Matéria atualizada em 24 de março e novamente em 14 de abril
À época da realização do plebiscito do desarmamento, em 2005, durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente do Brasil, o armamento civil era uma pauta praticamente inexistente na sociedade brasileira e a então irrelevante família Bolsonaro estava preocupada em comprar pistolas .40 para as forças de segurança e esterilizar as mulheres das favelas do Rio de Janeiro a fim de combater a violência urbana, conforme suas próprias propagandas eleitorais do ano anterior e declarações ainda mais antigas. O debate sobre armamentos e segurança pública ainda girava em torno do lobby vinculado às forças de segurança e suas pautas, que por sua vez eram alimentadas pelas ações policiais que via regra atingem o “andar de baixo” da sociedade. De lá pra cá, muita coisa mudou nesse âmbito, e o que já era complicado, ficou ainda pior.
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Foi naquele ano que a National Rifle Association (NRA), o principal lobby armamentista dos EUA, chegou ao Brasil para auxiliar a campanha contrária à entrega das armas. A ajuda dos lobbistas gringos contribuiu com a virada no plebiscito que permitiu aos pró-armas saírem vencedores. A ajuda não foi somente financeira, mas sobretudo retórica – apresentando uma construção de pensamento que veio a se encaixar perfeitamente nos velhos discursos da hoje chamada “bancada da bala” que, ao longo dos quase 40 anos de democracia formal, vêm buscando institucionalizar o desrespeito aos direitos humanos e à própria democracia, elaborando leis baseadas em sentenças do tipo “bandido bom é bandido morto”.
Um documentário publicado recentemente pela Vice News revelou esse processo e mostrou, entre outras coisas, a semelhança discursiva. Nas cartilhas da NRA, por exemplo, é comum vermos o argumento de que para combater estupros, basta as mulheres estarem armadas. E bem, não faltam pesquisas que comprovam o contrário. Mas o importante é saber que foi nesse momento, quando o velho obscurantismo brasileiro se encontrou com os discursos pseudo libertários da extrema direita dos EUA, que o cenário atual começou a ser desenhado.
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Ao longo de mais de uma década, entre o plebiscito de 2005 e o “liberou geral” das armas de Bolsonaro, as duas facções armamentistas – a que foca nas forças de segurança e a que defende o armamento civil – se confundiram no debate público com discursos que se retroalimentavam mirando os mais pobres. A retórica puramente reacionária passou a ser cada vez mais embalada pelas teorias conspiratórias dos EUA traduzidas por Olavo de Carvalho em seus livros e cursos. Tais ideias e seus efeitos práticos formariam mais adiante o imaginário e a construção de pensamento do que hoje é conhecido como a extrema direita brasileira de maneira mais ampla. Especificamente no tema das armas tudo se encaixava: se trabalharia para alçar um governo de extrema-direita ao poder que, em simbiose com a escalada de ataques à democracia e à própria República, introduziria liberações para compra e posse de armas, expandindo um mercado com enorme potencial.
Mas tudo isso ainda era muito vago até o ano de 2017 quando, impulsionado pela pré-candidatura do patriarca do clã, Eduardo Bolsonaro começou a costurar os apoios entre a extrema direita brasileira, representada politicamente pela sua família, e a dos EUA, em especial com a NRA e toda a sua história e expertise na defesa dos interesses armamentistas. A articulação aconteceu no contexto em que os EUA tinham Donald Trump – e todas as suas semelhanças com o bolsonarismo – à frente da Casa Branca.
Pois bem, Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 e logo no primeiro mês do seu mandato editou uma série de decretos que revogavam o Estatuto do Desarmamento e facilitavam a obtenção de licenças de CAC (caçador, atirados e colecionador de armas). O resultado disso foi o país ficar repleto de armas, mais de um milhão de novas armas em apenas 3 anos. Mas o trabalho não estava acabado e ainda era preciso criar a versão brasileira da NRA para que mesmo no caso da queda de Bolsonaro e sua substituição por um governo desarmamentista, a pauta seguisse viva. Foi com esse mote que uma articulação do setor foi feita e o Proarmas foi criado em 2020. Já no primeiro turno das últimas eleições, a sua primeira enquanto organização, o Proarmas elegeu 38 políticos entre governadores e parlamentares.
Shot Fair 2022 revela alguns dos principais nomes do Proarmas na política e nas ruas
A Shot Fair de Joinville é uma das maiores convenções armamentistas da América Latina e ocorre anualmente no mês de agosto. A equipe da Vice a visitou no ano passado em suas gravações e o tamanho do evento assustou os jornalistas, mesmo estando acostumados com os suntuosos encontros da NRA nos EUA.
