Falta de políticas públicas, ambientais e aplicação de regulamentos e leis, o direcionamento de pessoas negras para áreas periféricas e de maior risco, transportes precários, instalação de lixões próximos às casas dessa população e outras práticas que negligenciam qualidade de vida às pessoas negras fazem parte da política do racismo ambiental.
“É um conjunto de ausências que vão produzir efeitos e impactos gravíssimos e isso não é coincidência”, destaca Larissa Amorim, coordenadora executiva da Casa Fluminense, organização formada por ativistas, pesquisadores e cidadãos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e dedicada ao fomento de ações voltadas à promoção da igualdade e ao desenvolvimento sustentável do estado.
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Criado em 1981 pelo líder afro-americano de direitos civis Dr. Benjamin Franklin Chavis Júnior, o termo “racismo ambiental” vem ganhando maior destaque devido ao agravamento dos eventos extremos provocados pela crise climática.
No estado do Rio de Janeiro, um conjunto de diversos dados - e experiências - revela as faces cruéis do racismo ambiental e as tragédias que ele já provocou e vai provocar nos próximos anos. Apesar da capital ter maior destaque nos estudos de impacto das mudanças climáticas, os dados dos municípios da Região Metropolitana expõem que são essas áreas e suas populações que mais sofrem com o racismo ambiental e climático.
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Esses dois tipos de racismo se entrelaçam na discussão entre raça e meio ambiente, e como a ausência de políticas públicas urbanas torna a população negra a mais vulnerável aos desastres provocados pela crise climática, como enchentes e ilhas de calor.
“O debate do clima é um debate fundamental porque quem mais sofre e quem mais vai sofrer com os impactos das mudanças climáticas são as populações que estão vivendo o racismo ambiental na pele”, resume Larissa.
O Mapa das Desigualdades 2023, realizado pela Casa Fluminense, identificou 40 indicadores para retratar em dados a realidade dos 22 municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). A ferramenta evidencia a atuação do racismo ambiental no planejamento urbano e na falta de planos de adaptação climática, principalmente em regiões com a maioria da população negra.
O debate sobre mudanças climáticas costuma trazer foco para as consequências dos eventos extremos, como as enchentes e o aumento de doenças relacionadas ao fenômeno. O Mapa das Desigualdades, porém, lança luz ao debate sobre as causas que, num primeiro momento, podem não parecer diretamente ligadas à crise climática, mas evidenciam a relação entre o racismo ambiental e climático.
Saneamento básico
Para Larissa, o saneamento ambiental é a maior marca do racismo ambiental em termos de rastro de destruição, muito relacionado às enchentes.
Segundo os dados do Mapa das Desigualdades, 12 municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro têm coleta e tratamento de esgoto abaixo de 5%. Alguns, como Paracambi, Seropédica, Tanguá, Rio Bonito, Itaboraí, Japeri, Magé têm 0,0% do esgoto tratado. Quando olhamos os dados sobre o número de pessoas internadas por doenças de veiculação hídrica, como a dengue, é a população negra a mais acometida (83,7%).
Em Guapimirim, por exemplo, o percentual de habitantes cujo esgoto é coletado e tratado é de 0,0%. Neste município, 100% da população internada por essas doenças é negra. Em Belford Roxo, o caso é parecido. Apenas 0,3% dos habitantes têm tratamento de esgoto, e 98,6% da população internada por doenças hídricas é negra.
Quando nos voltamos para algumas das consequências da crise climática, encontramos o aumento da dengue. O estado do Rio apresentou alta no número de casos em relação ao ano passado. Apenas em outubro, foram registrados 39.369 casos em todo o estado. Em 2022, foram 9.926 casos para o mesmo período. A Secretária de Saúde não destaca a possibilidade de uma epidemia em 2024.
Os dados revelam, então, que a população negra, além de não ter acesso a tratamento de esgoto, um direito básico, ainda é a principal vítima de doenças; e ainda, será a maior parcela a sofrer com a dengue nos próximos anos.
Qualidade da água
Outro balanço, sobre a qualidade de rios, baías e lagoas do estado do Rio de Janeiro, mostra que o percentual de coletas ruins e muito ruins em relação ao total de coletas realizadas em 2021 e 2022 é de 69% para toda a Região Metropolitana. Novamente, Belford Roxo está em destaque, com índice de 100%. Duque de Caxias, Queimados, São Gonçalo e São João de Meriti também apresentam todas as coletas com qualidade ruim e muito ruim da água.
Com as enchentes, que se tornam mais frequentes com a crise climático, são essas águas totalmente poluídas que entrarão na casa dos moradores das regiões levando doenças.
Desastres ambientais
O Mapa das Desigualdades também mapeou o percentual da população negra em domicílios que não são destinados à habitação e o número de casas que foram danificadas ou destruídas por conta de eventos relacionados às fortes chuvas.
