DEMARCAÇÃO

Justiça gaúcha decide desalojar povo indígena de terreno que já havia sido hipotecado

Omissão da Funai foi definidora na decisão da juíza; se cumprida a liminar, será a segunda reintegração de posse a desalojar o povo Kaingang no mesmo semestre

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O povo Kaingang aguarda a demarcação do Morro Santana como terra indígena desde 2008 pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Localizada em Porto Alegre (RS), a região tem registro de presença da etnia desde o século 19, tendo se estabelecido a aldeia Gãh Ré pelo menos desde a década de 1950, de acordo com nota técnica produzida por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desde o último dia 5, entretanto, a comunidade enfrenta tensão após liminar da Justiça gaúcha decidindo pela reintegração de posse, em favor do grupo Maisonnave, do terreno onde estão acampados cerca de 40 indígenas.

A aldeia Gãh Ré, comandada pela cacica Iracema, sofreu com outro pedido de reintegração de posse recente, também nas imediações do Morro Santana, motivo pelo qual migraram para o terreno onde seguem acampados desde 18 de outubro deste ano. O espaço está registrado em nome da Maisonnave Companhia de Participações, empresa que atua como holdings de instituições não-financeiras e tem projeto de um empreendimento imobiliário na área. 

Filha da cacica, Kapri Kaingang conta que os integrantes da etnia enterram seus cordões umbilicais no topo do Morro Santana. A terra é considerada sagrada pela aldeia, que retira da terra seu alimento, ervas de cura e insumos para a produção de artesanato. O terreno possui 17 hectares de área e antropólogos da UFRGS afirmam que há sítios arqueológicos no local pertencentes a antepassados dos Kaingang. 

Terreno hipotecado

Em 1981 o terreno, que pertencia a uma construtora, foi hipotecado ao Banco Maisonnave, que posteriormente incorporou a empresa e passou a ter também a posse da área. Hoje, consta que a propriedade do imóvel seria da Maisonnave Companhia de Participações, conforme informações da nota técnica dos pesquisadores da UFRGS. Ocorre que a empresa integrou o “Grupo Maisonnave”, que foi liquidado extrajudicialmente após crimes contra o sistema financeiro nacional. Dessa forma, vários bens da família Maisonnave foram penhorados e há despachos de execução de dívida contra Roberto de Moraes Maisonnave e contra a companhia. Na nota técnica, há mais uma série de elementos que colocam em dúvida o exercício de posse anterior do terreno por parte da empresa.

Assim mesmo, em processo polêmico, a companhia obteve o Licença Prévia da Secretaria Municipal do Meio Ambiente para construir um grande condomínio no local. De acordo com a nota técnica da UFRGS, a autorização contraria o parecer da Procuradoria Geral do Município. Além disso, o projeto foi inicialmente rejeitado pelo no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA), por ser área de importância ecológica, histórica, com potencial arqueológico comprovado, tendo sido  redistribuído a outra região de planejamento, onde foi aprovado em tempo reduzido, sem realização de diligências ao local, como sugerido por conselheiros. A região abriga 76 espécies, sendo 49 nativas (67%) e 24 exóticas (33%).

Liminar

O despacho da juíza federal Clarides Rahmeier, da 9ª Vara Federal de Porto Alegre, considera a reivindicação dos indígenas, registrando a argumentação de que "os Kaingang nunca deixaram de acessar o Morro Santa para diversas finalidades, como a coleta de materiais de artesanato, acesso a locais sagrados e ritualização com a medicina tradicional, de modo que há justa reivindicação do território". Entretanto, considera que a "autora comprovou adequadamente a propriedade e posse da área".

Omissão

Um trecho da decisão deixa claro, ainda, o peso da omissão da Funai diante do caso. "Ao Judiciário, não cabe conceder a posse da terra à Comunidade Indígena Kaingang e Xokleng, em decorrência de reconhecimento de área historicamente indígena sem o devido procedimento de constatação, em que seja garantida a ampla defesa e o contraditório do proprietário do imóvel", escreveu a juíza. O prazo definido para desocupação da área se encerra na próxima terça (20).

Os representantes jurídicos do povo indígena entrarão com agravo de instrumento pedindo suspensão da liminar pelo risco do pleito dos indígenas ficar inviabilizado. Diante da disputa, a cacica Iracema afirmou que se a Justiça decidir contrariamente à permanência de seu povo no Morro Santana, "então me leva num caixão, porque eu não vou sair".