas na província de Hunan. O texto de Mao pressionou e prenunciou a eventual mudança do Partido Comunista da China, o qual deixou de se concentrar na organização dos trabalhadores industriais urbanos para se concentrar nas massas camponesas no campo.
Mao chamou de “semiproletariado” – um termo que ele introduz nesse texto para distinguir os trabalhadores agrícolas dos camponeses – de “os nossos amigos mais chegados [verdadeiros]” no processo revolucionário.
Diferentemente de Mao, no entanto, Julião priorizou os meios “legais e pacíficos” para a reforma agrária, centrados nas três frentes de mobilização no campo, no sistema judicial e na assembleia legislativa. Não raro, porém, ele soltava comentários vagos. Por exemplo, no Que são as Ligas Camponesas?, Julião finalizou um capítulo com a provocação: Para a reforma agrária radical. Na lei ou na marra. Com flores ou com sangue.
Dali em diante, na lei ou na marra se tornou o principal grito de guerra associado às Ligas Camponesas. Os meios pelos quais a reforma agrária seria conquistada – ou conquistada – estava no centro da questão agrária da época. O Primeiro Congresso Nacional dos Agricultores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte (MG), em novembro de 1961, reuniu 7 mil pessoas de vinte estados para debater esta mesma questão.
Os participantes incluíam representantes de organizações rurais e urbanas, notavelmente das Ligas Camponesas e a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), vinculada ao PCB, bem como políticos como o vice-presidente João Goulart.
Pode-se dizer que nesse congresso histórico a linha radical de reforma agrária – na lei ou na marra – liderada pelas Ligas Camponesas dominou a linha mais reformista ou legalista apoiada pelo PCB. Contudo, a forma como o “na marra” seria entendido dentro das próprias Ligas Camponesas e no movimento maior pela Reforma Agrária permaneceu um tema de grande debate.
Alexina Crespo: “Pedi armas a Mao Zedong”
Francisco Julião, embora a figura mais conhecida publicamente das Ligas Camponesas, também não foi o único líder sênior das Ligas a visitar a China. Enquanto Julião chefiava a parte jurídica e institucional das Ligas, era Alexina Crespo a responsável pelos trabalhos clandestinos – o que está presente em Memórias clandestinas, documentário de 2004, de Maria Thereza Azevedo.
Alexina, com o pseudônimo clandestino de “Maria” era a estrategista de guerrilha, guarda-costas pessoal interina de Julião, líder feminista, artista de teatro de fantoches e mãe de quatro filhos. Entre essas coisas, foi casada com Francisco Julião até 1963. Responsável pelas relações internacionais das Ligas, Alexina recebeu treinamento militar em Cuba, onde discutiu a estratégia de guerrilha do Brasil com Che Guevara, Fidel Castro e outros líderes cubanos.
Mais tarde, ela também se reuniu com chefes de Estado de países socialistas como a República Popular Democrática da Coreia, República Democrática do Vietnã e União Soviética – e outros como o Chile. Com o apoio de Cuba no planejamento estratégico e no armamento, as Ligas organizaram pelo menos oito dispositivos – postos avançados ou bases militares – no país para treino de guerrilha.
Embora houvesse opiniões diferentes sobre o rumo da luta armada no Brasil, as Ligas estavam entre as várias organizações que se voltaram para a luta armada na década de 1960, antes e depois do golpe liderado pelos militares. Respondendo a uma pergunta da entrevista se Julião, que sempre foi contra a luta armada, sabia da sua participação, ela não titubeou: “Sabia, sabia. Ele ficava, vamos dizer assim, na parte legal, institucional, os discursos. E nós ficávamos na parte clandestina, preparando as coisas, treinando os camponeses” – conforme o Questão agrária no Brasil, organizado por João Pedro Stédile.
