RAFAEL CORREA

Milei é um "psicopata preocupante", diz ex-presidente do Equador

Bolsonaro foi um "acidente de percurso", avalia.

General.Milei já se vestiu de general Ancap, da Liberlândia; Correa identifica nele um perigo para o futuro da América Latina.Créditos: Reprodução de vídeo e Luiz Carlos Azenha
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CARACAS -- Já faz quase seis meses que Javier Milei tomou posse na Argentina, mas até agora ele não conversou com o presidente Lula. Falando a respeito, o ocupante do Planalto justificou: “Eu não conversei com o presidente da Argentina porque eu acho que ele tem que pedir desculpas ao Brasil e a mim, ele falou muita bobagem. Eu só quero que ele peça desculpas".

Durante a campanha, Milei endossou o slogan bolsonarista, chamando Lula de "ladrão". Convidou e deu a Bolsonaro e seus filhos palco na Argentina. Além de desconhecer o convite feito pelo Brasil para que a Argentina aderisse aos BRICS, Milei deu uma guinada na política externa e quer seu país como sócio preferencial da aliança militar do Atlântico Norte, quando a Argentina fica no Atlântico Sul.

Brasil e Argentina, parceiros tradicionais, nunca viveram uma situação parecida.

Na sexta-feira, 21, o ex-presidente do Equador, Rafael Correa, recebeu a revista Fórum para uma entrevista na casa que ocupa provisoriamente em Caracas. Condenado por corrupção no Equador -- ele alega que foi vítima de lawfare, como Lula no Brasil --, vive na Bélgica. O ex-presidente acompanha de perto a política brasileira. Ele tem uma filha que é correspondente do Le Monde Diplomatique no Rio de Janeiro.

Na entrevista, Correa fez uma análise do avanço da direita na América Latina. Ele é um grande defensor da integração regional, como foi Hugo Chávez e seguem sendo Lula, Cristina Kirchner e Evo Morales.

Para Correa, enquanto Bolsonaro foi um "acidente de percurso" na política brasileira -- prisão de Lula e facada -- Javier Milei emergiu do desespero dos argentinos com o fracasso da democracia.

Milei pode ter um impacto significativo no futuro da região. Seria, portanto, muito mais perigoso que Bolsonaro, que não conseguiu se reeleger e Correa considera "um primário".

A seguir, a primeira parte da entrevista (resumo nos vídeos abaixo):

Fórum: Como vê as eleições na Venezuela?

Correa: A Venezuela sempre foi uma democracia. Eles tiveram eleições, mas como não ganharam o que eles [EUA e aliados] queriam, teremos eleições no dia 28 de julho. Temos campanha, candidatos de oposição participando, podem questionar porque não ganham o que eles querem que ganhem. Lembrem-se que inventaram um governo paralelo e deram o título a um deputado de terceira classe [Juan Guaidó], que numa praça se autoproclamou presidente e foi reconhecido pelos Estados Unidos e Europa. Apesar disso, a Venezuela e o governo venezuelano sobreviveram e apenas sobreviver é um sucesso. 

Fórum: E o processo de recuperação da Venezuela?

Correa: Aqui a grande vítima é o povo venezuelano, com as sanções ilegais [dos Estados Unidos] a partir de 2013-2014. Foi Obama quem iniciou o bloqueio econômico, que levou milhões de venezuelanos a deixar o país. Mais de 50 bi de dólares em prejuízo, os ganhos com petróleo caíram de U$ 2 bi para U$ 75 milhões. 

As refinarias [da Venezuela] usam tecnologia americana, com o bloqueio não funcionam, a falta de gasolina, os cortes de energia...

Tudo isso, de uma forma muito imaginativa, eles foram superando, a produção de petróleo já está se recuperando. Agora estamos chegando a 900 mil barris/dia, mas caiu a 400 mil barris/dia, hoje é mais que o dobro. A Venezuela está se recuperando, infelizmente o dano foi muito grande e o sofrimento humano muito grande, principalmente por causa da imigração que o bloqueio produziu, de todas as classes, mas muito talento humano teve que sair do país.

Fórum: Sobre a direita na América Latina, podemos falar em um bloco formado por Noboa, Bukele, Bolsonaro, Milei? Ou são processos distintos?

Correa: Acho que temos que diferenciar, não podemos colocar todos na mesma cesta. [Nayib] Bukele [El Salvador] não é Bolsonaro. Noboa [Daniel, presidente do Equador] não é Milei [Javier, presidente da Argentina]. 

Noboa na verdade se faz passar por social democrata. É uma criança vaidosa, com seus milhões, totalmente despreparado para governar. Ele tem um brinquedo novo, ele pensa que mora em uma ilha de bananas [Noboa é herdeiro de uma fortuna criada na produção de bananas], mas não é necessariamente um extremista como Milei.

Bukele teve grandes sucessos e também grandes erros, mas pacificou El Salvador. Acho que ele ultrapassou os limites, atacou os Direitos Humanos, mas o que ele fez foi uma surpresa, e ele não é um cara estúpido, cuidado, não vamos subestimar só porque ele está em outro campo [político].

Bolsonaro é alguém primário. Já Milei não está em seu juízo perfeito, a gente vê seu ódio, sua frustração, suas psicopatias na própria cara, um cara que fala com seu cachorro morto. Ele disse que não iria negociar com a China, que só iria negociar com o mundo civilizado, que uma das civilizações mais antigas do planeta [China] não era uma civilização, e agora, está negociando os swaps cambiais com a China [empréstimos].

Ele disse que o Papa tinha ligação com o mal e foi visitá-lo no Vaticano, ou seja, ele não tem sangue no rosto, ele é um psicopata, isso é preocupante.

Por que essas pessoas surgem? Bom, no Brasil foi uma armadilha. Roubaram a democracia do Brasil quando roubaram a liberdade do Lula.

Roubaram a democracia do Equador quando roubaram de mim, não a minha liberdade, mas a minha reputação, me condenando por "influência psíquica" [no caso local da Odebrecht]. Um dia antes da minha inscrição como candidato, roubaram a democracia do povo equatoriano porque, caso contrário, [Guilherme] Lasso nunca teria sido presidente. Eles impediram que o político com maior apoio, do maior movimento político, participasse das eleições.

Portanto, o Bolsonaro foi um acidente, com aquela armadilha contra Lula. A eleição de Milei talvez seja a mais representativa de uma extrema direita que surge por vontade das pessoas, não necessariamente como truque, como foi com Bolsonaro no Brasil. Acredito que seja uma expressão de decepção com a democracia, porque ela não conseguiu dar os frutos necessários para melhorar o padrão de vida.

A Argentina atingiu uma inflação de 140%. Os salários foram pulverizados. Alberto Fernández teve azar, ele enfrentou uma seca, teve muitos efeitos externos negativos e naquela situação de desespero as pessoas acreditam que não tem nada a perder, nada mais a perder, e sempre há algo mais a perder.

Também temos os vieses cognitivos, especialmente na América Latina. Uma distorção que faz você perder a racionalidade. Quando há notícias falsas que reforçam minhas convicções, acredito nelas, mesmo que depois se prove que são falsas. É um viés cognitivo.

Um viés cognitivo faz maximizar as probabilidades de vitória e minimizar as probabilidades de derrota, como acontece nos jogos de loteria. É como o jogador inveterado que aposta de novo sabendo que racionalmente a probabilidade de ganhar é praticamente zero.

Nesse desespero eu tenho um cara que se oferece para resolver o problema da inflação, que vai resolver o problema elétrico, problema de segurança, é evidente que é mentira, é evidente que é bobagem, mas... os eleitores apostam nisso.