Não foi preciso disparar um só tiro. Os revoltosos não tiveram que pegar em armas ou fazer a revolução proletária para tomar o poder. Nem mesmo se ouviu entoar a Internacional Comunista, hino de louvor ao movimento operário mundial, em canto algum. Mas também não se viu a costumeira resistência armada e brutal das forças capitalistas. Longe disso: o empresariado, ao contrário, formou fileiras ao lado dos políticos locais conservadores e, juntos, festejaram todos a tomada da fábrica, menina dos olhos da moderna economia regional, pelos trabalhadores liderados pelo sindicato.
Parece um conto de fadas revolucionário, mas não é. Esta é uma história real – e, sim, repleta de dores, suor e lágrimas. Só que com final de feliz. Na verdade, é um caso raro em que os trabalhadores assumem, com a complacência do Judiciário, da Prefeitura e da Câmara de Vereadores, a dianteira de um negócio tão espetacular quanto falido e, em curto espaço de tempo, faz ressurgir o empreendimento das cinzas, e não só com as contas todas em dia como produzindo superávit financeiro nas operações. “O próximo passo, agora, será começar a repartir os lucros entre os empregados”, comemora o sindicalista Valmir Giorgeti, ele próprio um antigo funcionário da empresa que está prestes a se tornar, tão logo a Justiça oficialize a distribuição das ações entre os credores trabalhistas, um acionista da Nova Smar S.A., de Sertãozinho, no interior de São Paulo.
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O episódio mais dramático, que levaria à falência da Smar S.A., a original, e à abertura da sua sucedânea (que acrescentou a palavra "nova" na frente do nome antigol) teve início com a demissão em massa de funcionários em 2013. “Não tínhamos o FGTS depositado, não recebíamos 13º nas datas previstas e, quando recebíamos, era parcelado, e ainda assim muitas vezes havia atraso nas datas de pagamento”, lembra a ex-funcionária Sônia Quinaglia, que trabalhava na Divisão de Qualidade da indústria, então líder de tecnologia de ponta para a automação de indústrias, com subsidiárias espalhadas pelo mundo afora e exportando para 77 países.
Após 13 anos na empresa, Sônia, formada em Ciências Sociais, foi para rua, aos 50 anos de idade, sem receber um tostão. “Literalmente, com uma mão na frente e outra atrás”, rememora ela. Assim como os 300 funcionários que restavam – no auge, a Smar chegou a ter mais de 1.200, boa parte engenheiros –, ela estava com salários há meses atrasados e sem receber férias e outros direitos. A empresa entrou em recuperação judicial e a dívida estratosférica passava dos R$ 2 bilhões – só a trabalhista girava em torno de R$ 60 milhões.
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Além de sonegar impostos e ficar com o dinheiro descontado dos salários dos funcionários, a Smar foi investigada por fraudes pela Polícia Federal, Ministério Público Federal e Receita. "Não se trata de uma simples inadimplência fiscal e sim de fraude tributária para ter caixa e domínio do mercado", explicou, na época, aos jornalistas o procurador federal Uendel Domingues Ugatti. Segundo ele, o grupo, que criara 30 empresas dentro e fora do País para driblar as proibições legais e continuar a operar no mercado, subornava auditores da Receita Federal em aeroportos de São Paulo para subfaturar em até 50% suas exportações.
"Há história de prática criminosa por trás do sucesso da empresa", acrescentou, na ocasião, Ugatti, fornecendo detalhes da operação curiosamente denominada “Califórnia Brasileira”, como é conhecida a região de Ribeirão Preto, onde localiza-se Sertãozinho, cidade metalúrgica de 127 mil habitantes. Fora ali, num fundo de quintal, que a empresa surgira, em meados da década de 1980, criada por antigos funcionários da indústria de metalurgia pesada Zanini, pertencente à poderosa família Biagi, de usineiros tradicionais na região.
A derrocada da Smar teria se acelerado em 2007, quando o Ministério Público resolveu endurecer o jogo e determinou que a Petrobrás suspendesse suas compras de equipamentos de automação em virtude de ser a Smar, àquela altura, uma das grandes sonegadoras de impostos no País. Outra razão teria sido, como alegaram os empresários na ocasião, os calotes recebidos de inúmeras usinas de açúcar e destilarias de álcool, que fecharam as portas numa das crises do setor. Antes disso, porém, a Smar ganhara notoriedade por seu sucesso internacional - um de seus diretores, Carlos Liboni, chegou a ser eleito vice-presidente da Fiesp, a poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.