Entre os movimentos em que esteve envolvida Alexina/Maria, houve uma visita que ela fez com as suas duas filhas, Anatilde e Anatailde, em 1962, à China, e um encontro pessoal com Mao Zedong. Suas filhas estavam a caminho da União Soviética para estudar, com a ajuda de Cuba, onde moravam. A Peking Review [Semana de Pequim, vol. 2, n. 17, abr. 1962, p.22], importante revista nos esforços diplomáticos culturais da China, documentou sua visita com uma fotografia e uma breve nota, referindo-se à “conversa cordial” entre Mao e Alexina, “esposa de Francisco Julião, presidente das Ligas Camponesas do Nordeste do Brasil, e suas duas filhas”.
A viagem foi organizada pela Associação de Amizade China-América Latina, cujo presidente, Chu Tunan, organizou para eles um banquete de boas-vindas e uma visita à China. É talvez um dos raros momentos de uma recepção de tão alto nível por parte dos líderes da China Vermelha para uma mulher da América Latina – sem um título organizacional oficial ou filiação governamental – que viajava com as suas duas filhas.
Sobre o conteúdo da sua “conversa cordial” com Mao, Alexina pediu diretamente o apoio chinês na luta armada das Ligas Camponesas. Em entrevista, ela reconheceu:
Sim, eu falei na frente das meninas mesmo. Você tinha de aproveitar o momento. Se eu consegui ser recebida por ele, tinha de aproveitar e falar o que devia falar. Eu pedi apoio, ele perguntou quantas armas nós tínhamos. Eu disse que tínhamos muito pouca coisa. Ele não deu uma resposta logo, o chinês é muito cauteloso. Mais tarde, ele mandou uma delegação de três companheiros para verificar como estava a situação.
Segundo Alexina, a delegação chegou ao Brasil e foi recebida no aeroporto. Depois de uma conversa com Julião e outro alto dirigente, Clodomir Santos de Morais, os convidados chineses partiram. Ela suspeitava que o fato de Clodomir ter sido preso logo após a reunião acabou fazendo com que o lado chinês recuasse. Após o golpe, Alexina continuou sua vida política no exílio com os filhos; no Chile organizou uma frente contra o golpe no Brasil e na Suécia, onde viveu muitos anos, participou de uma associação de brasileiros exilados pela ditadura.
Alexina só retornou ao Brasil no início da década de 1980, após a Lei da Anistia. Infelizmente, como acontece com muitas mulheres revolucionárias, pouco foi escrito sobre Alexina em comparação com Julião – e grande parte da sua história foi arquivada e, atualmente, está sendo compilada por seu filho Anacleto Julião junto de um sobrinho-neto seu.
A luta por Reforma Agrária: da velha Guerra Fria à nova Guerra Fria
Brasileiros que eram comunistas ou suspeitos de serem vermelhos, como Francisco Julião, não foram os únicos a serem presos pelo governo pós-golpe. Na verdade, em 3 de abril de 1964, dois dias após o golpe, nove cidadãos chineses foram presos no Brasil, como relatou o Peking Review em uma extensa reportagem.
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Eles eram sete representantes comerciais e dois correspondentes da Xinhua – os mesmos que o então vice-presidente João Goulart havia concordado em receber no Brasil após sua famosa visita à China. Os nove chineses foram acusados de “subversão do Brasil” e “espionagem” com base em evidências soltas, que incluíam um rolodex com nomes de oficiais militares brasileiros supostamente marcados como “para serem mortos, enforcados, baleados ou afogados”.
Os apelos chineses à solidariedade com os prisioneiros foram acompanhados de perto pela CIA. Em seu relatório, “Protesto, condenação, exigência: uma operação mundial de propaganda comunista chinesa dirigida contra o Brasil”, todas as organizações e países aos quais a China enviou uma “mensagem fraterna” em relação às prisões foram rastreados e enquadrados como parte de uma “propaganda anti-Brasil”.
Na era da Nova Guerra Fria, essas narrativas anticomunistas continuam a ser utilizadas, uma vez que histórias de cidadãos chineses, especialmente nos Estados Unidos e em outros países do Norte Global, sendo acusados ou presos por espionagem, tornam-se cada vez mais comuns.
