Após quatro anos de Jair Bolsonaro (PL) à frente do Palácio Planalto, o número de armas registradas por CACs (caçadores, atiradores esportivos e colecionadores) aumentou em 187% e chegou a mais de um milhão em todo o país no fechamento do primeiro semestre de 2022. O arsenal está em mãos de quase 700 mil pessoas e paralelamente a esse aumento de registros, aumentam também os relatos de incidentes correlacionados.
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Armas compradas por CACs foram usadas em assalto na cidade de Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre. Em São Paulo, um CAC matou a ex-esposa e o filho de um ano com um fuzil. Na Paraíba, um CAC foi preso suspeito de alugar armas para assaltantes em setembro passado. Esses casos são apenas para ilustrar o problema, pois a lista parece ser interminável. O próprio Exército, responsável por emitir as licenças, admite que perdeu o controle.
Entre todos os políticos eleitos no primeiro turno das eleições deste ano, 38 foram apoiados pelo Proarmas, maior grupo que faz lobby pela indústria armamentista no Brasil. Entre os principais nomes estão Tarcísio Freitas (Republicanos-SP), Onyx Lorenzoni (PL-RS), Jorginho Melo (PL-SC), Marcos Rogério (PL-RO) e Carlos Manata (PL-ES), todos candidatos a governos de Estado no segundo turno. Além deles, entre senadores eleitos estão o ex-vice-presidente general Hamilton Mourão (Republicanos-RS), o astronauta Marcos Pontes (PL-SP) e Jorge Seif (PL-SC). Já entre os deputados federais eleitos, se destacam Marcos Pollon (PL), que é presidente do Proarmas, além de Bia Kicis, Mário Frias e do delegado Paulo Bilynskyj, que ficou famoso na imprensa em julho passado após ser acusado de assassinar a namorada a tiros em São Paulo. O levantamento completo foi feito pela Graf (Global Researchers Against Fascism) e publicado pela Revista Fórum.
A entidade acredita que possa haver algum tipo de apoio, político e financeiro, da National Rifle Association (NRA), o mais famoso grupo pró-armas do mundo, localizado nos Estados Unidos, ao crescimento e consolidação da chamada ‘bancada da bala’ brasileira, que além dos CACs que agora querem formar um partido próprio, também conta com a linha dura da segurança pública. A NRA ficou famosa mundialmente durante o mandato do republicano George W Bush (2001-09) quando o cineasta Michael Moore lançou o documentário Tiros em Columbine (Bowling for Columbine, 2002), onde relacionou o looby pró-armas de seu país com os já crescentes casos de massacres em escolas americanas, à época.
Entramos em contato com a Graf, por e-mail, para entender as suspeitas, e conversamos com uma pesquisadora que aqui chamaremos de Aurora, a fim de manter sua privacidade, conforme pedido.
A pesquisa diz que há provas de que Carlos e Eduardo Bolsonaro se reuniram com executivos da NRA enquanto frequentavam a Shot Show, evento anual de fabricantes internacionais de armas de fogo e de acessórios, realizado em Las Vegas, com acesso exclusivo a pessoas ligadas à indústria armamentista. Os filhos de Bolsonaro foram convidados por empresas do ramo, entre elas a 88 Tactical e a Invictus, por alguns anos consecutivos desde 2016. Lembrando que a nomenclatura ‘88’ tem origem na expressão “Heil Hitler”, simbolizando as letras ‘H’ da expressão – a oitava do alfabeto – e é bastante difundido a partir grupos neonazistas em todo o mundo.
“As portas da extrema-direita dos Estados Unidos foram abertas para Eduardo Bolsonaro pelos catarinenses Tony Eduardo e Yves Sousa no início de 2016. Tony Eduardo, além de proprietário do Clube de Tiro Ponto 38, é instrutor de tiro da 88 Tactical. Yves Sousa é um empresário milionário ligado às Lojas Milium de Santa Catarina e também um dos proprietários da 88 Tactical, baseada em Omaha, Nebraska”, explica Aurora.
De acordo com a porta-voz dos pesquisadores, Eduardo Bolsonaro conheceu Tony Eduardo no final de 2015 pelas redes sociais ao compartilhar um vídeo em que Tony falava à mídia catarinense contra o Estatuto do Desarmamento. Tony Eduardo, um admirador da família Bolsonaro, ficou lisonjeado pelo compartilhamento feito pelo deputado e passaram a trocar mensagens a partir daí. Eduardo Bolsonaro chegou a ir para Florianópolis passar o Réveillon com amigos e se encontrou pessoalmente com Tony Eduardo no Clube de Tiro Ponto 38. Tony Eduardo em seguida convidou Eduardo Bolsonaro para ir a Las Vegas participar do Shot Show. Após Eduardo Bolsonaro aceitar o convite, Tony Eduardo e Yves Sousa providenciaram as credenciais da 88 Tactical para Eduardo Bolsonaro. O evento Shot Show ocorreu entre 19 e 22 de janeiro de 2016.