A feira ocorreu entre 3 e 6 de agosto daquele ano. Na manhã do seu último dia, o assim chamado ‘núcleo duro’ do Proarmas se reuniu antes de rumar para a feira. O grupo contava com Eduardo Bolsonaro, líder de fato e mentor do Proarmas; Marcos Pollon (PL-MS), deputado federal, fundador e presidente formal da organização, autor do decreto de Jair Bolsonaro que flexibilizou o porte de armas em 2019 e advogado ligado ao agronegócio; e Júlia Zanatta, a deputada federal que ganhou os holofotes da imprensa no último final de semana após posar com um fuzil e fazer declarações agressivas contra o presidente Lula (PT).
Esta última foi nomeada por Jair Bolsonaro como coordenadora da Embratur na região Sul, e antes atuou como porta-voz do Clube de Tiro .38. Na ocasião, sua tarefa era falar com a imprensa sobre a presença de Adélio Bispo no local, semanas após o incidente em que Jair Bolsonaro foi esfaqueado em Juiz de Fora (MG), durante a campanha eleitoral de 2018. Além disso, ela é ex-namorada de Tony Eduardo, o proprietário do mesmo clube de tiro e responsável por apresentar a família Bolsonaro a Royce Gracie e a NRA no Shot Show de Las Vegas, em 2017.
Julia é formada em Comunicação Social e Direito. Trabalha como advogada junto com o marido Guilherme Colombo, que também estava presente na reunião do “núcleo duro”do Proarmas. Durante o último governo, ele também frequentou o Palácio do Planalto, acompanhando a esposa em encontros com Jair e Eduardo Bolsonaro.
O casal tem um escritório de advocacia em Criciúma, pelo qual Julia defendeu Heloisa Bolsonaro – esposa de Eduardo – em processo contra a Globo. Julia, que em mais de uma ocasião moveu processos contra jornalistas e veículos de imprensa, seria o braço direito de Eduardo Bolsonaro e do Proarmas para fomentar clubes de tiro no sul do Brasil. Ela se elegeu deputada federal pelo PL-SC com apoio do Proarmas.
Com os quatro (Marcos, Eduardo, Guilherme e Julia), no café da manhã de ‘esquenta’ para a Shot Fair 2022, ainda estava Eloir Dedonatti, um importante líder dos caminhoneiros que ajudou a fomentar os atos golpistas tanto de 7 de setembro como de 8 de janeiro. O sujeito é conhecido como “Padre de Bolsonaro”.
O evento realmente só tinha estrelas do armamentismo brasileiro. Outro que estava presente era George Washington de Oliveira Sousa, o homem preso na véspera de Natal, em Brasília, após tentar explodir um caminhão de combustível aeronáutico que se dirigia ao aeroporto da capital. Ele também esteve na Shot Fair e é membro do Proarmas, mas não esteve na reunião matinal com Eduardo e companhia.
O fato de George Washington ser membro do Proarmas não significa necessariamente que ele tenha planejado os atos de terrorismo sob ordens da organização. Mas, ao menos, é bastante provável que sua relação com a pauta tenha contribuído para a formação do seu caráter extremista. Além, é claro, de explicar o arsenal avaliado em R$ 160 mil encontrado no apartamento que alugava em Brasília enquanto participava dos acampamentos golpistas.
Com a palavra, o terrorista de Brasília explica seu arsenal à polícia: “Desses itens, o único que eu não tinha licença para possuir eram as dinamites que comprei por R$ 600 de um homem do Pará que me trouxe os explosivos quando eu já estava em Brasília. Eu também não possuía a guia de transporte das armas e caso fosse parado pela polícia na estrada, a minha ideia era acionar o Proarmas para justificar a minha participação em alguma competição de tiro”.
Quem diz que financia?
Ao acessar o site do Proarmas, na página de “parceiros”, é possível encontrar uma série de empresas e clubes de tiro que apoiam a iniciativa. Logo na abertura dessa página, vemos dez logos corporativos em destaque. Entre eles está o da Invictus, uma loja virtual de artigos militares e de caça. Em uma rápida navegada pelas ofertas da loja, podemos encontrar desde camisetas e canecas, até balaclavas, algemas, coldres e outros acessórios.
A empresa chamou a atenção por haver fornecido a credencial para Eduardo Bolsonaro frequentar a feira de armas Shot Show, realizada em Las Vegas em janeiro de 2022. Vale ressaltar que a feira não é aberta para o público geral e que somente é frequentada por expositores e pessoas convidadas por empresas ligadas à indústria de armas. No Instagram, o filho Zero-Três de Jair veste a camisa da empresa para anunciar sua presença no evento.
Após pesquisa sobre o CNPJ da empresa no Portal da Transparência e na Receita Federal, feita em 17 de março de 2023, descobrimos que a loja funciona sob o guarda-chuva da R Brands Ltda. e que um dos seus sócios é Guilherme Cavalieri Granzinolli. Em 2021, como representante da empresa União Suprimentos Militares Ltda. (que mais tarde mudaria de nome para R Brands Ltda.), ele assinou um contrato de venda de bonés e cintos para a Câmara Federal num valor superior a R$ 37 mil. O curioso é que o contrato é resultado de um processo de licitação aberto pela Polícia Rodoviária Federal, que incluiu produtos para a Policia Legislativa da Câmara Federal. Vale mencionar que no mesmo processo de licitação outras polícias foram incluídas, como a Policia Federal e a Policia Militar.
Em decisão do Tribunal de Contas de União que pede a suspensão da licitação por suspeita de irregularidades, além de Guilherme, José Geraldo Granzinolli e Filipe Lima Barros também são apontados como sócios da União Suprimentos Militares Ltda. São os mesmos nomes encontrados tanto no Portal da Transparência como na Receita.
Ainda de acordo com o Portal da Transparência, a loja virtual de artigos militares que figura como um dos principais apoios do Proarmas recebeu, ao todo, R$ 145.842.708,61 do Governo Federal. Há apenas dois contratos, de 2017 – fechados com o Ministério da Defesa – antes de iniciada a jornada de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto. Outros dois contratos anteriores ao mandato, de 2018, foram celebrados no contexto da transição, ou seja, após Bolsonaro já ter sido eleito.
A questão que se impõe a esta altura tem menos a ver com possíveis irregularidades ou ilegalidades em licitações e mais a ver com a própria articulação política do bolsonarismo em torno do Proarmas. Afinal de contas, R$ 145 milhões parece ser muito dinheiro para ser gasto, sem precedentes, com uma loja online de roupas e acessórios com estampas militares. Há, todavia, e devido ao seu apoio declarado e destacado ao Proarmas e ao clã Bolsonaro, uma pergunta a ser respondida: Seriam os sócios da Invictus – e de outras empresas aparentemente pequenas que apoiam o Proarmas e fecharam contratos com o governo anterior – financiadores de campanhas do clã Bolsonaro?
Além da Invictus, também constam com destaque máximo na página de parceiros do Proarmas outras 10 empresas. A primeira é a famosa fabricante de armamentos Glock Perfection. Em seguida, vem a Springfield Armory, uma rede de lojas de armas dos EUA que já tem seus representantes no Brasil e a DFA Defense, empresa que alega ter trazido ao país a produção de armas de alta qualidade para defesa pessoal.
Completam a lista a loja de acessórios Dr. Feeder; a revendedora de munição para fuzil Rifle Ammunition; as lojas de armamentos CZ e QGK Tactical; as lojas de artigos e acessórios Clarus Tactical e Bélica; e a Morigi Bullets que produz e vende munição de alta precisão.
Somam-se às principais empresas apoiadoras as lojas Smart Shoot Brasil, Tactical Weapons, Best Value Arms, Central do Tiro, Az de Espadas, LOR – Armas e Acessórios, Tapiri – Caça e Pesca, Mahrte, Casa Braço de Prata, Sucuri Tactical, Falcon Armas e Casa Esporte.
Entre os clubes de tiro que apoiam a causa, há três que aparecem com maior destaque: o CSB Clube Shot Brasil, que possui cinco unidades no Estado de São Paulo; o G16 Universidade de Tiro e Caça, que está com o site fora do ar; e o BASE Armalite, localizado em Itu e que, assim como a cidade do interior paulista, tem mania de grandeza e se declara o maior da América Latina..
Em destaque secundário aparecem os clubes de tiro Visão Clube e Clube de Tiro Ferrolho. Os demais clubes de tiro que apoiam o Proarmas são: Guerra – Armas e Munições, CTH Mutante, Clube de Tiro & Armeria de Itajaí, 1911 Shooting Club, Clube de Tiro Cartucho e Clube de Tiro Cowboys.
Outro lado; Atualização [24/03/2023]
Enviamos ao SAC da R. Brands / Invictus, na última terça-feira (21), quando esta matéria foi publicada, alguns questionamentos pertinentes à apuração. A empresa respondeu nesta sexta-feira (24), por meio de uma representante.
A empresa negou ter sido a fornecedora das credenciais de Eduardo Bolsonaro no Shot Show de Las Vegas realizado em janeiro de 2022. “Esta informação não procede”, disse a representante.
Também negou expressamente que os sócios da R. Brands/Invictus sejam financiadores de campanha da família Bolsonaro. Além disso, afirmou que dados das compras governamentais são públicos e estão disponíveis no Portal da Transparência.
