NEOFASCISMO E ARMAS

De ‘viúvas da ditadura’ à extrema-direita global: o caminho dos bolsonaros para entupir o Brasil de armas

Levantamento de viagens, encontros e publicações traça marco de articulação com lobby internacional de armas, representado por Associação de Rifle, a partir de 2017

Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Eduardo Bolsonaro mostrou o arsenal de Yves Souza, da 88 Tactical, na casa de Yves em Los Angeles, California. Créditos: Reprodução/Instagram
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Como promessa de campanha, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) editou um decreto na primeira hora do seu novo mandato, ainda no domingo (1), após a posse, que revoga algumas das normas assinadas por Jair Bolsonaro (PL) que facilitavam e ampliavam o acesso a armas e munições no Brasil por cidadãos comuns, ou seja, aqueles que não fazem parte das forças de segurança. Dias depois, o grande “embaixador” do armamentismo brasileiro, Eduardo Bolsonaro, reclamou e incitou sua base de apoiadores a “gastar o restinho de munição”.

O texto publicado no Diário Oficial da União na segunda-feira (2) já está em vigor. Ainda que não retire as armas das ruas, suspende novos registros de armas para CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) e de clubes de tiro. Uma nova regulamentação na área é prometida pelo novo governo. Entre as medidas previstas está a retirada de circulação de armas de uso restrito como fuzis.

O decreto, que também exige que todas as armas registradas a partir de maio de 2019 sejam recadastradas em até 60 dias, gerou a reação de setores ligados à indústria armamentista brasileira, como o deputado federal eleito Marcos Pollon (PL-MT), líder do Proarmas – que elegeu 38 nomes em outubro passado entre deputados estaduais, federais, senadores e governadores. “Foi bem menos do que eu imaginava”, declarou. Em grupos de Telegram, CACs compartilharam ao longo da primeira semana de 2023 manuais de raspagem da identidade numérica das armas, entre outras formas de burlar as novas regras que vão surgindo. Uma delas ainda manda que os proprietários das armas façam boletins de ocorrência relatando o roubo das mesmas.

Após quatro anos de Jair Bolsonaro (PL) à frente do Palácio Planalto, o número de armas registradas por CACs (caçadores, atiradores esportivos e colecionadores) aumentou em 187% e chegou a mais de um milhão em todo o país no fechamento do primeiro semestre de 2022. O arsenal está em mãos de quase 700 mil pessoas e paralelamente a esse aumento de registros, aumentam também os relatos de incidentes correlacionados.

Armas compradas por CACs foram usadas em assalto na cidade de Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre. Em São Paulo, um CAC matou a ex-esposa e o filho de um ano com um fuzil. Na Paraíba, um CAC foi preso suspeito de alugar armas para assaltantes. Além disso, também foi encontrado um arsenal avaliado em R$ 160 mil em posse de George Washington Oliveira de Sousa, o “Terrorista de Brasília”, preso em flagrante acusado de planejar ataques a bomba na capital contra a posse de Lula. Esses casos são apenas para ilustrar o problema, pois a lista parece ser interminável. O próprio Exército, responsável por emitir as licenças, admitiu a perda do controle.

Mas essa situação, completamente descontrolada, só foi possível graças a uma verdadeira articulação internacional da família Bolsonaro, ainda em 2017, de olho na campanha eleitoral do ano seguinte, em que, buscando desmantelar o Estatuto do Desarmamento, a ex-família presidencial se aproximou da NRA (National Rifle Association), principal representante do lobby internacional de armas.

E foi nessa aproximação, costurada pelo “embaixador” Eduardo Bolsonaro, que a ‘familícia’ deixou de cumprir um papel unicamente vinculado a setores obscurantistas das forças de segurança nacionais, oriundas da linha dura do regime de 1964 e do milicianismo policial, para alinhar-se à extrema-direita global. Com a eleição de Bolsonaro em 2018, concretizando tal projeto de poder e os devidos decretos que flexibilizam o Estatuto do Desarmamento, as indústrias armamentistas nacional e estrangeira beneficiaram-se ampla e diretamente do processo.

Eduardo Bolsonaro 'embaixador' da extrema-direita

Quando em 2019 o terceiro filho de Jair, Eduardo Bolsonaro, se ofereceu para ser embaixador em Washington e logo virou piada na imprensa e nas redes sociais, uma vez que em seu currículo teria “fritado hambúrgueres” nos Estados Unidos, havia uma meia-verdade na bizarrice de ocasião. Para além do fato de que o lugar onde ele supostamente trabalhou durante um intercâmbio não ter hambúrgueres fritos no cardápio, a cascata parecia esconder uma função cumprida, anos antes, em 2017, que poderia ser definida como uma espécie de “relações internacionais” para o bolsonarismo em relação à extrema-direita global.

Em 14 de janeiro de 2017, Eduardo embarcava para os Estados Unidos a fim de dar início à sua viagem “diplomática” que demarcaria uma espécie de “maioridade política” do clã, mediante articulação de apoios internacionais em torno de agendas comuns. O primeiro e óbvio compromisso: conhecer pessoalmente o ex-astrólogo e guru do neofascismo brasileiro, Olavo de Carvalho. O encontro aconteceu na casa de Olavo, na Virgínia. No dia seguinte, o filho zero-três participou de live com o autointitulado filósofo.

Reprodução/Instagram
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Apenas quatro dias depois de conhecer o ídolo e mentor intelectual, em 18 de janeiro, Eduardo Bolsonaro juntou-se ao irmão Carlos em viagem a Las Vegas. Na famosa cidade desértica, onde a jogatina manda e desmanda sem hora para acabar, os irmãos participaram do Shot Show, o maior evento anual de armas dos Estados Unidos. Foram a convite de funcionários da 88 Tactical, um clube de tiro que mantém influências neonazistas, incluindo no próprio nome – o número 88 versa duas vezes a oitava letra do alfabeto, HH, que, em código/gíria quer dizer “Heil Hitler”.

Esta foi a segunda vez que Eduardo Bolsonaro visitou o evento. Em 2016, ele também foi convidado pelos funcionários da 88 Tactical, clube de tiro da cidade de Omaha, em Nebraska. O clube de tiro “Heil Hitler Tático”, em tradução livre, parece ter sido a grande porta de entrada dos bolsonaros para agrupamentos de orientação duvidosa mais pesados.

Os funcionários da 88 Tactical que convidaram os irmãos para o evento são naturais de Santa Catarina. Um deles, Tony Eduardo, é o proprietário do Clube de Tiro Ponto 38, local que ficou conhecido por ter recebido Adelio Bispo de Oliveira, dois meses antes do episódio da facada em Jair Bolsonaro.

Neste mesmo 18 de janeiro Eduardo e Carlos Bolsonaro foram finalmente apresentados a dirigentes da NRA, National Rifle Association, famosa mundialmente durante o mandato do republicano George W Bush (2001-09) quando o cineasta Michael Moore lançou o documentário Tiros em Columbine (Bowling for Columbine, 2002), em que relacionou o lobby pró-armas de seu país com os já crescentes casos de massacres em escolas americanas. À época o Brasil não registrava casos desse tipo. Hoje, após 4 anos de Bolsonaro no poder atendendo as demandas do lobby internacional de armas, já colecionamos episódios de tamanha tristeza, morbidez e desesperança. No último, registrado em novembro em Aracruz-ES, um jovem de 16 anos simpatizante de ideias nazistas, filho de um PM local, invadiu duas escolas e deixou quatro pessoas mortas a tiros. A arma era do seu pai. Será tudo uma grande coincidência?

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No dia seguinte, Eduardo Bolsonaro fez uma live no Facebook para contar como foi a sua reunião com dirigentes da NRA. Na conversa, ele conta que, junto do irmão, foi levado para a reunião por Royce Gracie (da lendária família Gracie, do jiu-jitsu, membro da NRA e ligado a indústria armamentista dos Estados Unidos), Yves Souza (Sócio-proprietário e vice-Presidente para Assuntos Internacionais da 88 Tactical) e Tony Eduardo (Instrutor de tiro da 88 Tactical e proprietário do Clube de Tiro Ponto 38, em Santa Catarina).

Na reunião eles trataram sobre seus planos eleitorais para o ano de 2018 e falaram para a NRA a respeito de Bene Barbosa, o então maior ativista contra o Estatuto do Desarmamento no Brasil. Bene Barbosa, segundo Carlos, respondeu prontamente, através de mensagem de celular, que estava disponível para ajudar numa articulação resultante da reunião dos irmãos Bolsonaro com a NRA. 

Ainda como rescaldo da “grande reunião”, em 19 de janeiro Carlos Bolsonaro postou foto ao lado de dois dirigentes da NRA, John Bailey (Operations Director; na foto de baixo da postagem, ele é o terceiro da esquerda para a direita) e Ed Friedman (Chief-in-Editor - na mesma foto, ele é o segundo da direita para a esquerda).

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Dias depois, em 22 de janeiro, já em Los Angeles, Eduardo Bolsonaro mostrou em seu Instagram o arsenal de Yves Souza, da 88 Tactical. Ele estava hospedado na casa de Yves, na maior cidade da Califórnia.

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Desconfia-se que Eduardo Bolsonaro estava no final de janeiro ou mesmo no primeiro dia de fevereiro no Havaí. Ele faltou na votação para presidente da Câmara dos Deputados, quando seu pai era um dos candidatos. O episódio popularizado como "não vou te visitar na Papuda" ficou famoso porque Jair foi flagrado dando bronca em Eduardo pelo WhatsApp.

Dias depois, eles criaram a desculpa de que Eduardo estaria na Austrália no dia da votação. Tudo indica que mentiram e que Eduardo estava, de fato, no Havaí. Não há postagens no Instagram de Eduardo Bolsonaro que comprovem que ele tenha passado pela Austrália – e bem, como o leitor já pôde perceber, ele costuma documentar intensamente suas viagens.

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A imprensa divulgou o episódio a partir de 9 de fevereiro daquele ano e só em maio de 2022, o deputado Delegado Waldir, que votou em Jair Bolsonaro em 2017 para presidente da Câmara, disse que Eduardo Bolsonaro estava fumando maconha no Havaí no dia da votação da Câmara.

Voltando a 2017, em 10 de fevereiro, após a imprensa divulgar o episódio da Papuda, Eduardo Bolsonaro e seu pai Jair gravaram vídeo para se explicarem. Repare como Jair Bolsonaro mente ao dizer que Eduardo estava na Austrália. Ambos se atrapalham no discurso antes de um corte no vídeo, o que gera mais suspeita de armação.

O que Eduardo estaria fazendo de tão suspeito em sua viagem que tenha preocupado Jair? A principal hipótese, dado o histórico da viagem e os desdobramentos posteriores, é de que os irmãos Eduardo e Carlos pudessem estar tratando pela primeira vez com a NRA sobre financiamento de campanha. Eis o nó que falta ser desatado na história.

Nesse meio tempo, em 2 de fevereiro, Eduardo gravou vídeo já em campanha para a eleição do papai em 2018. E no dia seguinte fez postagem sobre a filha de Royce Gracie, que com somente 11 anos de idade já seria a favor do armamento de civis. E foi assim que acabou a viagem “diplomática” aos EUA.

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Hora de ‘armar’ a campanha

Dias após o retorna ao Brasil, em 13 de fevereiro, Eduardo esteve com Carlos e Tony Eduardo, do 88 Tactical e do Clube de Tiro Ponto 38, em um clube de tiro na cidade de Joaçaba, em Santa Catarina. Dois dias depois, os três participaram de evento na cidade, na UNOESC (Universidade do Oeste de Santa Catarina), a convite do juiz Márcio Umberto Bragaglia. O trio discursou contra o Estatuto do Desarmamento.

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Três dias depois e de dentro do gabinete do pai no Congresso Nacional, Eduardo Bolsonaro conclamou seus seguidores a participarem de protestos contra o Estatuto do Desarmamento em diversas cidades do Brasil.

E a articulação do bolsonarismo com o lobby pró-armas seguiu a todo vapor no início de 2017. Em 19 de fevereiro, Eduardo Bolsonaro participou ao lado de Bene Barbosa do protesto contra o Estatuto do Desarmamento na Avenida Paulista, em São Paulo. Quatro dias depois, agradeceu a Rádio Vox por ter dado cobertura ao protesto de 19 de fevereiro.

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Apenas após 9 dias após o protesto, Eduardo Bolsonaro divulgava em seu Instagram que o Portal do Senado Federal abria a pagina para apoiar o fim do Estatuto do Desarmamento e receber assinaturas. E cerca de uma semana depois, em 5 de março, fez postagem a favor da abertura do mercado brasileiro para a indústria armamentista.

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Em 11 de março Eduardo Bolsonaro divulgou que a votação do PL 3722, de autoria do deputado Peninha, para revogar o Estatuto do Desarmamento, estava se aproximando. Ele pediu aos seus seguidores para pressionarem os deputados a votarem a favor. Apenas 8 dias depois, em 19 de março, falou em Porto Alegre sobre a questão.