“Outra pessoa ligada à NRA que deu apoio aos Bolsonaros é Royce Gracie. Figura lendária do jiu-jitsu e da UFC, segundo Eduardo Bolsonaro, Gracie foi cotado em 2017 para ser o porta-voz da NRA no Brasil. Royce Gracie foi quem apresentou os filhos de Bolsonaro para executivos da NRA em 2017 e depois, em 2018, para Donald Trump Junior. Logo em seguida, Eduardo Bolsonaro foi apresentado a Steve Bannon, presumidamente através da indicação de Donald Trump Junior)”, diz a pesquisadora, mostrando que as relações da família presidencial com o lobby internacional pró-armas é mais antigo e mais enraizado do que pode parecer a um observador desatento.
Mas as ligações não param por aí. Praticantes de jiu-jitsu, Tony Eduardo e Yves Sousa são amigos de Royce Gracie. Royce Gracie e Tony Eduardo trabalharam em conjunto em diversas oportunidades para treinar forças policiais tanto no Brasil, onde prestaram serviços ao BOPE-SC, como nos Estados Unidos, onde deram treinos da arte marcial aos Seals (fuzileiros navais) além de diversos departamentos de polícia. “Eles são todos avessos aos governos de esquerda, em especial quando liderados pelo PT, devido às suas políticas de restrição ao acesso de armas”, diz a pesquisadora.
O pai de Tony Eduardo, o delegado aposentado da Polícia Civil e fundador do Clube de Tiro Ponto 38, conhecido como Dr. Tim, também tem uma forte aversão aos governos de esquerda e ao Estatuto do Desarmamento. Ele sugeriu, conforme publicado no blog do Clube de Tiro Ponto 38, que os brasileiros se organizassem para criar a sua própria NRA através do fortalecimento do Movimento Viva Brasil, criado pelo lobista Bene Barbosa em 2005.
Bene Barbosa, o mais respeitado lobista pró-armamento do Brasil, fundador do Movimento Viva Brasil, chegou a ser condecorado pelos irmãos Carlos e Flávio Bolsonaro. “Sempre foi um ferrenho ativista contra o Estatuto do Desarmamento de 2003. Aliás, segundo ele, um ativista operante desde os anos 1990 quando a lei 9427/1997, aprovada no governo FHC, estabeleceu condições para o registro e para o porte de armas. Ele tinha a ambição de fazer de sua organização uma versão brasileira da NRA. Atuou por diversas vezes no Congresso Nacional ao lado de Jair Bolsonaro, de Onyx Lorenzoni e de Rogério Peninha, o deputado autor do PL 3722/ 2012 para revogar o Estatuto do Desarmamento”, denuncia.
E emenda, em seguida: “Comprovamos que, após uma reunião com a NRA em janeiro de 2017, Eduardo Bolsonaro juntamente com seu pai Jair Bolsonaro e Bene Barbosa organizaram protestos pelo país contra o Estatuto do Desarmamento. Meses depois, Eduardo Bolsonaro e Bene Barbosa protocolaram junto ao Supremo Tribunal Federal uma petição para flexibilizar as leis que controlam o acesso a armas de fogo. Bene Barbosa manteve-se ativo nos anos seguintes participando de programas televisivos para fomentar a cultura de armas e falar contra as leis vigentes que restringem acesso a armas. Ele é autor do livro ‘Mentiram para mim sobre o Desarmamento’. Hoje vive em Santa Catarina e ministra cursos e treinamentos sobre segurança privada e armamento”.
Bene Barbosa pode não ter criado sua versão brasileira da NRA, mas ele é um dos mentores de Marcos Pollon, um advogado do agronegócio no Mato Grosso do Sul e, como já dito acima, deputado federal eleito em 2022. Pollon passou a se dedicar ativamente ao lobby da indústria de armas a partir do início de 2019 com a eleição de Jair Bolsonaro. Em 2020, ele criou o grupo Pró-Armas. “Consideramos que Eduardo Bolsonaro seja o articulador do Pró-Armas com a NRA, e que Marcos Pollon, apesar de presidente da organização, seja o testa-de-ferro de Eduardo Bolsonaro”, afirma Aurora.
Eduardo Bolsonaro em outubro de 2021 fez postagem no Instagram ao lado de Donald Trump Junior marcando as diversas filiais do Pró-Armas espalhadas pelo Brasil. Uma das interpretações possíveis, de acordo com a Graf, é que Eduardo Bolsonaro tenha demonstrado ao filho de Donald Trump, pelas redes sociais, o seu sucesso em ter formado a sua própria NRA. Além disso, em reportagem recente da Vice no Brasil, Eduardo Bolsonaro disse para a repórter Leah Varjacques que "aqui no Brasil nós estamos construindo a nossa NRA, que é o Pro-Armas". A reportagem ainda apontou que o Pró-Armas vem sendo formado com os moldes da NRA.
