CHINA EM FOCO

A inevitável expansão do Brics e sua institucionalização digital, por Evandro M. de Carvalho

Cúpula do Brics na África do Sul vai debater uso de moedas nacionais para as relações comerciais, ampliação de membros do bloco, cooperação em infraestrutura digital e governança digital

Créditos: VCG
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Dentre os temas que estão na ordem do dia para a próxima Cúpula do Brics na África do Sul estão o uso de moedas nacionais para as relações comerciais intra-Brics, e a ampliação do número de membros do bloco. Há um terceiro tema que deveria merecer maior atenção: a cooperação em infraestrutura digital para o desenvolvimento de uma economia e uma governança digital.

Enquanto a proposta de se ter uma moeda comum do Brics ainda encontra-se no âmbito das intenções, a que visa ampliar acordos para financiar o comércio bilateral em moeda nacional é já uma realidade. Os riscos à soberania econômica decorrentes da dependência excessiva da moeda estadunidense e a necessidade de se reduzir os custos de transação nas relações comerciais intra-Brics dão pertinência a esta agenda.

O processo de desdolarização da economia global parece um movimento irreversível e impulsionado pelo dedicado esforço diplomático da China em promover o yuan nas relações com seus países parceiros. Grande parte dos acordos comerciais entre Rússia e China já estão sendo conduzidos com rublos russos e yuan. O acordo entre a China e o Brasil para viabilizar a transação direta entre real e o yuan nas operações comerciais bilaterais teve uma boa repercussão no Brasil, sinalizando que os atores econômicos brasileiros estão receptivos a esta medida.

Se o uso de moedas locais é um consenso entre os países Brics, o mesmo não se pode dizer em relação à expansão do bloco.

Mas se o uso de moedas locais é um consenso entre os países Brics, o mesmo não se pode dizer em relação à expansão do bloco. Este é um tema politicamente complexo em razão do redesenho da geopolítica internacional que a ampliação do grupo poderá provocar. A China já vinha sinalizando querer a ampliação do Brics desde quando propôs o Brics-Plus em 2015. O Brasil, por sua vez, entendia serem suficientes os diálogos de outreach com países convidados a participarem das Cúpulas.

A proposta de expansão do Brics ganhou novo fôlego devido a um “estímulo externo”. Mais de vinte países manifestaram interesse em integrar definitivamente o bloco. Qual o motivo deste interesse crescente pelo Brics que, nos seus primeiros anos, era visto com um certo ceticismo pela comunidade internacional – sobretudo pelas potências ocidentais? A busca por um multilateralismo inclusivo – em oposição ao multilateralismo seletivo agora patrocinado pelos EUA – e por benefícios concretos para o desenvolvimento econômico e social dos países em desenvolvimento pode ser uma das respostas a esta questão.

A proposta de expansão do Brics ganhou novo fôlego devido a um “estímulo externo”. Mais de vinte países manifestaram interesse em integrar definitivamente o bloco.

Alguns analistas sustentam que a expansão do Brics poderia enfraquecê-lo por tornar a tomada de decisão mais difícil. Outros alertam para o risco do Brics ser visto pela comunidade internacional como um G20 dos países em desenvolvimento ou uma versão, em menor escala, do G77. Há os que veem nos pedidos de adesão feitos por Irã, Arábia Saudita, Nicarágua, Afeganistão e Emirados Árabes Unidos a formação de um bloco anti-democrático ou com um perfil anti-Ocidental. Há, também, aqueles que dizem que a expansão do Brics é do exclusivo interesse da China. Muitos argumentos contrários, pouco se discute sobre as vantagens com a expansão.

Ainda que possa atender ao interesse nacional chinês, a expansão do Brics poderá diluir mais do que concentrar o poder chinês. É certo que o aumento do número de países é um desafio para o bloco, mas este fato somente poderá engessá-lo se não houver objetivos e métodos de trabalho bem estabelecidos. A falta de uma institucionalidade, neste caso, é um problema. O Brics tampouco seria um novo G20 ou uma versão do G77. A agenda reformista da governança global para um multilateralismo inclusivo é uma marca do Brics em um contexto internacional muito diferente daquele do Século XX.

O foco do Brics no âmbito doméstico de cada um de seus membros é no desenvolvimento socioeconômico de seus povos.

O Brics também não é um bloco que se configura como “anti-qualquer coisa” – basta ler atentamente as declarações de todas as cúpulas. Se não é um bloco dedicado a promover a democracia no âmbito doméstico de cada país, tampouco é um bloco que combate o regime democrático. O foco do Brics no âmbito doméstico de cada um de seus membros é no desenvolvimento socioeconômico de seus povos. Daí se poderia extrair um critério importante para que novos países ingressem no grupo: ter efetivo compromisso com a promoção da educação e o combate à extrema pobreza. Um país sem extrema pobreza e com população com bom nível educacional é um país de um povo soberano.

Brasil e Índia estão reticentes quanto à expansão do Brics. Entendem que é preciso definir os critérios para se aceitar novos membros. Em relação ao Brasil, o presidente Lula mostrou simpatia para o ingresso da Venezuela e da Argentina. Mas a possibilidade da Argentina integrar o Brics parece não agradar uma parcela do governo brasileiro e do próprio Ministério das Relações Exteriores. Os diplomatas brasileiros receiam que o Brasil perca protagonismo ou recursos de poder na sua relação com os outros países do Brics. Naturalmente, o ingresso da Argentina no Brics precisa estar inserido em uma moldura que atenda aos interesses da política externa brasileira. O problema é que esta moldura ainda não está definida no governo Lula. O apoio do governo Lula para o ingresso da Argentina no NDB não resolve esta questão, mas aponta para uma direção.

Sabemos que o Brics não é uma organização internacional. Neste sentido, não há regras pré-estabelecidas sobre adesão de novos membros. O processo de adesão tornou-se, por este motivo, demasiadamente aberto e eminentemente político. Este é o momento, portanto, para se discutir a institucionalização do BRICS, isto é, torná-lo um organismo internacional, ainda que com uma estrutura institucional simplificada. A discussão sobre os critérios para adesão de novos membros é típica de um acordo constitutivo de uma organização internacional e daria maior segurança jurídico-política para todos os países membros. Ademais, a efetiva institucionalização cria as condições para uma gestão mais transparente, menos dependente de um ou outro país, e cria mais uma proteção para o bloco contra interferências externas indesejáveis.

Melhor do que se limitar à discussão sobre quem entra e quem não entra no Brics, é “arrumar a casa”, e dar a ela uma estrutura de que já é merecedora para garantir um futuro ainda melhor para o Brics.

O Brics deve aproveitar o seu potencial para uma cooperação intensa voltada para o desenvolvimento de suas agendas conectadas às novas tecnologias e à promoção de uma infraestrutura digital

Por fim, o Brics deve aproveitar o seu potencial para uma cooperação intensa voltada para o desenvolvimento de suas agendas conectadas às novas tecnologias e à promoção de uma infraestrutura digital. Este é o futuro para o Brics e se conecta com uma proposta de uma institucionalização digital da organização visando uma estrutura mais eficaz, simplificada e de fácil acesso a todos os povos do Brics. Para além de expandir o número de membros do Brics, é preciso, também, expandir o seu alcance nas sociedades dos países membros. Uma expansão gradual e abrangente que permita aos seus membros fazerem uso de todo seu potencial.

* Evandro M. de Carvalho é professor de Direito Internacional da UFF e da FGV Direito Rio.
* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum