GUERRA NA EUROPA

Entenda por que os russos não estão conseguindo tomar Kiev

A repetitiva celeuma de que as colunas de tanques estão chegando à capital ucraniana já não cola mais. Algo deu muito errado com as tropas terrestres do Kremlin. Veja o que se passa segundo analistas

Tanques russos são atacados no subúrbio de Kiev por militares ucranianos (YouTube/Reprodução).
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A invasão da Ucrânia por tropas russas, iniciada em 24 de fevereiro, assustou a comunidade internacional e foi assistida em tempo real em todo o mundo. Desde os primeiros momentos, mísseis caíram sobre bases militares e pontos de importância logística na região de Kiev. Nos dias seguintes, surgem imagens captadas por satélites de imensas colunas de tanques russos tomando até 60 quilômetros de estrada rumo à capital ucraniana. As notícias eram sempre as mesmas: comboio militar se aproxima... já está a 200 quilômetros... neste momento, estão a 50 quilômetros... devem chegar na próxima noite... enfim.

O fato é que não entraram até agora. Aliás, até que algumas unidades circularam pelos subúrbios de Kiev, mas drones filmaram ataques explosivos contra os blindados, que bateram em retirada. Dezenas de vídeos diferentes que circulam nas redes sociais mostram veículos militares destroçados, soldados russos mortos pelo chão e muitos, muitos mesmo, equipamentos perdidos. Afinal, por que os russos não estão conseguindo tomar Kiev?

A estratégia, desde o início, era tomar Kiev e derrubar o governo de Volodymyr Zelensky, e foi para isso que as unidades oriundas de Belarus entraram em ação. Já no começo do conflito, capturar o aeroporto de Hostomel, e fazer com que dezenas de voos nos brutamontes Il-76 chegassem com milhares de soldados, era a estratégia. O primeiro desses aviões que tentou pousar foi derrubado, a lógica que parecia elementar foi por água abaixo e então começam as ações com o tal “comboio da morte”, trazendo toneladas e mais toneladas de bombas nos milhares de veículos que ocupavam as estradas com destino a Kiev.

Os comboios não chegaram porque houve um apanhado de problemas, segundo fontes do MI6, o serviço secreto britânico, entre eles estão erros de logística com o abastecimento de tantos veículos pesados e problemas de locomoção em terrenos lamacentos e irregulares demais para tornar ágil a missão. Londres ficou surpresa com um erro tão grosseiro por parte de um exército historicamente vitorioso, experiente e robusto como o da Rússia.

Dados mais próximos da realidade, vazados da inteligência militar do Pentágono para o jornal The New York Times, já que ucranianos inflam o número de baixas dos inimigos e russos diminuem as cifras de suas perdas, dão conta de que aproximadamente 7 mil soldados da Rússia tenham morrido desde o início da invasão, sem falar nos prejuízos materiais, estimados em pelo menos 10% de seus tanques e blindados, além dos vários aviões abatidos, muitos deles caríssimos e respeitados, como o Su-34. O elevado número de mortos, somado ao baque no moral dos jovem militares que estão no front, segundo Jack Watling, pesquisador do Royal United Services Institute (RUSI), em entrevista do jornal britânico The Guardian, estariam fazendo a Rússia reconsiderar suas estratégias, poupar homens e atravessar uma profunda crise “de pessoal”.

Outro fator que deve ser levado em consideração para a frenagem brusca na velocidade que até então vinha empreendendo a Rússia em sua campanha é uma velha expressão, lá dos anos 1980, parida na Guerra do Afeganistão: o chamado “Stinger effect”, ou “fator Stinger”.

Stinger é o lança-foguetes portátil fabricado pelos norte-americanos, que popularmente chamamos de bazuca, que tem a capacidade de acertar com facilidade aviões, helicópteros e sobretudo tanques. Na Guerra do Afeganistão, os soviéticos tiveram suas forças aéreas e terrestres destroçadas pelos Stingers doados pelos EUA aos mujahedin. Agora, o drama se repete e com uma variedade maior desses equipamentos leves que abatem aviões militares caríssimos e blindados truculentos num piscar de olhos. Há o Javelin, o NLAW e o Stinger, distribuídos aos montes para o exército da Ucrânia, que com eles vem causando sérios prejuízos aos invasores russos.

O ex-conselheiro da Otan Chris Donnelly escreveu que o problema que ocorre com as tropas russas nesse momento é algo que remonta décadas atrás, já que por muito tempo a Moscou deixou de formar tropas de elite e profissionais de alta capacidade, em número expressivo, para priorizar um exército até numeroso, mas de recrutas sem experiência e sem disposição para lutar.

Por fim, o que se sabe é que Moscou está reformulando sua estratégia e tem considerado seriamente, como já foi anunciado, utilizar mercenários da Síria, com farta experiência em combate. Outro problema que pode surgir, se de fato os russos finalmente conseguirem entrar totalmente em Kiev, é a resistência e a guerrilha urbana, que por si só já são um pesadelo para o Kremlin, já que é só lembrarmos da primeira guerra da Chechênia, quando um punhado de tropas com equipamentos e armamentos parcos colocou o poderoso exército herdeiro da União Soviética para correr de Grozny, como lembrou Michael Kofman, especialista em assuntos militares russos do Centro de Análises Navais dos EUA (CNA), em entrevista ao canal televisivo France24.