Enquanto estava sob as duras condições de prisão, Julião conseguiu escrever uma carta para sua filha recém-nascida, Isabela, em pedaços de papel que acabaram sendo contrabandeados para o mundo. Pessoas arriscaram suas vidas para reproduzir e compartilhar a carta – um poema de esperança ao campesinato – posteriormente publicada como, Até quarta, Isabela!
Dirigindo-se à filha, ele reflete sobre a dignidade humana negada quando uma colher é negada a uma pessoa na prisão, relembrando os tempos na China, quando até aprendeu a comer com pauzinhos. Ele os chamou de seus “companheiros indispensáveis”. Apesar das tentativas de brutalizar, humilhar e esmagar o espírito humano e as forças populares organizadas, Julião afirmou a continuidade da luta:
Mas há uma coisa que não para: o estômago. Essa víscera vive em perpétuo movimento. Se pudesse ser abolida, a Paz já teria sido implantada sobre a Terra. Desde que adquirimos a consciência de que a primeira condição para manter a vida é lutar contra a fome, passamos a lutar simplesmente por isso. O estômago está mais próximo da terra do que os nossos pés… Daí, a luta de classes, que não é uma invenção marxista, mas uma imposição do estômago.
Seis décadas após o golpe militar, 50 anos desde o estabelecimento dos laços diplomáticos entre o Brasil e a China e quase 40 anos desde o restabelecimento da democracia no Brasil, a luta contra a fome continua no país, assim como a luta pela reforma agrária. Em um dos maiores produtores agrícolas do mundo, nos dados de 2020-2022, 70 milhões de pessoas sofrem de insegurança alimentar, enquanto dez milhões de pessoas enfrentam fome e desnutrição.
O Brasil tem uma das maiores concentrações fundiárias do mundo, com coeficiente de Gini de 0,86 para desigualdade na distribuição de terras, principalmente nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. O Nordeste também tem o maior número de pequenos agricultores familiares, mas tem os níveis mais baixos de acesso a maquinaria agrícola, com uma taxa de mecanização inferior a 3% – contra uma média nacional de 13%, e a China com 87%.
Hoje, não vivemos um período de revoluções como o que marcou as décadas de 1950 e 1960, e a luta pela soberania nacional pode não ser vencida com a luta armada. Em vez disso, encontrar caminhos independentes para sair do subdesenvolvimento para os países do Sul Global, que constroem instituições multilaterais como os BRICS, defendidos tanto pela China como pelo Brasil.
Lula sabe que esse caminho não será fácil. Ele próprio foi preso longamente, em um conluio de guerra jurídica entre os interesses do imperialismo norte-americano e setores da burguesia e militares brasileiro. Em entrevista à mídia chinesa Guancha em 2022, Lula criticou a desgastada tática de golpes apoiados pelos Estados Unidos, que impede o desenvolvimento dos países latino-americanos:
Não é possível que a América Latina nasceu para ser pobre. Não é possível que toda vez que um país na América Latina começa crescer, tem um golpe, e esse golpe sempre tem alguém dos estados unidos, está sempre um embaixador dos Estados Unidos.
Naquela ocasião, quando questionado pelo entrevistador Eric Li por que outros países do BRICS tiveram baixo desenvolvimento econômico em comparação com a China, Lula respondeu: “A China é um produto da revolução liderada pelo presidente Mao [Zedong] em 1949. Esse partido na China tem poder e um governo forte. Quando tomar decisões, o povo respeitará essas decisões. Isso é algo que não temos no Brasil”. Por esses comentários, as grandes corporações da mídia brasileira atacaram Lula por querer instalar uma “ditadura chinesa” e um “comunismo” no Brasil.