A população negra representa a maioria da população em domicílios irregulares. De um total de cerca de 239 mil pessoas vivendo nesses locais, 172 mil são negras, ou seja, 72,2% da população da Região Metropolitana. Os cinco municípios com os maiores percentuais são Rio Bonito 81,1%, Mesquita 80,6%, Queimados 78,5%, Paracambi 78% e Japeri 77,1%.
Em Mesquita, que ocupa o segundo lugar, foram 13.370 casas danificadas ou destruídas devido a eventos climáticos relacionados às fortes chuvas (2021/2022).
Em Petrópolis, que não está entre os principais, mas apresenta um percentual de 55,9% da população negra, a tragédia ambiental de 15 de fevereiro de 2022 deixou 1.158 casas destruídas. Segundo o Plano Municipal de Redução de Risco (PMRR), concluído em 2017, o Morro da Oficina, epicentro da tragédia, tinha mais de 729 moradias em áreas de risco alto ou muito alto.
O retrato do racismo ambiental e climático pode ser ainda maior, mas 13 municípios, incluindo a capital, não apresentam dados de moradias afetadas pelas chuvas.
Ilhas de calor e áreas verdes
A ausência de áreas verdes em regiões periféricas é outra face do racismo ambiental. A falta de árvores está diretamente ligada às doenças relacionadas ao calor, como insolação, desidratação e exaustão, além de agravar problemas cardiovasculares e respiratórios.
Nesse sentido, a pesquisa mostra o total de m² de área verde por habitante nos municípios da RMRJ. Em quatro municípios a extensão de área verde por habitante é inferior ao recomendado, que é a 36 m², o equivalente a três árvores, por habitante, de acordo com a A Organização Mundial de Saúde (OMS). São João de Meriti se configura como a situação mais grave, com 0m² de área verde por habitante.
Além do bem-estar da população, a falta de áreas verdes também está relacionada aos desastres ambientais devido à baixa permeabilidade que provoca no solo.
Adaptação climática
Outro estudo da Casa Fluminense, o Painel Climático, revela que, de todos os 22 municípios da RMRJ, apenas a cidade do Rio de Janeiro tem o Plano de mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
A pesquisa mapeou sete planos estratégicos para o desenvolvimento local, como o Plano diretor, Plano de saneamento, Plano de gestão de resíduos sólidos, Plano de mobilidade, Plano de habitação de interesse social, Plano de contingência de proteção e defesa civil, Plano de mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
“O que a gente precisa melhorar é a nossa resposta”, diz Larissa. “O debate da adaptação é um debate central para enfrentar o racismo ambiental. A gente precisa apostar numa agenda de adaptação forte nas nossas cidades, nas periferias, na região metropolitana”.
A coordenadora alerta para a questão do transporte, que também considera outra agenda importante para pensar o racismo ambiental e a adaptação climática de uma maneira mais ampla. Ela chama atenção para os modais, que não estão preparados para enfrentar os extremos climáticos. "Então as enchentes vão afetar e muito, também, a circulação dos trens, e aí você vai ter uma frequente interrupção do acesso ao serviço por conta disso”.
Propostas e planejamento
A Casa Fluminense também realiza práticas em campo junto com as comunidades para debater os problemas e as soluções para os problemas encontrados. “Esses dados vão revelando uma realidade que está diagnosticada, que está colocada e que a população já sabe porque vive na pele. Mas a gente precisa traduzir em dados porque precisamos pautar políticas públicas a partir de evidências”, reforça Larissa.
A partir de conversas e experiências com esses grupos, a Casa e outros coletivos parceiros desenvolvem tecnologias sociais e ancestrais “para sobreviver a essas situações, quando muitas vezes o poder público não produz as respostas para enfrentar isso”, declara a coordenadora.
Outro documento produzido pela organização é a Agenda 2030, que reúne um conjunto de políticas públicas articuladas para a região metropolitana do Rio de Janeiro, organizadas a partir das justiças econômica, racial, de gênero e climática, com uma abordagem intersetorial e interseccional. “Não é uma agenda da moda, é uma agenda de sobrevivência”, diz.
Entre as propostas, Larissa ressalta a criação de uma secretaria só para enfrentar a emergência climática no estado do Rio de Janeiro, que tem apenas uma Subsecretaria e Conservação Ambiental e Mudanças Climáticas, mas que ainda é escassa na promoção de diálogo com a sociedade civil.
“Quando você tem uma estrutura de uma secretaria, você pode ter um planejamento focado para isso, você pode desenvolver uma estratégia de fundo. Ou seja, de orçamento. Hoje o tamanho da crise climática exige isso. A gente vê milhões de manchetes dizendo que em 2030 vai cobrir isso, que tal cidade vai perder um percentual de área. É uma realidade que já está colocada, e o que a gente vai fazer de diferente?”, questiona.