ENTENDA

O que acontece na Bolívia, onde protestos deixaram camponeses mortos e policiais feridos

Intensas manifestações de apoiadores do ex-presidente Evo Morales tomam as rodovias bolivianas contra juízes que o impediram de participar das próximas eleições, marcadas para 2025

Evo Morales em 2017.Créditos: Samuel Augusto/Flickr
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A Bolívia vive uma onda de protestos ao longo dessa semana. Nesta quinta-feira (25), o país registrou o seu quarto dia seguido de bloqueios de estradas, uma importante modalidade de manifestação para os camponeses locais, contra os juízes do Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) que impediram o ex-presidente Evo Morales de concorrer às próximas eleições presidenciais, marcadas para dezembro de 2025.

Nesta data foram confirmadas as mortes de dois civis e o quadro de saúde de 11 policiais feridos durante os protestos. As vítimas civis teria ficado presas a bloqueios realizados por camponeses. Uma delas era uma mulher de 53 anos que tinha problemas de pressão arterial e dificuldades para seguir viagem. Outra vítima foi identificada como René Pauasi, trabalhador de 57 anos do setor de transportes, que sofreu uma parada cardíaca mas não pôde receber atendimento médico.

Já os policiais feridos teriam sido produzidos por emboscadas dos manifestantes ao longo das estradas bloqueadas. “A federação de agricultores de Potosí, composta por aproximadamente 200 agricultores, emboscou nossos policiais e os atacou com paus e pedras”, disse à rádio Kawsachun Coca o comandante local de polícia, Juan Amílcar Sotopeña. Já a Administradora de Rodovias registrou 22 pontos de bloqueio nas estradas de Cochabamba, Oruro, Potosí, La Paz e Santa Cruz de la Sierra.

Na quarta (24) foram 16 pontos de bloqueio registrados. Já na segunda e terça-feira, primeiros dias da nova onda de protestos, uma série de episódios de confronto com a polícia foram registrados e um jovem de 19 anos foi preso em um dos pontos de manifestação no departamento de Cochabamba. Ele carregava um bastão de dinamite conforme informou a Força Especial Anticrime (Felcc) para a imprensa boliviana.

Apesar de parecer algo anormal para nós, brasileiros, portar uma dinamite não significa grande coisa em algumas regiões da Bolívia, especialmente no altiplano, onde cooperativas de mineradores se multiplicam. O material é vendido em comércios locais especializados na atividade. Em toda onda de protesto, ao longo das últimas décadas, sempre pipocam notícias de pessoas portando o material explosivo.

Os manifestantes pedem a renúncia dos juízes que compõem o TCP. Nesse ponto há dois aspectos importantes a serem mencionados. O primeiro é que desde 2009 com o advento da Constituição do Estado Plurinacional os juízes da Corte são eleitos via “eleições judiciais” e seus mandatos deveriam ter sido encerrados no ano passado. Mas a falta de um acordo político impediu que as eleições judiciais fossem convocados e uma controversa decisão judicial prorrogou seus mandatos. É a partir daí que os manifestantes invocam a legitimidade da pauta.

Já o estopim, o segundo aspecto a ser levado em consideração, é que em recente e polêmica decisão, o TCP fixou em dois mandatos o máximo de tempo que qualquer aspirante a presidência e vice-presidência pode permanecer no cargo, seja de forma seguida ou não. Dessa forma eliminam Morales, que tem forte base social, das próximas eleições.

A imprensa liberal boliviana, refletida nos meios de comunicação brasileiros, tenta pintar as mobilizações como um arroubo setorial de agricultores, cocaleiros e outros setores camponeses. Os manifestantes negam. À rádio Kawsachun Coca, Andrés Almanza, secretário-geral da Federação Cocaleira de Chimoré, afirmou que a mobilização tem um caráter nacional e não setorial. Já Evo Morales denuncia a “repressão ao protesto social” nas suas redes sociais.

“O governo nacional, no lugar de resolver as justas demandas do povo que defende a democracia, reprime e ameaça criminalizar o protesto social. Não apenas reprimem como iniciam processos judiciais para amedrontar. As justas demandas se resolvem com diálogo, não com juízos, gases, ameaças de morte e feridos”, escreveu no X, antigo Twitter.

O golpe de 2019 e os bloqueios de estradas

Evo Morales, considerado maior líder cocaleiro da história da Bolívia, presidiu o país por três mandatos, entre 2006 e 2019. Seus governos foram marcados por fortes melhoras nos índices econômicos e sociais do país que tem grande predominância camponesa na sua demografia e economia, além de enorme presença indígena. Oriundo de ambos os setores, Morales é aclamado pela população historicamente desfavorecida do país. Foi em 2009, no fim do seu primeiro mandato, que a Bolívia se tornou um Estado Plurinacional e reconheceu as culturas indígenas como oficiais, incluindo os idiomas quéchua e aymara, amplamente falados.

Eis que em 2019, sob forte influência do Brasil de Bolsonaro, dos EUA de Trump e do capital internacional representado por Elon Musk, que estava de olho nas reservas minerais do país, um golpe foi gestado no país. Eleito para o seu quarto mandato, Evo foi acusado de fraudar as eleições.

A narrativa se espalhou pelos meios de comunicação e foi apoiada por uma série de políticos de extrema direita, entre eles Luis Camacho, governador do departamento de Santa Cruz e forte aliado do agronegócio brasileiro e do bolsonarismo. Um político com histórico anti-indígena e de aproximação com a extrema direita.

Não demorou para que Morales fosse deposto por um motim das polícias, apoiado pela inatividade do Exército. Morales teve de sair do país e a então presidenta do parlamento, Jeanine Áñez, assumiu a presidência.

Entrou o ano de 2020 e a presidenta em exercício tinha a obrigação de convocar eleições. No entanto, Luis Arce, ex-ministro da economia de Morales, a derrotaria com folga no pleito de acordo com as pesquisas. Áñez então aproveitou a pandemia para ir adiando o processo eleitoral ao infinito, enquanto promovia o desmonte do Estado Plurinacional. Mas foi justamente o povo camponês e indígena, que hoje também se levanta, quem pressionou pela realização das eleições.

E o principal instrumento de protesto foram justamente os bloqueios de rodovias. Se nesta quinta (25) foram registrados 22 bloqueios, em 2020 durante a campanha de recuperação da democracia chegaram a ser registrados quase 500 bloqueios em todo o país numa mesma data. Foram meses de uma campanha de protestos populares até que as eleições fossem marcadas. Depois mais alguns meses de campanha e Luis Arce finalmente foi eleito.

Arce e Evo rompidos

Arce foi apoiado por Evo, mas após sua eleições, é de comum percepção a muitos analistas bolivianos e a figuras do próprio partido, o MAS, que o novo presidente começou a crescer internamente, quebrando a hegemonia do antigo líder. Foi a deixa para um racha entre os dois líderes.

Economista de formação e responsável por uma exitosa política econômica durante os governos Morales, Luis Arce teria um perfil mais tecnocrático e menos esquerdista. Os dois então passaram a disputar a hegemonia do MAS até que finalmente romperam. Morales chegou a acusar David Choquehuanca (atual vice-presidente que foi seu Chanceler no passado) de promover uma campanha difamatória contra ele. Dessa vez, tece duras críticas ao governo pela repressão aos seus apoiadores.