VIOLÊNCIA DIGITAL

Luigi Mangione: caso revela dinâmica da "isca do ódio" nas redes

Levantamento de reações de internautas ao assassinato de CEO da área de saúde aponta para um ponto de ruptura que pode normalizar violência política nos EUA

Luigi Mangione: caso revela dinâmica da "isca do ódio" nas redes.Suposto assassino de CEO de uma gigante da sáude dos EUA acende sinal de alerta para a normalização da violência políticaCréditos: Verso Books
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O assassinato de Brian Thompson, CEO da UnitedHealthcare, provocou uma onda de reações nas redes sociais marcada pela  glorificação do crime e pelo uso do episódio para alimentar discussões polarizadas.

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O caso, além de destacar a insatisfação com o sistema de saúde dos EUA, escancarou o uso do "rage-baiting" (isca de ódio, em português) como ferramenta de engajamento digital.

Polarização em alta após o crime

Thompson, de 50 anos, foi morto a tiros em Nova York em 4 de dezembro, enquanto chegava a um hotel para uma conferência de sua empresa. O principal suspeito, Luigi Mangione, 26, foi preso dias depois, e um manifesto encontrado com ele denunciava a "ganância corporativa" do setor de saúde.

Nas redes sociais, no entanto, a reação se afastou da tragédia pessoal. De acordo com o relatório do Network Contagion Research Institute (NCRI), plataformas como Twitter/X, TikTok e Telegram registraram uma onda de conteúdos glorificando o crime.

O levantamento do NCRI revela que entre as dez postagens mais engajadas no Twitter/X, seis apoiavam explicitamente ou ridicularizavam a vítima, gerando dezenas de milhões de impressões. Uma postagem específica, que sugeria o início de um "movimento de guerra de classes", alcançou 1,8 milhão de visualizações.

O documento alerta ainda para a proliferação de ameaças e informa que grupos extremistas no Telegram estão divulgando nomes de outros executivos do setor de saúde, incentivando ataques similares. Algumas mensagens expandem a retórica violenta para figuras públicas como Donald Trump e Elon Musk.

O NCRI também chama a atenção que a exaltação de atos violentos, antes confinada a fóruns como 4chan e 8chan, agora está migrando para plataformas mais amplas, aumentando o risco de escalada. A dinâmica, aponta o documento, pode criar "estruturas de permissão" para mais violência, gerando um ciclo de retroalimentação entre glorificação e novos ataques.

O relatório também inclui exemplos específicos de postagens com alto engajamento (algumas apresentadas em capturas de tela no documento). Entre elas, estão comentários que satirizam a morte de Thompson ou criticam o sistema de saúde dos EUA, além de memes que ironizam o incidente.

Esse episódio reforça a urgência de monitorar o conteúdo extremista nas redes sociais e entender como esses discursos são amplificados, gerando impactos além do ambiente digital.

Fenômeno do "rage-baiting" em evidência

O caso Thompson é um exemplo claro do uso do "rage-baiting", estratégia que busca engajamento ao provocar reações intensas, como raiva ou indignação. Pesquisadores alertam que essa prática, impulsionada por algoritmos que priorizam conteúdos com alto engajamento, está normalizando discursos extremistas.

"A glorificação do suspeito mostra como os algoritmos amplificam mensagens de ódio, criando a ilusão de que essas opiniões são majoritárias", avalia William Brady, psicólogo social da Universidade de Michigan, em entrevista à BBC.

Insatisfação com a saúde nos EUA

O assassinato de Thompson e as reações polarizadas evidenciam a frustração com o sistema de saúde dos EUA. Uma pesquisa conduzida pela organização sem fins lucrativos Kaiser Family Foundation (KFF) revelou que 58% dos estadunidenses relataram enfrentar problemas com seus planos de saúde.

As principais queixas incluem negativa de cobertura, atrasos na autorização de procedimentos médicos e altos custos, mesmo entre aqueles que pagam mensalidades elevadas.

A pesquisa aponta que os problemas com planos de saúde têm efeitos devastadores na saúde e no bem-estar da população dos EUA. Muitos evitam buscar tratamento ou adiam consultas médicas devido aos custos. Essa dinâmica é preocupante em um país que já enfrenta desigualdades no acesso à saúde, agravadas por um sistema predominantemente privado.

Além disso, os altos custos do sistema de saúde contrastam com os resultados de outros países desenvolvidos. Os EUA têm o sistema de saúde mais caro do mundo, mas continuam atrás de várias nações em indicadores como expectativa de vida e taxas de mortalidade infantil.

Apesar das críticas crescentes, reformas estruturais no sistema de saúde enfrentam resistência significativa no Congresso dos EUA, em grande parte devido ao poderoso lobby das seguradoras e da indústria farmacêutica.

Segundo o grupo Open Secrets, que monitora o financiamento de campanhas políticas, a indústria de seguros de saúde gastou mais de US$ 60 milhões em doações para políticos democratas e republicanos nas últimas eleições.

Normalização da violência política

Essa insatisfação foi canalizada de forma perigosa para o caso de Thompson. Postagens nas redes sugerindo outros alvos corporativos já geram preocupação entre especialistas e autoridades.

O consultor sênior da NCRI, Alex Goldenberg, disse à BBC que a glorificação e a exaltação do incidente e do suspeito são diferentes de tudo que ele já viu.

Ele caracterizou a resposta generalizada nas mídias sociais ao assassinato do CEO da empresa de saúde como um ponto de virada, um catalisador para a normalização da violência política, que nos Estados Unidos era até então tradicionalmente confinada a extremistas.

"O atirador realmente se transformou em um meme que canalizou queixas amplamente difundidas nos Estados Unidos contra a indústria de saúde", ressalta Goldenberg.

Estratégia digital que transforma ódio em engajamento e lucro

Outro exemplo que mostra como funciona a isca de ódio nas redes é o da criadora de conteúdo Winta Zesu, de 24 anos, revelou à BBC como construiu sua fama no TikTok explorando essa tática.

Em 2023, ela faturou US$ 150 mil com vídeos que deliberadamente irritam os espectadores, gerando milhões de visualizações. A prática difere do clickbait ao buscar reações emocionais intensas, como raiva, para aumentar o alcance nas redes sociais.

As plataformas sociais têm lidado de forma desigual com o fenômeno. Enquanto plataformas como Meta e TikTok implementam políticas de desmonetização para conteúdos extremistas, o Twitter/X, sob a gestão de Elon Musk, alterou seu modelo para premiar engajamento sem distinção entre conteúdo informativo e desinformação.

 TikTok, YouTube e Twitter/X impulsionam o fenômeno ao remunerar criadores com base em interações. Segundo especialistas, algoritmos favorecem comentários negativos, amplificando conteúdos extremos e criando a impressão de que posições radicais são majoritárias.

Isca do ódio na política

Em um contexto eleitoral, como o dos EUA em 2024, o "rage-baiting" também foi explorado politicamente. O fenômeno ganhou destaque com a polarização em torno de figuras como Donald Trump e Kamala Harris, que transformou o debate político em um campo de ataques pessoais. O discurso de ódio virou uma estratégia para mobilizar bases políticas.

No Brasil, o comportamento de parte dos bolsonaristas diante da internação do presidente Lula reflete uma lógica semelhante. Mensagens com tom de ódio e desinformação inundaram as redes sociais após a notícia da hospitalização do mandatário. Termos como “pulso de morte” e teorias conspiratórias sobre a saúde do presidente dominaram postagens em plataformas digitais.


 

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