O dia 25 de outubro, data da execução do jornalista Vladimir Herzog em 1975, pelo regime militar nos porões do Doi-Codi em São Paulo, pode se tornar o Dia Nacional de Defesa da Democracia, conforme proposta aprovada junto ao relatório final da CPMI dos Atos Golpistas, redigido pela senadora Eliziane Gama (PSD-MA), nesta quarta-feira (18). O projeto ainda deve ser votado no Congresso e a expectativa é de que seja aprovado.
A ideia partiu do Instituto Vladimir Herzog que, com o apoio de mais de 150 organizações da sociedade civil e de personalidades que também foram perseguidas, como Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso, levou o projeto para a senadora.
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Em 1975 Herzog já estava consagrado como um dos melhores jornalistas do país e um dos mais comprometidos com a luta pela democracia e os direitos humanos, o que chamou a atenção de José Maria Marin, que à época era deputado estadual pela Arena, o partido da ditadura militar. Marin fez uma série de discursos na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) contra a TV Cultura, onde Herzog era diretor de telejornalismo, afirmando que a sociedade paulistana estava apavorada com o conteúdo veiculado pela emissora e pedindo a cabeça do profissional.
Foi a senha para que os seres putrefatos da ditadura militar se sentissem autorizados a cometer quaisquer covardias contra ele. Após ser procurado, Herzog se apresentou às autoridades por livre e espontânea vontade, sem imaginar que seria brutalmente assassinado nos porões do Doi-Codi e que ainda teria sua memória violada, quando os torturadores disseram que ele teria cometido suicídio durante a detenção. A mentira era tão deslavada, que na foto forjada para comprovar a narrativa, ele aparecia com o pescoço enrolado em um cinto preso às grades da cela, e os pés no chão – o que impede o processo de asfixia mecânica. Autoridades judaicas se recusaram a enterrá-lo na ala dos suicidas, conforme manda a tradição religiosa para o caso de suicídios de fato. Herzog se tornou um símbolo da luta contra o regime militar e pela democracia brasileira.
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Já Marin, nunca deixou de ser um típico político ligado à ditadura militar brasileira: corrupto e criminoso. Seu mandato como deputado estadual durou entre 1971 e 1979, logo após ele ser vereador da capital paulista entre 1964 e 1970. Após cumprir os mandatos na Alesp, foi o vice-governador de Paulo Maluf, entre 79 e 82 - tendo assumido o cargo de governador no final do mandato, entre 82 e 83. Formado advogado, compôs a Arena entre 1966 e 1979, o PDS (80-88), o PFL (88-93), o PSC (1993-2007) e, desde então, está no PTB de Roberto Jefferson e Padre Kelmon.
Como atleta de futebol, defendeu o São Paulo Futebol Clube como ponta-direita entre os anos 40 e 50. Ao pendurar as chuteiras, lançou-se na carreira política, seja na política nacional ou como dirigente esportivo. Foi presidente da Federação Paulista de Futebol entre 1982 e 1988 e, em 2012, tornou-se presidente da CBF - cargo que ocupou até 2015 e precisou deixar por se envolver no escândalo do Fifa Gate. Foi condenado nos EUA a quatro anos de prisão em 2017, mas não cumpriu toda a pena. Em 2020 foi libertado por conta da pandemia e embarcou em voo para São Paulo. Ele está vivo e tem 91 anos.
A entrevista a seguir trata da relação entre José Maria Marin e o assassinato de Vladimir Herzog. Produzida por este jornalista, foi gravada com Ivo Herzog, filho de Vlado e presidente do Instituto Vladimir Herzog, e publicada em abril de 2013 a pedido da Frente Nacional dos Torcedores, que fazia campanha para a saída de Marin da presidência da CBF.
No mesmo mês em que a entrevista foi publicada, o deputado estadual paulista Adriano Diogo (PT) divulgou dois áudios, descobertos por ele, com discursos proferidos por Marin, em 1975 e 1976. Nos áudios, dois fatos chamam a atenção.
No primeiro áudio, o deputado Wadi Helu alerta para a “infiltração dos elementos subversivos e dos elementos de esquerda no canal dois.” Para o parlamentar, a TV Cultura “enaltece e procura dar foros de grandiosidade a líderes de esquerda de outros países, que vem desgraçando outros povos.”
Em seguida, Marin pede a palavra e concorda com as acusações feitas por Helu. “Vem pregando apenas fatos negativos, não se vê nada do aspecto positivo, apresentando miséria, apresentando problemas e sem apresentar, inclusive, soluções. Nessas condições, me congratulo com o senhor”, afirmou o ex-presidente da CBF sobre a TV Cultura.
Marin ainda pediu que o governador tomasse uma providência, para que a "tranquilidade volte a reinar não só nessa casa, mas principalmente nos lares paulistanos.” A divulgação dos áudios trouxe naquele momento o nome de Marin para a discussão sobre seu papel na perseguição a Herzog. À época da revelação, tanto a Comissão Nacional da Verdade, como as investigações acerca da corrupção na CBF, eram pautas que estavam na ordem do dia.
