O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, telefonou na manhã deste sábado (9) para o presidente Lula (PT) com o objetivo de conversar sobre a recente escalada de tensões entre seu país e a Guiana, por conta da reivindicação do território de Essequibo.
De acordo com nota divulgada pelo Palácio do Planalto, Lula atendeu Maduro e não escondeu do mandatário venezuelano a preocupação do Brasil com a escalada das tensões em plena América do Sul, um continente famoso justamente pela ausência de guerras e tensões entre países vizinhos.
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“Lula expôs os termos da declaração sobre o assunto aprovada na Cúpula do Mercosul e assinada por Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina, Colômbia, Peri, Equador e Chile. Recordou a longa tradição de diálogo na América Latina e que somos uma região de paz”, diz o informe.
O brasileiro ainda sugeriu que Ralph Gonsalves, o presidente de turno da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, faça uma mediação entre as duas partes para tratar o tema. “Lula ressaltou que é imporante evitar medidas unilaterais que levem a uma escalada da situação”, finaliza o informe do Planalto.
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Mais cedo, Maduro já mostrava uma mudança de postura nas redes sociais, quando escreveu que para resolver o impasse precisaria “sentar e conversar” com a Guiana. Antes, o tom parecia estar bastante beligerante e sem brechas para o diálogo.
“A Guiana e a ExxonMobil terão de sentar para conversar conosco, o Governo da República Bolivariana da Venezuela. De alma e coração, queremos paz e entendimento. Que o mundo escute, com Acordo de Genebra e tudo, escreveu Maduro no X, antigo Twitter.
A ExxonMobbil, citada por Maduro, é uma multinacional petroleira com sede no Texas, Estados Unidos, e explora o petróleo da região reivindicada pelos venezuelanos. A Venezuela, por sua vez, também é um importante produtor de petróleo. Maduro cita a empresa uma vez que a Guiana seria, em certa medida, e na sua opinião, uma espécie de República das Bananas tutelada pela atividade comercial da multinacional.
O presidente Lula ainda não comentou o recente telefonema.
Por que Essequibo? - Por Ana Prestes
A questão central é que desde 1899, com o laudo arbitral de Paris, o território da Guiana Essequiba foi arrancado da Venezuela pelo imperialismo britânico em combinação com o nascente poderio norte-americano, contrariando a extensão territorial originária prevista no mapa da Capitania Geral da Venezuela e ratificada na Constituição venezuelana de 1830. Foi nos anos 40 do século 19 que se iniciou o avanço sobre esse território pelos ingleses com o estabelecimento das linhas Schomburgk traçadas arbitrariamente como a nova fronteira da então colônia britânica da Guiana.
Por cerca de 40 anos a Venezuela divergiu dos britânicos para que respeitassem a fronteira natural estabelecida pelo rio Essequibo até que em 1887 houve um rompimento de relações e em 1895 o conflito se agravou. Neste momento, entraram em cena os EUA, com base na Doutrina Monroe. A mediação dos EUA levou a que em 1897 fosse assinado o Tratado de Washington para a formação de um acordo arbitral. E aqui vem um ponto importante: sem a presença de venezuelanos. Isso mesmo, os EUA se basearam na Doutrina Monroe, de que nenhum país europeu ou de fora do continente americano poderia recolonizar ou colonizar novos territórios nas Américas, contra os britânicos portanto, mas ao final costuraram um acordo desvantajoso para a Venezuela. O comitê estabelecia que os venezuelanos seriam representados por duas pessoas dos EUA, os britânicos por 2 britânicos e o árbitro seria um russo. E eis que a arbitragem decide pela retirada de 90% do território em disputa do domínio venezuelano. Os venezuelanos obviamente protestaram.
Décadas mais tarde, em 1949, já em meados do século 20, vai se descobrir que a tal arbitragem de 1899 teve um complô anti-Venezuela. As revelações sobre o complô e a fraude do laudo arbitral de Paris foram publicadas em 1949 na revista The American Journal of International Law. Tratava-se de uma carta-memorando de Severo Mallet Prevost, que foi um advogado mexicano escolhido pelos venezuelanos para acompanhar a arbitragem de 1897-1899 e deixou suas memórias para serem publicadas postumamente.
