Apartheid é o nome do sistema de segregação racial que vigorou na África do Sul por quase 50 anos, de 1948 a 1994. Durante esse período, o governo sul-africano impôs leis que discriminavam brutalmente a população negra, segregando-a em áreas específicas, limitando seus direitos políticos e sociais, e promovendo a supremacia branca. Esse regime opressivo gerou resistência interna e repúdio global, culminando na libertação de Nelson Mandela e na realização de eleições democráticas em 1994, que puseram fim ao apartheid e marcaram o início de uma nova era de igualdade e reconciliação no país.
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Apesar do fim da segregação na África do Sul, o apartheid ainda está vivo, porém reeditado e deflagrado por outro governo: o de Israel contra a população palestina que vive em territórios cercados, ocupados ou colonizados por israelenses, mais especificamente Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental.
No último sábado (7), o braço armado do Hamas, um dos grupos políticos islâmicos-palestinos que reivindicam a retomada do controle de seus territórios diante da ocupação israelense, bem como o fim do cerco a Gaza, deflagrou um ataque contra Israel, que revidou e fez a escalada de violência na região chegar níveis alarmantes.
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A investida militar do Hamas fez o termo “terrorismo” entrar em evidência, já que muitos países, como os Estados Unidos e Israel, classificam oficialmente o grupo islâmico-palestino como “terrorista”. Por outro lado, o termo “apartheid” também foi revisitado, já que é desta maneira que autoridades palestinas e algumas entidades internacionais classificam a política israelense para com o povo da Palestina.
A Human Rights Watch é uma dessas organizações internacionais que defendem o uso do termo “apartheid” para definir o regime israelense em territórios ocupados palestinos. Em 2021, por exemplo, a entidade divulgou um relatório de 213 páginas baseado na coleta de dados e análise das leis israelenses apontando que, na maior parte da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental, onde vivem mais de 6,8 milhões de palestinos, Israel exerce poder em detrimento das autoridades palestinas constituídas.
“Em todas essas áreas e na maioria dos aspectos da vida, as autoridades israelenses privilegiam metodicamente os judeus israelenses e discriminam os palestinos”, diz trecho do documento.
“Leis, políticas e declarações de importantes autoridades israelenses deixam claro que o objetivo de manter o controle judeu israelense sobre a demografia, o poder político e a terra há muito orienta a política governamental. Em busca desse objetivo, as autoridades desapropriaram, confinaram, separados à força e subjugados, os palestinos em virtude de sua identidade em vários graus de intensidade. Em certas áreas, conforme descrito neste relatório, essas privações são tão graves que equivalem aos crimes contra a humanidade do apartheid e da perseguição”, destaca ainda a Human Rights Watch.
A Convenção Internacional sobre a Supressão e Punição do Crime de Apartheid de 1973, juntamente com o Estatuto de Roma de 1998 do Tribunal Penal Internacional (TPI), estabelecem uma clara definição do apartheid como um crime contra a humanidade. Esta grave violação dos direitos humanos envolve três elementos cruciais:
- a intenção deliberada de manter a dominação de um grupo racial sobre outro;
- a presença de um contexto de opressão sistemática pelo grupo dominante sobre o grupo oprimido;
- a prática de atos desumanos.
Apartheid de Israel
Em entrevista à Fórum, a bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e mestranda em Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo (USP), Fernanda de Melo, pesquisadora sobre grupos de resistência palestinos, “não há dúvidas” de que o Estado de Israel pratica o regime de apartheid contra a população da Palestina.
“É um termo, inclusive, cunhado pelo Direito Internacional para conseguir definir um regime que exerça controle sobre uma etnia, conceituado pela discriminação de uma etnia sobre a outra. Nesse caso, a gente consegue enquadrar o sistema no território palestino ocupado como um apartheid”, pontua Fernanda.
A pesquisadora cita como exemplo de entidade que classifica como “apartheid” a opressão exercita por Israel contra palestinos, para além da Human Rights Watch, a Organização Não Governamental (ONG) israelense B'Tselem.
“A B'Tselem fala que Israel está vivendo sob um regime de apartheid, onde as vítimas são os árabes palestinos, mas também algumas outras etnias, como é o caso dos judeus palestinos, dos cristãos palestinos. Então, não se trata somente da religião, mas a questão vai também para o quesito raça”, elucida Fernanda.
Segundo a internacionalista, a Faixa de Gaza é “o maior exemplo prático de apartheid”, destacando que área foi construída sob o cerco de muros.
“Gaza hoje é tida como a maior prisão aberta de todo o mundo. E dentro dessa prisão a gente tem um controle muito rígido do que essas pessoas vão ter acesso. Por exemplo, hoje mesmo Israel já anunciou que comida, água, suprimentos e combustível foram bloqueados em Gaza. Então, a gente tem, na verdade, um Estado controlando a soberania de outro território e controlando a soberania de um outro povo. Isso é muito grave. Isso, inclusive, é um crime de guerra”, detalha.
Fernanda de Melo também menciona como exemplos de apartheid praticado por Israel as demolições de casas de palestinos promovidas por israelenses em Sheikh Jarrah, bairro em Jerusalém Oriental, e Jenin, terceira maior cidade da Cisjordânia.
“De 2020 para cá a gente já houve a demolição de mais de 900 residências palestinas por parte de Israel. Esse é um assunto muito sensível, onde a gente consegue ver que todo o controle de um povo está sobre um outro território”, revela a pesquisadora.
A internacionalista cita também outra prática que configura apartheid, que são as cercas e os muros dos checkpoints nas fronteiras de ocupações israelenses em territórios palestinos.
“O muro cerca os palestinos e, para fazer o controle de entrada, de acesso, tanto de ir e vir, Israel construiu esses checkpoints, que é onde os palestinos passam horas e horas sob a mira de fuzis e metralhadoras para transitarem. Muitos palestinos trabalham em Israel e passam por isso. É uma violação tremenda. Muitos palestinos falam que seus celulares são confiscados, precisam deletar suas redes sociais, precisam formatar o celular para que não tenham nada, digamos, ‘suspeito’, para que não sejam presos”, destaca.
“71% dos presos em Israel são árabes, apesar dos árabes representarem apenas 21% da população israelense. Então, para a gente fazer uma analogia, é como se a gente que é brasileiro cometesse um crime no Brasil, por qualquer que seja o motivo, e a gente fosse levado para a Argentina para sermos julgados”, arremata a pesquisadora.
Em síntese, a discussão em torno do uso do termo "apartheid" para descrever a situação dos palestinos nos territórios ocupados por Israel destaca a urgência de um diálogo global honesto e construtivo sobre os direitos humanos e a paz na região. A análise cuidadosa das políticas e práticas em vigor é essencial para entender a complexidade desse conflito de longa data.