Quando a crise atingiu o auge, em 2017, quase toda a diretoria estava na cadeia, a começar pelo presidente Edmundo Gorini – quem não estava, era porque encontrava-se foragido e vinha sendo procurado pela polícia, com alvará de prisão expedido, dentro e fora do Brasil. A situação tornou-se cada vez mais insustentável e pairava no ar uma grave ameaça de caos a rondar a economia do município. Para piorar, o Sindicato dos Metalúrgicos descobriu uma manobra dos antigos donos para transferir a parte boa do negócio para os Estados Unidos. Os dirigentes sindicais, alertados que a empresa também planejava não honrar os pagamentos combinados, procuraram, no desespero, as lideranças da cidade, desde o prefeito do PSDB ao juiz da comarca, desde o Centro das Indústrias e até a Associação Comercial e Industrial de Sertãozinho – todos à beira do pânico diante da situação de insolvência, receosos com a perda dos empregos e o impacto sobre o comércio local. Mais que uma denúncia, era um pedido de socorro. “Foram dias muito difíceis pois estávamos à beira do caos”, se recorda o sindicalista Valmir Giorgeti.
Foi quando entrou em cena um jovem advogado, formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), egresso das fileiras do Partido Comunista Brasileiro, o PCB de Luís Carlos Prestes, e filiado ao PT de Lula, Jorge Roque de Souza, filho de um também ex-militante do partidão e, tal qual o pai, advogado de sindicatos de trabalhadores, entre os quais o dos metalúrgicos de Sertãozinho. Roque foi incumbido pelo comitê de representantes dos funcionários recém-eleito de encontrar o formato jurídico adequado, dentro das novas normas de recuperação judicial de empresas em vigor no Brasil, para recolocar o negócio de pé.
O advogado acabou descobrindo uma brecha na lei de recuperação judicial, e a nova companhia foi criada como sociedade anônima. O juiz do caso aceitou que as dívidas trabalhistas fossem adjudicadas e convertidas, proporcionalmente, em ações para os funcionários credores, até o teto de 150 salários mínimos, cerca de R$ 140 mil. A nova empresa ficou com a parte boa do negócio: além da inteligência acumulada e os clientes, também ficou com alguns ativos da antiga Smar, como um imóvel na cidade vendido mais tarde para pagar parte das rescisões. Já o passivo com o fisco, impagável, permaneceu inteiramente como responsabilidade dos antigos donos.
O juiz da 2ª Vara Cível da comarca, Marcelo Asdrúbal Augusto Gama, homologou a decisão da assembleia de credores de constituir uma nova empresa e falir a antiga. “Começamos do zero e sem nenhuma pendência fiscal”, lembra o sindicalista Valmir Giorgeti. “Se tornou necessária a falência da Smar, mas não com encerramento de sua atividade, pois isso representaria a perda de empregos e a impossibilidade de recebimento da maior parte do passivo trabalhista”, explica o advogado Jorge Roque. “Uma nova empresa foi constituída, o imóvel da antiga Smar foi leiloado com o fim de pagamento dos direitos trabalhistas dos demitidos e cotas de participação na nova empresa foram calculadas para quitar os créditos trabalhistas”, acrescenta.
“Foi uma luta sem tréguas”, define o hoje presidente da Nova Smar, Libânio de Souza, um engenheiro graduado no respeitável Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA, que teve seu primeiro emprego, depois de formado, em 1986, portanto há 38 anos, na própria Smar. Ele passou por várias posições na empresa, inicialmente como engenheiro de desenvolvimento; depois, assumiu a gerencia do grupo de protocolos de comunicação e, mais tarde, diretor de desenvolvimento, até ser eleito pelo voto direto em assembleia, em 2016, presidente do comitê de gestores. Em 2017, tornou-se, finalmente, presidente da empresa.
Atualmente, a Nova Smar emprega mais de 300 funcionários e exporta para 55 países. Entre seus clientes estão gigantes como a Petrobrás e a rigorosa Marinha americana. No ano passado, o faturamento foi de R$ 98.625.590,00 e a previsão para 2024 é crescer para 104 milhões “A empresa está operando no azul desde que iniciou a sua operação, em novembro de 2017”, atesta Libânio, destacando que, além dos salários e tributos em dia, a Nova Smar conseguiu o mais difícil, que foi recuperar a confiança do mercado. Em 2023, o lucro alcançou a cifra de R$ 8,8 milhões. Por ora, as sobras de caixa são totalmente reinvestidas na própria empresa, com ampliação de estoques para melhorar o prazo de entrega, inovação de produtos e compra de novas máquinas.
