Agressões físicas, humilhações, tiros de borracha, bombas, perseguições. Essa é a realidade relatada por usuários de drogas que vivem na região da Cracolândia, em São Paulo, de acordo com um novo estudo da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que buscou a percepção das pessoas que vivem no local sobre políticas públicas.
"Eles quebraram minha costela e furou meu pulmão. E eu tive que ficar sete dias internado, com drenagem aqui, para tirar o ar do pulmão, senão eu ia morrer. Eu não fiz nada, moço. Nem mexo com esses caras, tá ligado? Nem mexo com eles", conta um homem de 55 anos ao grupo de pesquisadores.
A pesquisa, feita pelo Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getúlio Vargas (NEB/FGV), pelo Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (CEM/USP) ) e pelo Grupo de Estudos (in)disciplinares do corpo e do território (Cóccix), foi divulgada nesta sexta-feira (25) e busca mapear o perfil e a realidade de alguns frequentadores da Cracolândia. A pesquisa, divulgada pela Agência Bori, revela ineficácia das políticas públicas atuais, violência policial e expectativas frustradas dessas pessoas em relação ao poder público.
"Vivem nos chamando de lixo, tratam as pessoas como se não fossem seres humanos. Olha só, ninguém ali tem arma, precisa tratar assim? Para correr, pra bater nas pessoas? Sem necessidade!", relata uma mulher de 40 anos.
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Um outro frequentador, de 37 anos, relata que já foi sequestrado e agredido quando saía de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), e que acabou perdendo o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Bom Prato, um programa que oferece refeições a pessoas em situação de rua. "Eu era coagido direto, agora que deu uma parada porque eu saí um pouco do foco, mas direto eu era ameaçado, eu era forjado, era chamado de irmão, que eu era um traficante, que eu era isso, que eu era aquilo", diz.
O estudo aponta que a violência policial é um fator agravante na vida dos moradores da Cracolândia, e a Inspetoria de Operações Especiais (IOPE) da Guarda Civil Metropolitana (GCM), da prefeitura de São Paulo, é destacada como a força mais agressiva.
“A gente não pode dormir e nem comer. Somos parados pela operação, aí temos que correr”, relata outra entrevistada, de 19 anos.
Em relato de uma mulher, de 42 anos, ela revela uma agressão que sofreu por não querer vender aos policiais os alimentos que conseguiu para os filhos.
Eu estava com a sacola de compra, porque eu fui pedir ajuda para levar para meus filhos, umas comidas, um arroz, feijão, essas coisas. O policial queria me obrigar a vender a comida pra eles, as compras. E eu falei 'Mas senhor, eu não estou vendendo'. 'Você vai vender, sua noia, desgraçada, você não quer vender pra mim porquê?'. Ele me oprimiu. Ele queria comprar minhas compras, eu falei que não vou vender, e ele me bateu, me deu vários cassetetes. Virou o cassetete com aquele cabo menor e o grande ele deu no meu peito. Virou assim e pôs aqui, e deu no meu peito, bem no osso aqui. Isso aqui ficou roxo por uns dias. Eu não aguentava nem respirar. Eu não respirava", conta.
Os pesquisadores apontam que o fechamento de serviços de cuidado e o aumento da presença policial têm intensificado as tensões na região. Ou seja, a condução do problema, pelos poderes municipal, comandado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), e estadual, pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), não está sendo efetiva, pelo contrário.
A política de dispersão adotada a partir de 2022 resultou no espalhamento das cenas de uso de drogas pela cidade, amplificando os problemas e gerando impactos negativos para os usuários e para a comunidade local.
Os especialistas também afirmam que as agressões causam traumas físicos e psicológicos, além de estimular o estigma social. Isso contribui para a marginalização e dificulta ainda mais o acesso a serviços de saúde e assistência social.
Para Giordano Magri, pesquisador da FGV que coordenou o estudo, o futuro dessas pessoas é incerto porque “embora os dados apontem para a necessidade de expandir os serviços, diminuir a violência e criar alternativas para reduzir a vulnerabilidade desse público, as políticas atuais seguem na direção oposta”.
Um homem de 52 anos conta que já foi preso após guardas da GCM o forjarem com drogas. Segundo o frequentador, ele foi parado apenas com dinheiro, mas forjaram sete pedras com ele, resultando em seis anos de prisão.
Os pesquisadores também afirmam que as agressões físicas, morais e sociais culminam nas cenas generalizadas de violência como os arrastões e tantas outras que vemos ser publicadas nas mídias. “E, na contramão de um modelo de intervenção positiva, os tratamentos de saúde e de assistência social não têm conseguido impactar a realidade das pessoas”, diz Gabriela Amparo, da USP.
Desilusão e desconfiança
O estudo também destaca a desilusão e desconfiança dos entrevistados em relação ao poder público, pois se sentem invisíveis e excluídos das decisões que afetam diretamente suas vidas. Para os autores do trabalho, a transformação da realidade na Cracolândia não será alcançada por meio de ações isoladas ou repressivas, mas por meio de uma abordagem holística que coloque o ser humano no centro das políticas.
Os próprios frequentadores da Cracolândia apontam medidas para solucionar os problemas enfrentados, como políticas integradas com destaque para oportunidades de trabalho, acesso à moradia digna e cuidados de saúde efetivos.
“Um bom tratamento seria ter uma cooperativa para todos terem uma ocupação de mente”, sugere um homem de 35 anos.
Ao todo, foram 90 entrevistados entre julho e agosto de 2022. Mais de 80% de quem topou dar entrevista são homens negros entre 30 e 49 anos. Os pesquisadores ressaltam que amostra não é representativa para toda a população da Cracolândia, mas joga uma luz sobre a realidade vivida por usuários de drogas e pessoas em situação de rua na região.
Prefeitura de SP reage e outra vez vê “objetivo eleitoral”
A Prefeitura de São Paulo entrou em contato com a redação da Fórum e negou os fatos apresentados na reportagem. Como em outros episódios recentes envolvendo a administração do prefeito Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição, o Executivo paulistano afirmou que as informações veiculadas teriam tão somente “objetivo eleitoral”, visto a proximidade do segundo turno das eleições deste ano, acusando inclusive um dos pesquisadores relacionados ao levantamento de manter vínculos com o Partido dos Trabalhadores. A pesquisa foi realizada por acadêmicos da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), duas das mais respeitadas instituições de ensino superior da América Latina.
Veja a manifestação da prefeitura na íntegra:
A Prefeitura de São Paulo repudia que denúncias anônimas e sem comprovação sejam publicadas às vésperas da eleição com o intuito deliberado de desinformar a população. A Revista Fórum não procurou a Prefeitura acerca dos supostos fatos, para os quais, reforçamos, não foi apresentada até o momento qualquer prova de que tenham ocorrido. Em vez disso, divulgou um estudo que tem como um dos pesquisadores um ex-chefe de gabinete da gestão do PT em São Paulo e que, publicado a poucos dias do segundo turno, demonstra como único objetivo o uso eleitoral.
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