Leia a entrevista a seguir
Conte um pouco sobre a relação de José Maria Marin com a tua vida.
Ouço falar dele desde sempre, isso se perde no tempo. Porém, ele ligado ao futebol realmente foi só na época em que o Ricardo Teixeira saiu da presidência da CBF, eu não tinha ideia de que ele fosse vice presidente da Confederação Brasileira de Futebol.
O que a gente descobriu recentemente, no ano passado (2012), através de uma reportagem do Juca Kfouri, é que até antes de ele ser governador, lá atrás, na década de 70, ele foi deputado estadual pela Arena. E naquela época, em 1975, o meu pai foi assassinado. Duas semanas antes do meu pai ser assassinado, ele fez um discurso na assembleia instigando que havia coisas terríveis acontecendo na TV Cultura, que a população paulistana não estava conseguindo dormir tranquila e que o governo tinha que fazer uma ação contra a TV Cultura.
O meu pai era o diretor de jornalismo da TV Cultura e o governo realizou a ação: matou meu pai. Depois, na sequência, um ano após a morte do meu pai, em outubro de 1976, Marin voltou à tribuna e fez longos e bastante elaborados elogios ao chefe da policia secreta do governo na época, a polícia que prendia, torturava e matava – o Sérgio Fleury. Ele é uma figura terrível, temida, uma das piores coisas que já existiram na nossa sociedade. E o Marin deixou bem claro em seu discurso que o Fleury era um exemplo a ser seguido, era um herói. Então é complicado que hoje a gente tenha essa pessoa encabeçando a Copa do Mundo de 2014.
Pegando esse gancho do discurso do Marin, que transformou o Fleury em herói, você vê algum paralelo com o que acontece hoje em dia?
Não sei, nunca parei para pensar sobre isso. Eu acho que há uma outra questão que a gente deve sim parar para pensar e refletir. Essa sim tem uma relação com a história de violência que vem desde a época da escravidão e do extermínio dos povos indígenas, que é a violência policial. Hoje o principal executor, o principal assassino não é o bandido, é a polícia. A policia mata de 8 a 10 vezes mais do que os bandidos na nossa cidade, então sim existe uma cultura da violência e da impunidade e a gente vê essa cultura presente muito na maneira como a nossa polícia age. Isso tem um paralelo muito forte com a época da ditadura.
O que comenta sobre sua participação à frente da Copa do Mundo em 2014?
O Marin hoje está na frente de duas coisas: da CBF e da Copa do Mundo. Meu maior problema com ele é em relação com a Copa do Mundo, porque o Mundial não é dele, não é da CBF, é de todos nós. É um evento internacional, um evento de grande festa, grande alegria, feito com muito dinheiro público e a gente tem à frente desse evento uma pessoa que simboliza tudo aquilo que nós lutamos contra. O arbítrio, a violência, a ditadura… ele simboliza isso tudo.
Não só nós no Brasil, mas toda a América Latina, a Europa pela questão do nazismo, da Segunda Guerra Mundial, aquela coisa toda. Então da mesma maneira que eu estou indignado quando dou entrevistas para jornais de fora do país, eles também não conseguem entender como o Brasil, em plena democracia consolidada, quase 30 anos de democracia, tem uma pessoa como o José Maria Marin à frente do maior evento internacional de toda sua história. Ninguém consegue entender isso. Inclusive é a primeira vez na história das Copas do Mundo que o presidente da confederação é também o presidente do comitê organizador. Tradicionalmente, a pessoa que está à frente do comitê organizador é um ex atleta, uma pessoa que é um grande embaixador, uma pessoa de aprovação unânime, um ídolo daquele país. Será que o Marin é ídolo de alguém?
Caminhando em direção à Comissão da Verdade: qual é a importância de se investigar os crimes cometidos pela ditadura?
Você deve ter mais ou menos uns vinte anos a menos do que eu. Você hoje saiu de “não sei onde” e veio para cá. Você veio pensando no ônibus, no trem ou no metrô. Pensando nas coisas que existem. Provavelmente pensou que muitas coisas poderiam ser diferentes. E por que as coisas são do jeito que são? Por que o presente é o presente? O presente é o resultado do passado.
A Comissão Nacional da Verdade é um instrumento para conhecermos um pouco mais desse passado, para entender um pouco mais do nosso presente e assim exercer a nossa cidadania de uma maneira mais consciente. Um passo muito importante, mas que é apenas um passo, uma etapa, de um processo muito mais complexo. Acho que tudo começa com uma melhoria no sistema de ensino. Ensinar a nossa historia recente, os direitos humanos, no ensino fundamental, no ensino básico, mostrar para as pessoas certos valores.