Por enquanto os lucros ainda não podem ser repartidos entre os acionistas. Isso porque, embora tenha sido devidamente homologado pelo juiz encarregado do caso, ainda não foi feita a distribuição formal das ações aos empregados, proporcionalmente aos créditos de cada um. Foram realizadas, recentemente, duas assembleias dos credores para cobrar maior agilidade do processo.
O advogado Jorge Roque receia que o administrador judicial esteja mais interessado em vender uma fatia da empresa para terceiros. Se a ideia prevalecer, os trabalhadores correm o risco de ver seu sonho desfeito de serem os verdadeiros donos da empresa. Nesse caso, o administrador sairia do negócio com os bolsos mais cheios, graças à comissão de 5% do valor de mercado da Nova Smar, que chegou a ser avaliada, hoje, em 160 milhões.
Entrevista com Libânio Souza, presidente da Nova Smar
Como se chegou a uma saída legal capaz de evitar o fechamento da empresa?
Com o insucesso do processo de recuperação judicial, o administrador judicial, juntamente com o Sindicato, iniciou uma gestão com três gestores, sendo um representante do chão de fábrica (Rogério Lima de Souza), um representante dos ex-colaboradores do grupo (Ricardo Argolo) e um representante da administração, que era eu. O objetivo era avaliar a viabilidade da falência do grupo Smar com a continuidade de negócio. Apresentamos um plano de negócio numa assembleia democrática convocada pelo juiz da recuperação judicial. Este plano propunha a criação de uma nova empresa, a Nova Smar S.A., para ser dada como pagamento aos credores trabalhistas no caso de falência do grupo.
Como foi que se chegou à quantidade de ações para cada um?
Junto com o plano, adicionamos o Valuation da empresa, que avaliou a empresa, na ocasião em R$ 28 milhões. Este valor foi dividido pelos credores trabalhistas de acordo com o percentual dos créditos de cada credor.
Como foi o processo que levou à escolha do seu nome para dirigir a empresa?
Foi feita uma eleição numa assembleia dos credores da recuperação do grupo Smar.
Quantos cargos há hoje na diretoria?
Temos três diretores, sendo um diretor presidente e dois diretores executivos
Como são definidos os salários?
Os salários dos diretores e dos demais colaboradores foram propostos no plano de negócio apresentado e aprovado pelo juiz. As correções seguem o valor aprovado pelas negociações do sindicato na data base da categoria. Temos um processo de avaliação para fazer a movimentação e valorização dos colaboradores pelo seu desempenho comportamental e técnico.
Quais foram os maiores empecilhos para fazer o processo dar certo?
Em primeiro lugar, houve a dificuldade para recompor o nível de estoque adequado para atender prazos de fornecimento requeridos pelo mercado. E, também, as regras para obtenção do radar para importação de matérias primas. E o parque fabril estava obsoleto, com paradas frequentes e a necessidade de altos investimentos em manutenção.
Essa pode ser solução para qualquer tipo de empresa ameaçada de fechar?
Sim, este é um modelo que pode viabilizar a manutenção dos negócios.
Como é lidar com o desafio de liderar uma empresa onde seus comandados são também seus sócios?
É fundamental a transparência das ações e das informações. Assim, conquistamos a confiança de todos, reduzindo o espaço para a “rádio peão”. É importante ter o Sindicato como parceiro, pois todos estão interessados na preservação da empresa, na criação de novos postos de trabalho, na valorização do trabalho de todos e na geração de lucro para os acionistas.
Os atuais acionistas correm ainda algum tipo de risco com a solução encontrada?
Ainda existe uma pendência, que é o registro das ações no livro da empresa, o que depende de decisão judicial. Consideramos que isto seja apenas uma questão formal, pois a empresa foi adjudicada em assembleia geral de credores, homologada pelo juiz em 2018.
Depoimentos
Jorge Roque de Souza, advogado
“Os sócios sabiam que a dívida era impagável e estavam transferindo a sede para os EUA. Percebemos o movimento e utilizamos pela primeira vez no Brasil o artigo da lei da falência que permite o afastamento dos proprietários. Nomeamos no lugar um comitê gestor, falimos a Smar e criamos a Nova Smar. Foi uma falência com continuidade do negócio e a dívida ficando com a massa falida. E, assim foi feito, não sem disputas e sofrimentos, porque se tratou de decisão que não garantia o pagamento imediato do direito dos que muitas vezes dedicaram toda a vida à Smar. Mas foi a solução possível e de sucesso: hoje a Nova Smar S/A está com os direitos trabalhistas, assim como os impostos, estão em dia e a empresa está em franco crescimento.”
