OPINIÃO

Enfrentando a crise climática e ambiental com saneamento

O Brasil assistiu as tragédias vividas durantes as chuvas que assolaram a região Sul no início desta primavera e a seca que expõe o leito dos rios amazônicos; São duas faces da multifacetada mudança climática

Chuvas em Santa Catarina.Créditos: Reprodução/Defesa Civil de Santa Catarina
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No último Dia das Crianças (12 de outubro) o Brasil assistiu as tragédias vividas durantes as chuvas que assolaram a região Sul no início desta primavera e a seca que expõe o leito dos rios amazônicos. São duas faces da multifacetada mudança climática. Esses extremos se conectam e amplificam a crise da biodiversidade, que historicamente tem entre seus causadores as deficiências de saneamento básico no nosso país. Para entendermos essas interações precisamos de um olhar mais holístico de nossos territórios.

A Amazônia, que pode ter a imagem de um ambiente selvagem, puro e saudável, não está livre das consequências terríveis da poluição das águas. A seca do Lago de Tefé se destacou na mídia pois foi cenário da morte de 120 botos-cor-de-rosa e 21 tucuxis, de acordo com o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. As temperaturas que chegaram a 40 graus, juntamente com os baixos volumes, estão entre as principais explicações para o morticínio, que transformou uma paisagem que abrigava vida abundante em um lugar desolador e fétido.

Entretanto, precisamos lembrar que o Lago de Tefé enfrenta problemas de poluição, como advertido por pesquisadores há alguns anos. Além de metais pesados, como o mercúrio, que podem vir da mineração e do garimpo, as águas da região estão contaminadas por substâncias tóxicas diversas, derivadas de indústrias e cidades, como os poluentes orgânicos persistentes, conhecidos como POPs. Estas substâncias se concentram nos corpos dos botos da região, onde valores observados são semelhantes aos das populações de ambiente extremamente antropisados, como no caso da Baia da Guanabara.

Estes animais por estarem no topo da teia alimentar são considerados sentinelas do ambiente. O fato deles estarem sofrendo com o acúmulo desses poluentes em seus corpos, frequentemente está associado a ocorrência de distúrbios hormonais, hepáticos e imunológicos, que comprometem sua a saúde, deixando-se mais vulneráveis às condições inóspitas impostas pela seca e aquecimento das águas remanescentes. Como eles se alimentam de peixes que nós também comemos, podemos supor que os povos da Amazônia estão igualmente expostos a estes poluentes e suas consequências. Precisamos reforçar que a origem destes poluentes está em nossas cidades, na agricultura e na indústria que não contam com o devido sistema de saneamento. O carreamento destes contaminantes é máximo quando temos as chuvas ou enchentes, que levam ao colapso o já precário sistema de tratamento das águas que serviram à nossa sociedade de formas diversas.

Agora no Sul do Brasil vivemos as enchentes e tempestades, e tivemos mortalidade de peixes, mexilhões e até de grandes baleias. Ou seja, o ciclo tristemente se repete de forma trágica em diferentes momentos e em todo o país. Estas notícias ganharam e ganham espaço na mídia e comovem a população. Entretanto, elas não foram acompanhadas de políticas públicas que buscassem sanar suas causas com prioridade e celeridade.

Hoje a ciência entende que o descaso histórico com o lançamento dos efluentes de nossas diferentes atividades econômicas e de nossas cidades interage com as mudanças no clima, comprometendo a saúde de nossos ecossistemas. Três anos depois da publicação do marco legal do saneamento (LEI Nº 14.026, DE 15 DE JULHO DE 2020) as carências e desigualdades de tratamento de esgoto persistem em todo o Brasil, sendo o avanço observado insuficiente para deter as ameaças ambientais e sanitárias do ciclo vicioso da somatória destes fatores.

Continuamos a discutir o saneamento em uma perspectiva morosa e financista do século passado. No Amazonas apenas 17,92% da população urbana é atendida com esgoto. Enquanto isso em Santa Catarina o cenário não é muito melhor, pois apenas 40,83 da população é atendida com esgotamento sanitário, conforme informado pelo instituto água e saneamento (www.aguaesaneamento.org.br/municipios-e-saneamento). É urgente que o saneamento seja entendido como elemento central do enfretamento da crise climática e ambiental. Podemos, por exemplo, implementar alternativas tecnológicas inspiradas na natureza, como os jardins filtrantes ou tratamentos utilizando algas. Assim, podemos proporcionar redundâncias deixando nossos sistemas não só mais eficientes, mas também mais seguros. Estas soluções trarão inovação e nos permitirão reutilizar substâncias que são hoje tratadas como rejeitos. Algas, por exemplo, podem ser utilizadas na produção de biofertilizantes, melhorando a produção na agricultura ao mesmo tempo que aprimoram o tratamento de esgoto, reduzem a emissão de gases estufa, e despoluem nossas águas.

Estas alternativas podem ser apresentadas e financiadas no pacto pela transição ecológica. Elas podem ser monitoradas, discutidas, aprimoradas e implementadas por um sistema de atenção a saúde dos ambientes. Unindo instituições públicas e privadas pode se tratar a questão com a noção de urgência que ela merece. Nesse sentido foi apresentado durante o processo planejamento participativo do governo federal, o sistema único de saúde ambiental (SUSA).

Assim como o SUS, o SUSA poderá contar com programa de saúde preventiva de bacias hidrográficas ou ecossistemas. Em caso de comprometimento de diferentes indicadores de sanidade, estes ambientes poderiam ser devidamente atendidos e adequadamente tratados por equipes multidisciplinares. Essa perspectiva ecocêntrica de entender a saúde trará desdobramentos positivos importantes para a construção de adaptações e mitigação da crise climática e ambiental que hoje ceifa vidas alimentando o ecocídio em curso. Que possamos nos mobilizar para, no próximo Dia das Crianças, termos ações concretas que viabilizem no presente o futuro seguro e saudável que elas merecem e é delas por direito.

* Para mais informações sobre o SUSA: Horta, P. et al. SUSA: Sistema Único de Saúde Ambiental. 2021. 13p. Clique aqui para ler.

** Paulo Horta é doutor em ciências biológicas pela USP e pós-doutor em ecologia marinha pela Plymouth University (Reino Unido). Atualmente é professor da UFSC, onde coordena pesquisas relacionadas aos impactos ambientais decorrentes das mudanças climáticas e poluição dos oceanos.

*** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.