De BERLIM | A Alemanha assistiu a um marco sombrio em sua política nacional nesta quarta-feira (29), quando o partido União Democrata Cristã (CDU), sigla conservadora que lidera as pesquisas para as eleições gerais de fevereiro, se uniu à extrema direita do Alternativa para a Alemanha (AfD) para aprovar uma moção anti-imigração no Bundestag, o parlamento alemão.
A decisão representa a quebra do chamado Brandmauer – o "cordão sanitário" que impedia alianças entre partidos democráticos e a legenda extremista. O episódio acendeu o alarme entre lideranças políticas e organizações da sociedade civil, que veem no movimento um sinal perigoso para uma futura coalizão de governo com o AfD, legenda que tem entre seus quadros entusiastas do nazismo.
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A moção, que não tem força de lei, mas serve como diretriz para futuras decisões governamentais, propõe a rejeição sistemática de imigrantes sem documentos nas fronteiras alemãs e reforça políticas de deportação. O projeto foi apresentado pelo bloco conservador CDU/CSU e obteve 348 votos a favor, 345 contra e 10 abstenções, sendo que o apoio do AfD foi decisivo.
A votação ocorre às vésperas das eleições antecipadas de 23 de fevereiro e reflete uma guinada à extrema direita do CDU sob a liderança de Friedrich Merz, que adotou um discurso parecido com o do AfD com relação à imigração. Ao levar o projeto adiante sem descartar previamente o apoio do AfD, Merz rompeu com a tradição democrática do pós-guerra alemão, na qual partidos tradicionais rejeitavam qualquer colaboração com a extrema direita.
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Lideranças políticas reagiram com indignação. O chanceler Olaf Scholz, do Partido Social-Democrata (SPD), atacou a decisão de Merz e alertou para o perigo de ceder espaço a forças autoritárias.
"O senhor quer que violemos a legislação europeia, algo que só Viktor Orbán fez até aqui. Política, em nosso país, não é pôquer", declarou o chefe de governo, que tentará mais um mandato como chanceler nas eleições de fevereiro.
Do lado da AfD, a comemoração foi aberta. O parlamentar Bernd Baumann declarou no plenário: "Algo novo está começando". Já a líder do partido, Alice Weidel, celebrou nas redes sociais: "Um dia histórico para a Alemanha".
A estratégia de Merz, ao que tudo indica, era contar com o apoio da extrema direita para viabilizar suas propostas de endurecimento das políticas migratórias, uma bandeira que ele tem empunhado desde os recentes ataques violentos atribuídos a imigrantes em situação irregular. Ao aceitar os votos do AfD, entretanto, ele sinalizou para futuras negociações e alianças com os extremistas caso vença a eleição e sua legenda precise de mais apoio para formar um governo.
Reação
A decisão gerou uma onda de indignação dentro e fora do Bundestag. Protestos tomaram as ruas de Berlim, especialmente em frente à sede da CDU, onde centenas de manifestantes denunciaram a aproximação do partido com a extrema direita e alertaram para os riscos do crescimento do discurso xenofóbico no país.
Líderes religiosos também expressaram preocupação. Representantes de igrejas evangélicas e católicas divulgaram uma carta pedindo que Merz recuasse, alertando para os riscos de normalizar discursos ultranacionalistas e medidas que ferem os direitos humanos.
Angela Merkel
Até mesmo a ex-chanceler Angela Merkel, que é filiada ao CDU, mesmo partido de Friedrich Merz, fez uma raríssima declaração pública sobre a política alemã desde que deixou o poder e criticou seu correligionário por quebrar o "cordão sanitário" ao aceitar o apoio da extrema direita.
"Considero errado não se sentir mais vinculado a essa proposta [de isolar a extrema direita] e, com isso, permitir conscientemente, pela primeira vez em uma votação no Bundestag alemão, uma maioria com os votos da AfD. Em vez disso, é necessário que todos os partidos democráticos, conjuntamente e além das fronteiras partidárias, não como uma manobra tática, mas com honestidade no conteúdo, moderação no tom e com base no direito europeu vigente, façam tudo o que for possível para evitar, no futuro, atentados terríveis como os ocorridos recentemente, pouco antes do Natal, em Magdeburgo, e há poucos dias, em Aschaffenburg", escreveu Merkel em seu site.
Futuro sombrio?
As pesquisas eleitorais apontam o CDU de Merz na liderança, com cerca de 30% das intenções de voto, seguida pelo AfD, que ultrapassa os 20%. O SPD de Scholz e seus aliados Verdes aparecem com cerca de 15% de apoio.
Diante desse quadro, o gesto de Merz ao votar com a extrema direita pode ser mais do que uma manobra parlamentar momentânea – sinaliza um prenúncio de alianças futuras. O CDU, que historicamente rejeitava qualquer aproximação com o AfD, agora indica que pode romper esse pacto não apenas no Bundestag, mas também na formação de governo.
Se esse caminho se concretizar, a Alemanha poderá viver seu governo mais à direita desde a Segunda Guerra Mundial, com um partido que tem membros investigados por neonazismo participando de decisões estratégicas do país.
O crescimento do AfD
A Alemanha vive uma crise política que vem sendo um prato cheio para a extrema direita, representada pelo AfD, partido com claras aspirações neonazistas e que possui ligações comprovadas com grupos extremistas.
Fundada em 2013, a legenda conseguiu uma cadeira no parlamento alemão, pela primeira vez, em 2017 - hoje, já são 77 deputados.
Trata-se de uma organização ultrarradical que abriga os membros mais extremistas da Alemanha. O AfD defende abertamente ideias xenofóbicas, racistas, segregacionistas e violentas. A principal plataforma política da sigla são os projetos anti-imigração, permeada de retóricas ultranacionalistas que remetem ao nazismo. Diversos membros do partido, inclusive, já tiveram comprovadamente relações com grupos neonazistas e fizeram falas com tal teor.
Desde 2021, o AfD é monitorado pelo serviço de inteligência interno da Alemanha, o BfV, por tentativa de enfraquecer a constituição democrática do país.
Em 2024, o partido foi o mais votado na eleição regional da Turíngia – a primeira vez que uma legenda de extrema direita vence um pleito estadual desde o regime nazista – e garantiu a segunda maior bancada no parlamento da Saxônia. Situação parecida se deu em Brandemburgo, onde o AfD também ficou em segundo lugar e, por pouco, não vence o pleito.
O crescimento do AfD está intimamente ligado à atual crise política que abala o governo de Olaf Scholz. Com uma série de impasses internos e a falta de consenso entre os partidos da coalizão, temas como economia, inflação e política migratória vêm gerando insatisfação entre os eleitores, que enxergam na legenda extremista uma resposta à instabilidade governamental.
A postura crítica do AfD em relação à União Europeia e ao euro também ganha força em meio às dificuldades econômicas que impactam a população alemã. Neste sentido, a sigla se aproveita do descontentamento generalizado, apresentando-se como alternativa para eleitores que veem no partido uma maneira de protestar contra o status quo e a paralisia do governo Scholz.
O CDU, partido que lidera as pesquisas para as eleições de fevereiro, garantiu em diversas ocasiões que não aceitaria formar um governo com o AfD, mas o fato de Friedrich Merz ter aceitado o apoio partido extremista no projeto anti-imigração vem gerando preocupação.
Na Alemanha, o sistema parlamentar exige que o partido vencedor das eleições atinja a maioria absoluta para formar um governo sozinho. Caso contrário, é necessário buscar uma coalizão com outros partidos para alcançar a maioria no parlamento e, assim, indicar o chanceler.