Com base nessas revelações, a partir dos anos 60 o governo venezuelano começa a lutar na ONU pelo cancelamento da arbitragem de Paris até que em 1966, Venezuela, Grã Bretanha, a Irlanda do Norte e a então Guiana britânica reconheceram a existência da controvérsia e se estabeleceu um acordo para a busca de uma solução pacífica. Neste mesmo ano se deu a independência da Guiana da Grã Bretanha.
A Venezuela, ao reconhecer a independência da Guiana, enviou uma carta em que voltou a reivindicar o rio Essequibo como linha divisória entre os dois países, mas a nova Guiana, agora independente, respondeu a carta dizendo que o agora novo governo da Guiana reconhecia suas fronteira como as mesmas da então colônia britânica da Guiana. No entanto, afirmou que iria cumprir o acordo de Genebra de busca por uma solução pacífica. Este acordo nunca avançou efetivamente, com muitas idas e vindas, congelamento de artigos do acordo, escolha de representantes da ONU que não conseguiam atuar objetivamente.
Em 1998 Hugo Chávez venceu as eleições na Venezuela e a questão do Essequibo foi tratada na nova constituição venezuelana promulgada no período chavista. A questão do Essequibo apareceu da seguinte forma: a Venezuela não aceitava a arbitragem de 1899; como um país que busca a diplomacia de paz, integração e cooperação solidária negava qualquer possibilidade de solução bélica para a controvérsia e se ateria ao Acordo de Genebra. Chavez, no entanto, nunca conseguiu que o Acordo de Genebra fosse cumprido, esteve várias vezes na Guiana e com seu presidente, sempre reforçando que aquela controvérsia territorial era uma herança do período colonial, das quais os povos colonizados foram vítimas, mas que precisaria ser resolvida.
Em 2010 o secretário geral da ONU nomeou um terceiro representante, o jamaicano Norman Girvan, para atender à controvérsia, mas ele faleceu em 2014 sem ver nenhuma solução à vista.
Em 2013, já presidente, Maduro visitou a Guiana e reiterou a controvérsia como uma herança colonial, mas em 2015 a situação escalou porque a norte-americana Exxon Mobil, empresa de petróleo e gás, começou a realizar atividades no perímetro marítimo sob disputa. De lá pra cá, a relação entre Venezuela e a Guiana deteriorou, com a convocação de Embaixadores, reivindicações dos venezuelanos de que a ONU fizesse a mediação e dos guianenses de que a ONU reconhecesse o laudo arbitral de 1899, entrada de navios da Exxon em território venezuelano e por aí vai. Recordemos que, não coincidentemente, foi nesse o período, principalmente com a chegada de Trump à presidência dos EUA em 2016, que a Venezuela passou a receber mais ataques e sanções dos EUA, países europeus e mesmo vizinhos latino-americanos. Houve ações de desestabilização do governo Maduro, tentativa de impor um presidente autoproclamado, Juan Guaidó, pressão por parte do grupo de Lima, tentativa de “entrada com ajuda humanitária” (invasão).
Em 2020, a Corte Internacional de Justiça, principal órgão jurídico da ONU, se pronunciou competente para receber um pedido unilateral da Guiana de validação do laudo arbitral de 1899, passando por cima do Acordo de Genebra de 1996. Historicamente, a Venezuela não reconhece essa corte como o árbitro da controvérsia e reivindica o acordo de Genebra de 1966 para a mediação do conflito.
Neste momento em que escrevo, há 6 empresas petroleiras na perfuração de poços de petróleo nas águas que correspondem ao território Essequibo. Estima-se uma reserva de 11 bilhões de barris na região. Os próximos dias prometem ser de muita repercussão sobre a intensificação dessa disputa, alimentada por um governo da Guiana alinhado aos EUA e impulsionado com recentes descobertas de petróleo (desde 2019) justamente nessa margem equatorial sob controvérsia. Há notícias de que a própria Exxon paga os advogados para representarem a Guiana junto aos órgãos da ONU e CIJ. Mais uma vez, os interesses de forças externas à América do Sul, velhos conhecidos EUA e Inglaterra, atuam em detrimento da paz na região.