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Armamentista internacional “de carteirinha”

Como recompensa simbólica pelo seu enorme esforço, em 22 de março, Eduardo Bolsonaro recebeu sua carteira de membro da NRA, e a exibiu, orgulhoso, no Instagram.

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Após ser aceito no seleto grupo lobista, em 14 de abril, enquanto ainda maquinava uma nova viagem familiar aos EUA a fim de consolidar o apoio dos armamentistas gringos, o “embaixador” relacionou o chamado empoderamento das mulheres ao armamento. De acordo com sua narrativa, mulheres armadas não seriam agredidas ou violentadas. Pesquisadores vinculados à GRAF (Global Researchers Against Fascism), grupo internacional anônimo que investiga justamente a inserção dos lobbies internacionais pró-armas nas políticas nacionais, é parte da estratégia de comunicação da NRA utilizar tais construções narrativas de forma mais ampla e esta em especial.

Repostagem do Clube de Tiro Ponto 38. Reprodução/Instagram

Em 24 de abril, Eduardo promoveu novo encontro com Bene Barbosa e Bia Kicis para organizar outro protesto contra o Estatuto do Desarmamento, em 6 de maio, na capital paulsita. No dia seguinte ao protesto, Tony Eduardo deu nova palestra contra o Estatuto do Desarmamento.

Dois meses depois, em 5 de julho, Eduardo Bolsonaro e Bene Barbosa protocolaram no STF uma petição com o objetivo de obrigar o Legislativo e o Executivo a criarem leis para facilitar o acesso de civis a armas de fogo.

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Já na preparação de nova viagem aos EUA, dessa vez com a companhia do pai Jair e do irmão e primogênito Flávio, Eduardo e Carlos fizeram uma postagem em conjunto contra o Estatuto do Desarmamento, em primeiro de setembro.

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Viagem em família aos EUA

Os quatro varões políticos da família Bolsonaro - Jair, Flavio, Carlos e Eduardo - viajaram aos Estados Unidos em busca de apoiadores para as suas campanhas de 2018. Chegaram na Flórida em 8 de outubro e, já no dia seguinte, seguiram viagem até Boston.

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Os quatro bolsonaros tiveram uma reunião com a empresa de investimentos financeiros MFS Investments, em Boston, em 11 de outubro. No início do mandato de Jair Bolsonaro, em março de 2019, a MFS Investments fechou um contrato multimilionário com o Banco BTG-Pactual, de Paulo Guedes. Coincidentemente, vejam só, o então novo ministro da “Economia”.

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Apenas três dias depois, a família Bolsonaro se encontrou com Renzo Gracie, parente de segundo grau de Royce Gracie em Nova Iorque. Lembrando que os Gracie também funcionaram, assim como o 88 Tactical, como “portas de entradas dos bolsonaros” ao mundo do lobby internacional de armas.

Dois dias depois e já de volta ao Brasil, em 16 de outubro, Flávio Bolsonaro listou os encontros que tiveram ao longo da semana anterior nos Estados Unidos. Na mesma data, Eduardo Bolsonaro esteve ao lado do deputado Peninha, autor do PL 3722, que visa revogar o Estatuto do Desarmamento na maior festa de atiradores do Brasil, em Jaraguá do Sul, Santa Catarina.

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Virando o ano, em 18 de janeiro de 2018, a poucos meses do início das campanhas eleitorais, Eduardo Bolsonaro foi para a Califórnia, na casa de Yves Souza, Sócio-proprietário e Vice-Presidente de Assuntos Internacionais da 88 Tactical. Eduardo falou do seu apoio para o armamento de civis e também para a formação de milícias, com base na Segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos.

Uma semana e depois, em 27 de janeiro, Eduardo Bolsonaro, Carlos Bolsonaro, Royce Gracie, Yves Souza e Tony Eduardo novamente foram para o evento Shot Show, em Las Vegas. Mais uma vez se encontraram com ao menos um dirigente da NRA, John Bailey, Operations Director.

O que aconteceu nesses encontros e em como estão influenciando a política e o cotidiano do Brasil desde então, é o que intriga os olhares mais atentos. Espera-se que agora que Bolsonaro finalmente perdeu a condição de gozar de foro privilegiado após 32 anos, o que inclusive o levou a novamente visitar os EUA nas últimas semanas, ligações como essa, que causaram efeitos desesperadores para a população brasileira, possam ser investigados seriamente pelas autoridades e pela imprensa.

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*Com informações da Global Researchers Against Fascism (GRAF)