O Pró-Armas é apoiado por diversas empresas ligadas à indústria de armas. Muitas delas estão listadas no próprio site da organização. Entre elas a Glock, a Springfield Armory e a Invictus. Esta última, foi quem forneceu as credenciais para que Eduardo Bolsonaro participasse do mais recente evento Shot Show, em janeiro de 2022 em Las Vegas.
Um pouco antes de viajar para Las Vegas, Eduardo Bolsonaro se hospedou num luxuoso hotel flutuante na Amazônia, chamado Rio Negro Queen. O hotel pertence à empresa Captain Peacock, que é ligada ao grupo Bass Pro, uma das maiores empresas no ramo de caça e pesca nos Estados Unidos. O fundador e proprietário da Bass Pro, Johnny Morris, está entre os maiores bilionários dos Estados Unidos. Ele pertence à NRA e fundou o maior museu da organização dentro de uma de suas lojas da Bass Pro. Heloisa Bolsonaro – mulher de Eduardo - agradeceu pelas redes sociais os dias passados no luxuoso hotel, mostrando um cartão assinado e um boné da Bass Pro dedicado à filha do casal por Johnny Morris. Dias depois, Johnny Morris foi recebido por Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto.
“Embora ainda não tenhamos comprovado o repasse direto de recursos financeiros da NRA para as campanhas dos Bolsonaros, levantamos diversos indícios que demonstram uma relação da família Bolsonaro com a organização”, explica a pesquisadora. “Como apontou a Al Jazeera em sua investigação sobre a extrema-direita australiana, algumas formas de apoio da NRA seriam aconselhamento em estratégias jurídicas e de marketing para fomentar a cultura armamentista e oferecimento de networking para apresentar políticos locais a indústrias de armas e a empresas ligadas ao impulsionamento artificial de redes sociais”, conclui.
Quem é a Graf e como é seu método de pesquisa
A GRAF (Global Researchers Against Fascism, ou Pesquisadores Globais contra o Fascismo, em tradução livre) é um grupo de pesquisadores da área de Ciências Humanas localizados dentro e fora do Brasil. Sua principal atividade é pesquisar o envolvimento da família Bolsonaro com a indústria de armas. Anônimos, repassam as informações para jornalistas investigativos brasileiros e estrangeiros. De acordo com a pesquisadora entrevistada, diversos meios de comunicação já publicaram matérias com base integral ou parcial nas pesquisas do grupo, entre eles a Revista Fórum, UOL, Agência Pública, Folha de S Paulo, Estado de São Paulo e outros.
Sobre o método de pesquisa que adota, a pesquisadora explica que o grupo forma um banco de dados que cruza informações das redes sociais de pessoas ligadas sobretudo a Eduardo Bolsonaro e a indústria de armas. “Há um foco maior nos anos que antecederam as eleições de 2018. Comparamos as informações obtidas das próprias redes sociais dos Bolsonaros e de seus contatos com fatos relatados em diversos veículos das mídias brasileira e internacional”, declarou.
Objetivo da presente pesquisa é buscar indícios que apontem para o possível financiamento das campanhas eleitorais de 2018 dos Bolsonaros pela NRA ou por empresas recomendadas por tal organização. São cinco os principais parâmetros para a hipótese segundo a pesquisadora. Em primeiro lugar, o próprio histórico da NRA em oferecer apoio a grupos estrangeiros (de fora dos EUA) de extrema-direita, com o intuito de flexibilizar as leis de controle sobre o armamento de civis e, com isso, favorecer o comércio internacional de armas de fogo.
Em segundo lugar, a NRA patrocinou as duas campanhas presidenciais de Donald Trump. Em especial a primeira, de 2016, que teve Steve Bannon como estrategista. Bannon tem conexão direta com Eduardo Bolsonaro, que lidera na América do Sul a sua campanha de expansão mundial da extrema-direita chamada "The Movement".
O terceiro parâmetro para a hipótese estaria no documentário produzido pela Al Jazeera ("How to sell a massacre" – Como vender um massacre) que revela que a NRA ofereceu apoio estratégico e discutiu meios de financiamento de campanha com a extrema-direita australiana entre 2016 e 2018. A NRA demonstrou interesse claro em ver políticos de extrema-direita bem sucedidos nas eleições federais de 2019 na Austrália. A partir daí, o quarto ponto dá conta de diversos encontros dos filhos de Bolsonaro com diretores da NRA nesse mesmo período (entre 2016 e 2018).
Ou seja, “se a NRA ofereceu apoio para a extrema-direita australiana, entendemos que haveria um interesse maior da organização em apoiar a família Bolsonaro devido ao potencial do mercado brasileiro e a fragilidade de nosso sistema democrático abalado desde as eleições de 2014”, explica.
Por fim, a pesquisadora aponta dados estatísticos sobre o consequente aumento das importações de armas no Brasil após a ascensão de Jair Bolsonaro. “Isso reforça a suspeita de que o governo Bolsonaro tenha alterado as leis para facilitar o acesso a armas de fogo a fim de cumprir um acordo feito com a NRA e com a indústria global de armas durante suas campanhas eleitorais”, sintetiza.