Wayne LaPierre (74), o ‘poderoso chefão’ do lobby armamentista dos EUA, renunciou ao cargo de CEO da National Rifle Association (NRA) na última sexta-feira (5) às vésperas do início do julgamento, em tribunal do júri de Nova York nesta semana, de um caso de corrupção milionário que beneficiou a ele e outros chefões. O processo buscava, justamente, afastá-lo do seu cargo, além de impor sanções econômicas a ele e os outros réus.
Em agosto de 2020 a procuradora-geral de Nova York, Letitia James, entrou com ação pedindo a dissolução da NRA, cuja corrupção “é tão ampla”, nas palavras da procuradora, que seria necessária sua extinção para dar fim aos danos causados de forma permanente.
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Segundo a procuradora, LaPierre, Wilson Phillips, Joshua Powell e John Frazer - diretores da associação que foram denunciados - "instituíram uma cultura de auto-negociação, má administração e negligência na NRA que era ilegal, opressiva e fraudulenta".
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Um exemplo de má conduta alegada no processo afirma que LaPierre visitou as Bahamas mais de oito vezes em avião particular, usando fundos destinados à NRA, por um custo total de 500 mil dólares. "Seguimos os fatos e a lei", disse ela. "Chegamos à conclusão de que a NRA infelizmente estava servindo como um cofrinho pessoal para quatro réus individuais".
Na iminência do julgamento começar, LaPierre renuncia e deixa em seu lugar Andrew Arulanandam, que assume como CEO interino. Ele estava no comando desde 1991. No comunidado de renúncia, no entanto, ele não citou o processo que o acusa de enriquecer ilegalmente com a NRA. Em reunião de cúpula na cidade de Irving, no Texas, alegou passar por problemas de saúde ao anunciar a decisão.
“É com orgulho por tudo o que conquistamos que anuncio minha renúncia da NRA. Fui membro desta organização por boa parte da minha vida adulta, e nunca deixarei de apoiá-la, assim como sua luta pela defesa da liberdade da Segunda Emenda da Constituição [que permite a posse de armas]. Minha paixão pela nossa causa arde profundamente quanto sempre”, declarou LaPierre.
Pérolas de LaPierre
Como uma típica liderança de extrema direita, LaPierre é famoso por suas bravatas, fanfarronices e mentiras. Logo após um trágico ataque a tiros na escola primária Sandy Hook, em Connecticut, em 2012, ele poderia ter ficado calado, mas veio a público dizer que “a única coisa que pode parar um cara mau com uma arma é um cara bom com uma arma”. Além do uso proselitista da tragédia, também afirmou uma inverdade.
Ainda sobre a mesma tragédia, disse que restringir o acesso a armas não evitaria outros episódios. “Não podemos perder tempo com legislações que não vão funcionar. Precisamos pressionar o Congresso para que ponha seguranças armados nas escolas já”.
Anos depois, na campanha eleitoral de 2016, ele apoiava Trump. Argumentou que Hillary Clinton, a candidata do Partido Democrata, não seria uma verdadeira apoiadora da causa feminina porque “as mulheres americanas não são livres até que tenham armas para se defender”.
Além disso, foram inúmeros os episódios em que expressou seu racismo. Em 2013, ele justificou o ‘liberou geral de armas’ nos EUA para o jornal The Daily Caller, por conta de “gangues de latino-americanos que estão tomando conta dos EUA”. Já em discurso de 2018, culpou os judeus por diversos problemas globais.
Por fim, na convenção anual da NRA de 2023, celebrada no aniversário do massacre de Nashville (Tennessee), um dos mais fatais da história, e semanas depois de outro massacre, em Luisville, no Kentuck, LaPierre afirmou que ativistas e políticos armamentistas “não podem dormir tranquilos em suas casas, enquanto desarmamentistas fazem suas carreiras livremente”.
NRA
Fundada em 1871 como um grupo recreativo projetado para "promover e incentivar o tiro de espingarda", a National Rifle Association tornou-se uma das organizações políticas mais poderosas dos EUA.
A NRA agora faz lobby pesado contra todas as formas de controle de armas e argumenta agressivamente que mais armas tornam o país mais seguro. Se baseia e defende firmemente uma interpretação contestada da Segunda Emenda à Constituição dos EUA, que alega dar aos cidadãos dos EUA o direito de portar armas.
A organização ostentou alguns membros de destaque ao longo dos anos, incluindo o ex-presidente George Bush, pai. Bush renunciou ao grupo em 1995, depois que La Pierre se referiu a agentes federais após o atentado em Oklahoma City como "bandidos de botas".
Nos últimos anos a NRA vive uma espécie de crise. Se em 2019, no seu auge, tinha cerca de 6 milhões de membros, hoje está com pouco mais de 4 milhões. Sua receita também vem caindo.