*Ajude a financiar o documentário da Fórum Filmes sobre os atos golpistas de 8 de janeiro. Clique em https://bit.ly/doc8dejaneiro e escolha o valor que puder ou faça uma doação pela nossa chave: pix@revistaforum.com.br
Atualização [14/04/2023]
Após a negativa oficial da Invictus sobre haver fornecido a Eduardo Bolsonaro as credenciais para participar do Shot Show de Las Vegas em 2022, retomamos a pesquisa para apurar quem, afinal, forneceu as credenciais. A presente atualização desta reportagem tem como objetivo reparar essa imprecisão. Geralmente, nesse meio armamentista, um indivíduo ou empresa que tivesse a inserção para fornecer tal credencial, admitiria o feito com certo orgulho, conforme é possível notar nos dados levantados em redes sociais nesta e em outras matérias sobre o tema.
Sobre o Shot Show de Las Vegas, Eduardo Bolsonaro realmente promoveu a Invictus, uma das empresas parceiras do Proarmas, ao expor a marca em seu peito para milhares de pessoas que assistiram às suas lives, que viram os seus posts no Instagram e para muitas outras pessoas ligadas à indústria de armas dentro e fora do Brasil que o contataram pessoalmente durante o Shot Show em janeiro de 2022. Ou seja, é evidente que ele teve o propósito de promover a marca Invictus durante o Shot Show. Mas revendo o material coletado, inclusive a foto que vai à cabeça desta reportagem, é possível notar que a prática se estende a outras empresas, como a Springfield Armory, que também se declara apoiadora do Proarmas.
Neste vídeo Eduardo expõe a marca Invictus para, no mínimo, milhares de seus seguidores – levando em consideração os 5 milhões de seguidores que possui no Instagram. Ao mesmo tempo, também promove a NRA, reafirmando seu caráter de pautar a opinião pública e defendendo que haja uma organização semelhante no Brasil.
Mas além da divulgação da marca, é digno de nota que um dos sócios da Invictus, Guilherme Cavalieri Granzinolli, estava com Eduardo Bolsonaro no Shot Show. Nesta postagem é possível encontrar diversas pessoas da indústria de armas do Brasil e dos Estados Unidos com quem o Eduardo Bolsonaro se relacionou no evento enquanto explicitamente promovia a marca Invictus. Entre as personalidades, está Royce Gracie, apontado em apurações anteriores como o principal nome que abriu as portas da NRA ao clã Bolsonaro.
De fato não foi a Invictus que forneceu a credencial para Eduardo Bolsonaro participar do Show Show. Eduardo Bolsonaro estava lá apenas acompanhado de um dos sócios. Juntos, promoveram a marca que declara apoio ao Proarmas.
Quem então providenciou a credencial para Eduardo Bolsonaro?
Refazendo a pesquisa junto de nossa fonte nos EUA, um pesquisador acadêmico da área de ciências humanas radicado em Washington que atua junto a um grupo internacional de pares que investiga e denuncia a atuação do lobby armamentista internacional, chegamos ao nome de uma empresa israelense.
A fabricante de armas de fogo chamada IWI - Israel Weapon Industries, que também tem fábrica nos Estados Unidos, figura na credencial de Eduardo Bolsonaro, nas postagens expostas acima, como a responsável pela sua presença no evento. Ampliando a imagem, vemos que a credencial de Eduardo Bolsonaro diz "Exhibitor Guest", ou "Convidado de Expositor", que, no caso, é a empresa IWI US Inc. de Middletown, no Estado da Pensilvânia. O Shot Show é um evento restrito e não aberto ao público geral, só entram expositores e seus convidados. O evento, portanto, serve como uma espécie networking para fomentar os negócios da indústria de armas.
Na página inicial do site da empresa já se visualiza sua conexão com a NRA. Repare em dois logos da NRA no rodapé da pagina inicial no print a seguir.
A pergunta óbvia, que indaga com que interesse a IWI providenciou uma credencial para Eduardo Bolsonaro participar do Shot Show levanta a suspeita de que o filho do ex-presidente possa ter participado da negociação que envolveu vendas de armas da empresa para polícias no Brasil. A IWI fechou contratos milionários de venda de armas (fuzis) com as polícias militares do Rio de Janeiro e de São Paulo. As negociações ocorriam desde 2020.
Com a PM de São Paulo o negócio foi fechado em agosto de 2021, ou seja, poucos meses antes da ida de Eduardo Bolsonaro ao Shot Shot de Las Vegas. A corporação gastou R$ 21 milhões na ocasião. Já a PM do Rio de Janeiro adquiriu 600 fuzis da IWI no segundo semestre do ano passado.
Entramos em contato com a empresa, por meio de e-mail disponibilizado no seu site, mas até a publicação desta atualização não obtivemos resposta. No caso de responderem, uma última atualização será feita na reportagem expondo o ponto de vista da IWI - Israeli Weapon Industry.