Da mesma forma, a ex-presidenta Dilma Rousseff, que foi presa e torturada pela ditadura militar e perdeu a presidência num golpe em 2016, enfrentou a reação da mídia por afirmar uma posição de não alinhamento com os Estados Unidos em uma palestra na qual proferiu que “nosso lugar não é com os EUA, mas é a independência, ao lado da China”. Sessenta anos depois, vemos as mesmas forças de classe a utilizar as mesmas narrativas da Guerra Fria que as lançadas contra Goulart e Julião na década de 1960.
Construir uma reforma agrária popular!
Contudo, como escreveu Julião no cárcere, a luta de classes nunca para; é uma imposição do estômago. Enquanto houver fome, haverá luta de classes. Este ano marca mais um aniversário histórico, que é o da fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), há quarenta anos, nascido das brasas da ditadura militar e na herança das Ligas Camponesas, juntamente com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a teologia da libertação da Igreja Católica.
O MST, o maior movimento social da América Latina, organiza mais de dois milhões de camponeses e trabalhadores rurais em 24 estados. Eles veem o processo de ocupação e desapropriação de terras subutilizadas, de acordo com a Constituição do Brasil, como forma de construir o poder da classe trabalhadora, produzir alimentos saudáveis por meio da agroecologia, lutar pela reforma agrária, impulsionar a transformação social do país e construir o internacionalismo.
Ao longo de quatro décadas de luta, o MST conquistou terras para 450 mil famílias que hoje vivem em assentamentos, com outras 90 mil em acampamentos. Inevitavelmente, estas vitórias da classe trabalhadora organizada perturbaram a burguesia brasileira.
Por sinal, no ano passado, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) composta por parlamentares de extrema direita abriu uma “investigação” sobre o MST, na qual nenhuma das acusações foi comprovada. Durante o depoimento de sete horas, o líder nacional do MST, João Pedro Stédile, foi questionado sobre sua relação com a China, após ter visitado o país como parte da delegação oficial de Lula em abril de 2023.
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Quando questionado se existia uma organização chinesa equivalente ao MST, Stedile respondeu que “Não, porque em 1949 eles fizeram reforma agrária. [Para] vocês que querem tanto derrotar o MST, a fórmula é simples: façam a reforma agrária que no outro dia desaparece o MST”.
Este ano, o MST, em cooperação com os governos dos estados do Nordeste do Brasil, a Universidade Agrícola da China, os produtores de maquinaria e a Baobab – Associação Internacional para a Cooperação Popular, começou a trazer maquinaria chinesa para pequenos produtores no interior do Nordeste. Segundo Stédile, o setor de máquinas agrícolas do Brasil é controlado por um “oligopólio de três empresas transnacionais” que produz máquinas que atendem ao grande agronegócio e não à agricultura familiar.
A cooperação com a China, que é o maior produtor de máquinas para a agricultura de pequena escala, é uma “aliança estratégica” para criar futuras fábricas no Brasil com tecnologia chinesa como parte do desenvolvimento industrial no interior do Brasil. Hoje, em comparação com o início do período socialista, a China prefere exportar o desenvolvimento em vez da ideologia comunista – maquinaria em vez de armas – mas esta cooperação marca outro capítulo na história de décadas entre a China e o Brasil na luta pela reforma agrária.
Como proclamou Julião em seu último discurso no Congresso Nacional durante o desenrolar do golpe de 1964:
É inútil querer obstaculizar e querer impedir o avanço do povo brasileiro…[que] já tomou a decisão de conquistar a sua emancipação econômica, a sua emancipação social. E ela será conquistada como nós costumamos dizer nos nossos encontros com as massas camponesas do Nordeste do Brasil. Será conquistada na lenda ou na lavra. Será conquistada pacificamente ou através da revolução?
Sessenta anos depois, esta luta inacabada pela emancipação do povo brasileiro continua.
* Tings Chak é diretora de arte e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e co-fundadora do Dongsheng News. Atualmente, ela faz doutorado na Universidade Tsinghua e vive em Pequim.
* Artigo originalmente publicado na revista Jacobina