A NRA gasta cerca de 250 milhões de dólares por ano, muito mais do que todos os grupos de defesa do controle de armas do país juntos, tornando-se um influente grupo lobista dentro dos projetos de poder do Partido Republicano, de Donald Trump. Nesse contexto, nos primeiros anos da gestão Trump, a partir de 2017, se aproximou do clã Bolsonaro.
A NRA, o clã Bolsonaro e o Proarmas
À época da realização do plebiscito do desarmamento, em 2005, durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente do Brasil, o armamento civil era uma pauta praticamente inexistente na sociedade brasileira e a então irrelevante família Bolsonaro estava preocupada em comprar pistolas .40 para as forças de segurança e esterilizar as mulheres das favelas do Rio de Janeiro a fim de combater a violência urbana, conforme suas próprias propagandas eleitorais do ano anterior e declarações ainda mais antigas.
O debate sobre armamentos e segurança pública ainda girava em torno do lobby vinculado às forças de segurança e suas pautas, que por sua vez eram alimentadas pelas ações policiais que via regra atingem o “andar de baixo” da sociedade. De lá pra cá, muita coisa mudou nesse âmbito, e o que já era complicado, ficou ainda pior.
Foi naquele ano que a NRA chegou ao Brasil para auxiliar a campanha contrária à entrega das armas. A ajuda dos lobbistas gringos contribuiu com a virada no plebiscito que permitiu aos pró-armas saírem vencedores. A ajuda não foi somente financeira, mas sobretudo retórica – apresentando uma construção de pensamento que veio a se encaixar perfeitamente nos velhos discursos da hoje chamada “bancada da bala” que, ao longo dos quase 40 anos de democracia formal, vêm buscando institucionalizar o desrespeito aos direitos humanos e à própria democracia, elaborando leis baseadas em sentenças do tipo “bandido bom é bandido morto”.
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Um documentário publicado recentemente pela Vice News revelou esse processo e mostrou, entre outras coisas, a semelhança discursiva. Nas cartilhas da NRA, por exemplo, é comum vermos o argumento de que para combater estupros, basta as mulheres estarem armadas. E bem, não faltam pesquisas que comprovam o contrário. Mas o importante é saber que foi nesse momento, quando o velho obscurantismo brasileiro se encontrou com os discursos pseudo libertários da extrema direita dos EUA, que o cenário atual começou a ser desenhado.
Ao longo de mais de uma década, entre o plebiscito de 2005 e o “liberou geral” das armas de Bolsonaro, as duas facções armamentistas – a que foca nas forças de segurança e a que defende o armamento civil – se confundiram no debate público com discursos que se retroalimentavam mirando os mais pobres. A retórica puramente reacionária passou a ser cada vez mais embalada pelas teorias conspiratórias dos EUA traduzidas por Olavo de Carvalho em seus livros e cursos. Tais ideias e seus efeitos práticos formariam mais adiante o imaginário e a construção de pensamento do que hoje é conhecido como a extrema direita brasileira de maneira mais ampla. Especificamente no tema das armas tudo se encaixava: se trabalharia para alçar um governo de extrema-direita ao poder que, em simbiose com a escalada de ataques à democracia e à própria República, introduziria liberações para compra e posse de armas, expandindo um mercado com enorme potencial.
Mas tudo isso ainda era muito vago até o ano de 2017 quando, impulsionado pela pré-candidatura do patriarca do clã, Eduardo Bolsonaro começou a costurar os apoios entre a extrema direita brasileira, representada politicamente pela sua família, e a dos EUA, em especial com a NRA e toda a sua história e expertise na defesa dos interesses armamentistas. A articulação aconteceu no contexto em que os EUA tinham Donald Trump – e todas as suas semelhanças com o bolsonarismo – à frente da Casa Branca.
Naquele ano, Eduardo Bolsonaro fez viagens aos EUA para participar de eventos da NRA, entre eles o Shot Show de Las Vegas, o principal do setor em todo o planeta. Eduardo ainda voltaria aos EUA, junto com o pai e o irmão Flávio, para participar de novos eventos dessa natureza entre 2017 e 2018. Na edição de 2022, Eduardo Bolsonaro voltou ao Shot Show de Las Vegas, dessa vez convidado pela IWI – Israeli Weapon Industry, fabricante de armas israelense que faturou uma nota em contatos com as forças de segurança brasileiras nos últimos anos.
Pois bem, Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 e logo no primeiro mês do seu mandato editou uma série de decretos que revogavam o Estatuto do Desarmamento e facilitavam a obtenção de licenças de CAC (caçador, atirados e colecionador de armas). O resultado disso foi o país ficar repleto de armas, mais de um milhão de novas armas em apenas 3 anos.
Mas o trabalho não estava acabado e ainda era preciso criar a versão brasileira da NRA para que mesmo no caso da queda de Bolsonaro e sua substituição por um governo desarmamentista, a pauta seguisse viva. Foi com esse mote que uma articulação do setor foi feita e o Proarmas foi criado em 2020. Já no primeiro turno das últimas eleições, a sua primeira enquanto organização, o Proarmas elegeu 38 políticos entre governadores e parlamentares.