A Bolívia vive uma onda de protestos ao longo dessa semana. Nesta quinta-feira (25), o país registrou o seu quarto dia seguido de bloqueios de estradas, uma importante modalidade de manifestação para os camponeses locais, contra os juízes do Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) que impediram o ex-presidente Evo Morales de concorrer às próximas eleições presidenciais, marcadas para dezembro de 2025.
Nesta data foram confirmadas as mortes de dois civis e o quadro de saúde de 11 policiais feridos durante os protestos. As vítimas civis teria ficado presas a bloqueios realizados por camponeses. Uma delas era uma mulher de 53 anos que tinha problemas de pressão arterial e dificuldades para seguir viagem. Outra vítima foi identificada como René Pauasi, trabalhador de 57 anos do setor de transportes, que sofreu uma parada cardíaca mas não pôde receber atendimento médico.
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Já os policiais feridos teriam sido produzidos por emboscadas dos manifestantes ao longo das estradas bloqueadas. “A federação de agricultores de Potosí, composta por aproximadamente 200 agricultores, emboscou nossos policiais e os atacou com paus e pedras”, disse à rádio Kawsachun Coca o comandante local de polícia, Juan Amílcar Sotopeña. Já a Administradora de Rodovias registrou 22 pontos de bloqueio nas estradas de Cochabamba, Oruro, Potosí, La Paz e Santa Cruz de la Sierra.
Na quarta (24) foram 16 pontos de bloqueio registrados. Já na segunda e terça-feira, primeiros dias da nova onda de protestos, uma série de episódios de confronto com a polícia foram registrados e um jovem de 19 anos foi preso em um dos pontos de manifestação no departamento de Cochabamba. Ele carregava um bastão de dinamite conforme informou a Força Especial Anticrime (Felcc) para a imprensa boliviana.
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Apesar de parecer algo anormal para nós, brasileiros, portar uma dinamite não significa grande coisa em algumas regiões da Bolívia, especialmente no altiplano, onde cooperativas de mineradores se multiplicam. O material é vendido em comércios locais especializados na atividade. Em toda onda de protesto, ao longo das últimas décadas, sempre pipocam notícias de pessoas portando o material explosivo.
Os manifestantes pedem a renúncia dos juízes que compõem o TCP. Nesse ponto há dois aspectos importantes a serem mencionados. O primeiro é que desde 2009 com o advento da Constituição do Estado Plurinacional os juízes da Corte são eleitos via “eleições judiciais” e seus mandatos deveriam ter sido encerrados no ano passado. Mas a falta de um acordo político impediu que as eleições judiciais fossem convocados e uma controversa decisão judicial prorrogou seus mandatos. É a partir daí que os manifestantes invocam a legitimidade da pauta.
Já o estopim, o segundo aspecto a ser levado em consideração, é que em recente e polêmica decisão, o TCP fixou em dois mandatos o máximo de tempo que qualquer aspirante a presidência e vice-presidência pode permanecer no cargo, seja de forma seguida ou não. Dessa forma eliminam Morales, que tem forte base social, das próximas eleições.
A imprensa liberal boliviana, refletida nos meios de comunicação brasileiros, tenta pintar as mobilizações como um arroubo setorial de agricultores, cocaleiros e outros setores camponeses. Os manifestantes negam. À rádio Kawsachun Coca, Andrés Almanza, secretário-geral da Federação Cocaleira de Chimoré, afirmou que a mobilização tem um caráter nacional e não setorial. Já Evo Morales denuncia a “repressão ao protesto social” nas suas redes sociais.
“O governo nacional, no lugar de resolver as justas demandas do povo que defende a democracia, reprime e ameaça criminalizar o protesto social. Não apenas reprimem como iniciam processos judiciais para amedrontar. As justas demandas se resolvem com diálogo, não com juízos, gases, ameaças de morte e feridos”, escreveu no X, antigo Twitter.
O golpe de 2019 e os bloqueios de estradas
Evo Morales, considerado maior líder cocaleiro da história da Bolívia, presidiu o país por três mandatos, entre 2006 e 2019. Seus governos foram marcados por fortes melhoras nos índices econômicos e sociais do país que tem grande predominância camponesa na sua demografia e economia, além de enorme presença indígena. Oriundo de ambos os setores, Morales é aclamado pela população historicamente desfavorecida do país. Foi em 2009, no fim do seu primeiro mandato, que a Bolívia se tornou um Estado Plurinacional e reconheceu as culturas indígenas como oficiais, incluindo os idiomas quéchua e aymara, amplamente falados.
Eis que em 2019, sob forte influência do Brasil de Bolsonaro, dos EUA de Trump e do capital internacional representado por Elon Musk, que estava de olho nas reservas minerais do país, um golpe foi gestado no país. Eleito para o seu quarto mandato, Evo foi acusado de fraudar as eleições.
A narrativa se espalhou pelos meios de comunicação e foi apoiada por uma série de políticos de extrema direita, entre eles Luis Camacho, governador do departamento de Santa Cruz e forte aliado do agronegócio brasileiro e do bolsonarismo. Um político com histórico anti-indígena e de aproximação com a extrema direita.
Não demorou para que Morales fosse deposto por um motim das polícias, apoiado pela inatividade do Exército. Morales teve de sair do país e a então presidenta do parlamento, Jeanine Áñez, assumiu a presidência.
Entrou o ano de 2020 e a presidenta em exercício tinha a obrigação de convocar eleições. No entanto, Luis Arce, ex-ministro da economia de Morales, a derrotaria com folga no pleito de acordo com as pesquisas. Áñez então aproveitou a pandemia para ir adiando o processo eleitoral ao infinito, enquanto promovia o desmonte do Estado Plurinacional. Mas foi justamente o povo camponês e indígena, que hoje também se levanta, quem pressionou pela realização das eleições.
E o principal instrumento de protesto foram justamente os bloqueios de rodovias. Se nesta quinta (25) foram registrados 22 bloqueios, em 2020 durante a campanha de recuperação da democracia chegaram a ser registrados quase 500 bloqueios em todo o país numa mesma data. Foram meses de uma campanha de protestos populares até que as eleições fossem marcadas. Depois mais alguns meses de campanha e Luis Arce finalmente foi eleito.
Arce e Evo rompidos
Arce foi apoiado por Evo, mas após sua eleições, é de comum percepção a muitos analistas bolivianos e a figuras do próprio partido, o MAS, que o novo presidente começou a crescer internamente, quebrando a hegemonia do antigo líder. Foi a deixa para um racha entre os dois líderes.
Economista de formação e responsável por uma exitosa política econômica durante os governos Morales, Luis Arce teria um perfil mais tecnocrático e menos esquerdista. Os dois então passaram a disputar a hegemonia do MAS até que finalmente romperam. Morales chegou a acusar David Choquehuanca (atual vice-presidente que foi seu Chanceler no passado) de promover uma campanha difamatória contra ele. Dessa vez, tece duras críticas ao governo pela repressão aos seus apoiadores.