ELEIÇÕES NA VENEZUELA

Boaventura de Souza Santos diz que Brasil vai ter que sair do muro no caso Venezuela

Lula mantém cautela e aguarda resultado das eleições venezuelanas; ultradireita só reconhece resultado se for da oposição

Boaventura de Souza Santos.Créditos: Renato Araújo/Agência Brasil/Wikimedia Commons
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O doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, professor Boaventura de Souza Santos, declarou no último dia 31 de julho que o Brasil precisa sair do muro no caso das eleições venezuelanas. O argumento da possibilidade de “fraude eleitoral” já foi extensivamente propagado pela mídia tradicional e segundo ele, “mais tarde ou mais cedo o Brasil tem de se decidir de que lado está no novo horizonte geopolítico e geoestratégico mundial em curso”.

A Venezuela, detentora da maior reserva de petróleo do mundo, tem sido alvo de intervenções estrangeiras há décadas. A razão principal para esse interesse é a ausência de controle norte-americano sobre as Forças Armadas e os recursos naturais venezuelanos.

Ao longo do século XX, os EUA manipularam eleições e apoiaram oligarquias locais para garantir seus interesses, uma estratégia que se repete com a candidatura de Maria Corina Machado, representante de uma das famílias mais ricas do país e com um programa alinhado com a extrema-direita, segundo Boaventura.

“O seu programa eleitoral é muito semelhante ao de Javier Milei e já se comprometeu em entrevista que, se fosse presidente, mudaria a Embaixada da Venezuela de Tel Aviv para Jerusalém. É um programa de extrema-direita que tem sido apoiado pelos EUA e, ultimamente, pelo oligarca dos oligarcas, Elon Musk”, disse o sociólogo ao site Resistência Lírica.

“Por não controlar os dois recursos, os EUA têm usado as duas estratégias ao seu dispor (para além das interferências eleitorais e apoio à oposição): participação em golpes de Estado, que podem ou não incluir tentativas de assassinato dos líderes a abater; e sanções econômicas”

O país venezuelano sofre há quase duas décadas o peso das sanções econômicas, que provocaram um colapso humanitário sem precedentes e de emigrações, e ainda pode sofrer mais 930. “Um país com tantos milhões de cidadãos obrigados a emigrar não pode estar bem. E compreende-se que muitos desses emigrantes vejam na derrota de Nicolas Maduro o fim das sanções e a esperança de voltar”.

É preciso de cinco observações para além das acusações de fraude, de acordo com o sociólogo:

1 - A oposição venezuelana só aceitaria os resultados das eleições se vencesse, seguindo uma tendência entre forças de extrema-direita. Isso deve ser um alerta para forças democráticas, pois a insistência na auditoria pode ser usada como pretexto por grupos que pretendem minar a democracia. 

2 - O sistema eleitoral da Venezuela é amplamente considerado seguro e protegido contra fraudes, com múltiplas etapas de verificação. Embora nenhum sistema seja infalível, ele é visto como mais seguro comparado a sistemas de outros países, como os EUA e Portugal.

3 - A defesa da democracia venezuelana por grupos de extrema-direita, que em seus próprios países praticaram fraudes eleitorais e golpes de Estado, como Donald Trump, Javier Milei e Jair Bolsonaro levanta questionamentos.

4 - Países europeus reconheceram Juan Guaidó como presidente da Venezuela em 2020 sem verificar os processos democráticos, ao contrário do rigor atual na avaliação das eleições venezuelanas. Isso destaca uma inconsistência nas exigências de observadores externos, que deveriam ser aplicadas universalmente e supervisionadas pela ONU.

5 - A escolha de Edmundo Gonzalez Urrutia como substituto de Maria Corina Machado na oposição venezuelana é questionável, especialmente considerando seu passado potencialmente comprometido com a Operação Centauro, uma operação de contra-insurgência em El Salvador que envolveu graves violações de direitos humanos.

‘Brasil precisa se posicionar’

A ultradireita correu para denunciar uma suposta fraude no sistema de votação venezuelano, e a mídia tradicional brasileira, como esperado, insiste em dizer que Lula não reconhece a vitória de Nicolás Maduro. O governo, segundo nota divulgada pelo Itamaraty na semana passada, aguarda a publicação de todos os dados eleitorais para "transparência, credibilidade e legitimidade" sobre o resultado das eleições na Venezuela em uma posição de cautela.

O professor acredita que a posição tomada é necessária, mas ainda não é tudo neste momento. “Compreendo a cautela, pois, afinal, ainda há pouco, os EUA interferiram de maneira brutal na política interna do Brasil. Mas, por outro lado, só defendendo a soberania dos outros países é que o Brasil, ou qualquer outro país, poderá defender eficazmente a sua própria soberania quando a tempestade imperial chegar. Em todo o caso, é melhor atuar coletivamente do que individualmente. Faz falta um maior ativismo da Comunidade de Estados Latino-Americanos y Caribenhos (Celac), agora que a União de Nações Latino-Americanas (Unasur) desapareceu”, destacou.