Sonia Quinaglia (61 anos, ex-funcionária, acionista e hoje analista do Procon)
“Trabalhei na Smar entre 2000 e 2013, quando ocorreu a primeira demissão em massa, que culminou com a recuperação judicial da empresa. Mesmo com todos os problemas, sempre considerei a Smar como uma boa empresa para trabalhar, que me deu oportunidades para me desenvolver. Mas foi uma fase muito difícil, de insegurança e estresse. Eu havia assumido um financiamento imobiliário, fui demitida e não recebi nada. Era um período recessivo, com muita mão de obra disponível no mercado e poucas vagas. Só em 2023 recebi, com o dinheiro da venda do imóvel pertencente à Smar, R$ 40 mil nos dois rateios. Em 2013, tinha direito a receber R$ 170 mil; como foi estabelecido um teto de 150 salários mínimos, ou R$ 140 mil, a diferença vou receber em ações.”
Edner Pontes, engenheiro, 55 anos, casado e pai de 3 filhos
“Eu trabalhava na área de Engenharia de Aplicações desde 2012, fazia propostas para clientes e, eventualmente, dava suporte em projetos. Apesar dos esforços da nova equipe de diretores, no começo havia uma incerteza, até porque o futuro e a continuidade da empresa estavam nas mãos da Justiça. Mas havia esperança. Com a retomada do crescimento da empresa, tive oportunidade de voltar à área de Pesquisa e Desenvolvimento. Está valendo muito a pena, pois a empresa segue firme e crescendo a cada dia. Podemos ver antigos ex-colegas voltando a trabalhar na empresa.”
Dinamar Sapienci de Souza (ensino médio, casada, 59 anos, 2 filhos, secretária)
“Foi muito doloroso. Era muito difícil ver vários colegas, que eram excelentes profissionais, sem salários e sendo demitidos. Era tudo muito caótico, uma situação muito difícil, com risco de ver vagas serem fechadas e o desemprego. A luta para criar a nova empresa foi grande, mas tem valido muito a pena. Hoje, há transparência e os funcionários têm fácil acesso aos diretores. Além disso, está tudo certinho e o ambiente de trabalho é excelente.”
Maria Aparecida Machado, (53 anos, técnica em processamento de dados, solteira e mãe de um filho)
“Tinha 18 anos quando entrei no Departamento de Compras da Smar. Na época, foram vários episódios tristes. Nós funcionários tivemos muitas dificuldades financeiras porque os salários sempre estavam muito atrasados, férias não eram pagas e os encargos trabalhistas que não eram depositados. O pagamento saía picado. Então, foi um momento muito difícil. Eu morava com os meus pais e minha mãe, doente, precisava de médicos e de remédio. Estou há 35 anos na Smar e, hoje, sou analista de compras. Só de estar empregada, já vale a pena, pois hoje em dia isso é muito importante. Estar com a carteira assinada, ter seus direitos e saber que está tudo sendo pago no dia certo. Eu trabalho com amor e carinho, tenho vários amigos, conheço muita gente.”
Valmir Osmar Giorgeti (Diretor do Sindicato dos Metalúrgicos, 62 anos, casado, pai de 2 filhos)
“Entrei em 1986 na área de montagem mecânica de transmissores e trabalhei também com assistência técnica. Passei muitas dificuldades na época em que a empresa estava em recuperação judicial. O Sindicato teve um papel muito importante pois foi atrás das autoridades e não permitia que a firma fosse fechada. O que aconteceu aqui nos enche de orgulho e pode servir de modelo para outras empresas na mesma situação. Talvez tenha sido um caso único de empresa a se recuperar depois de falir. Agora, a luta é para que façam de vez a distribuição das ações para quem de direito.
O que diz o Administrador Judicial
Procurado para se manifestar a respeito, o Consórcio BDPRO enviou à seguinte nota à redação da Revista Fórum:
“O Consórcio BDOPRO, administrador da massa falida do Grupo Smar, informa que, após cinco anos de continuidade das atividades pela subsidiária Nova Smar, uma reavaliação financeira revelou um aumento significativo em seu valor de mercado, conforme confirmado por uma auditoria independente. Diante desta valorização, o Administrador Judicial solicitou orientação sobre como proceder com a realização desse ativo da Massa – as ações da Nova Smar – e o rateio aos credores da Classe I, que compreendem os trabalhistas ou equiparados, limitados a 150 salários mínimos. O processo agora aguarda uma decisão judicial.”