LITERATURA

Jean e João: a história de como se escreve uma história, por Henrique Wagner

O protagonista do romance de Jorge Bastos decide viver os anos de chumbo na Europa, notadamente em Paris, maio de 68

Jean e João de Jorge Bastos.Créditos: Reprodução de Capa
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Houve quem tivesse pegado em armas, e houve quem tivesse se imposto um autoexílio. Mas há mais o que dizer: há escritores que contam uma história, e há aqueles que fazem filosofia em torno de seus personagens, sem deixar de, por isso, contar uma história. Qualquer romance de Hemingway pode ser lembrado como exemplo do primeiro tipo de escritor. O Thomas Mann de “A montanha mágica” é um bom exemplo do segundo tipo. E Jorge Bastos, o segredo mais bem guardado da literatura brasileira contemporânea, me parece bom exemplo do escritor que não se contenta em desenvolver, objetivamente, um plot. Bastos é da família de um Raduan Nassar, para quem a linguagem é quase um personagem, ou ainda: é machadiano, o que equivale dizer que tem dívida com Xavier de Maistre e Laurence Sterne – o humor deste é flagrante no romance “Jean e João”, publicado este ano pela Editora do Silvestre, sem qualquer estardalhaço, uma vez que o autor é avesso a holofotes, dado a bastidores, onde certamente encontra mais tempo para burilar suas frases de uma beleza e precisão flaubertianas. Com ironia irreprochável, e absoluto domínio do tempo no romance, Bastos, antes de alcançada a metade do livro, ousa resumir o romance, num scherzo de músico prodígio:

“As ideias, elas sim, podem se alçar à categoria de acontecimento, tanto as razoáveis quanto as mais fantasiosas, que se tornam então verdadeiras aventuras”.

Aqui está a chave de leitura do romance que mais se interessa pelo “como” do que pelo “o quê”, desfigurando a pirâmide invertida do jornalismo e suas consequências literárias.

João é um jovem brasileiro, que não pegou em armas, às voltas com um amor um tanto incipiente, em plena ditadura militar. Decide viver os anos de chumbo na Europa, notadamente em Paris, maio de 68, onde passa por inúmeras situações típicas de um estrangeiro cheio da energia e curiosidade propiciadas pela juventude. Empregos de todo o tipo, amigos de todo tipo, mulheres de todo tipo, e uma formação que vai se construindo a partir do outro, e a partir de situações que, de algum modo, testam a personalidade em construção do protagonista. Em Paris, João é Jean. E nisso reside uma dentre as tantas ideias boas de Bastos: até que ponto João, um homem da América do Sul, do Brasil, deixa de ser quem realmente é, uma vez em outro país, e sobretudo, em um país – ou continente – de enorme tradição cultural, um país de primeiro mundo? E em que medida um nome determina o ser nomeado? 

Não há muito tempo para reflexões desse tipo: Jean leva uma vida dinâmica, cheia de acontecimentos, algo comum em vida de andarilho (não me parece ocioso pensar em um dos irmãos Tanner, de Walser, ou ainda no protagonista de “Fome”, de Hamsun, ou mesmo no poeta de Charleville que andou milhões de quilômetros em sua vida nômade; vale registrar que o personagem de Bastos também é poeta, e dos inspirados). Não há tempo para reflexões por parte de Jean, mas por parte do leitor há todo tempo do mundo para reflexões, meditações e adensamento de temas caros ao simples “estar no mundo”, impulsionados pela prosa marcada por uma logopeia que aproxima o leitor de poemas fundadores de civilizações – e vale lembrar que “barbárie versus civilização” está em jogo no romance de Jorge Bastos. O pensamento do autor, frequentemente a expressão de um embate entre crença e descrença – Bastos publicou, há alguns anos, um poético e breve ensaio sobre Santo Antão – que resulta em belas epifanias – importa ler esse termo a partir de sua etimologia religiosa –, ilustra alguns dos pontos altos de “Jean e João”. E como na commedia dell’arte, assim nos apresenta o criador a criatura:

“Nosso herói situa-se entre aquele, o Odisseu, e um Crusoé. É antes de tudo um navegador. De um tem o pragmatismo, do outro a irremediável ilha. Ulisses, diga-se, tinha para onde retornar, por menos atraentes que nos possam parecer seu lar-doce-lar e sua matrona. Já Crusoé equivocou-se ao voltar à civilização. Não tinha mais o que fazer ali: certamente nunca se reintegrou, nunca mais foi feliz nem deixou de carregar aquela ilha em volta da cintura, como uma boia, um cinto daqueles de chumbo que os mergulhadores usam para afundar. Certamente não foi culpa sua, pois ninguém diz não à salvação (a perdição é cruel, a salvação, perversa).”

Nota-se facilmente a persona do ensaísta em um romance em que importa menos o itinerário e mais o que se colhe ao longo de uma viagem cheia de percalços que ensinam, não como manual de etiqueta, mas como um antídoto contra “a moral e os bons costumes” de uma vida solidamente conservadora, estática. Jean é cambiante, como João em um deslizamento de terra num morro do Rio de Janeiro, onde passou a morar, depois de toda uma aventura no velho continente. Em certa altura do livro podemos ler as seguintes considerações:

“Quem conta com o sol indiscutível, o objeto da fé, pode brilhar à sua luz refletida como um satélite, mas quem não crê, quem perdeu todo o enraizamento e obedece apenas a um impulso ainda inarticulável, facilmente toma ares de foragido, podendo às vezes ser percebido em algum desvão, absconso, esquivo. Ao invés das montanhas e desertos do sentido figurado, sobram, na prática, ruas em metrópoles, iguais em qualquer cidade grande: ruelas toscas e não belos bulevares. Sequer as sarjetas são a todos acolhedoras”.

E ainda:

“Faltavam a Jean a insolência para a mendicância e a convicção mínima para o trabalho assalariado: faltava uma fé, havendo em seu lugar apenas espanto. E pessoas assim deságuam com frequência em pequenos roubos, sempre atentas que estão às distrações dos que trabalham de má vontade. Mostram-se em geral hábeis observadoras da normalidade, pois procuram passar por insuspeitas. São os exponentes menos nobres dentro da grande irmandade dos solitários e, sem o carisma do recluso do deserto ou da montanha, sofrem a pecha da vadiagem”

A respeito da “ideia literária”, o grande crítico e pensador liberal Leonel Trilling escreveu artigo revelador – “O significado de uma ideia literária” –, pelos idos do final dos anos 40, do qual destaco trecho abaixo que defende a postura literária de Jorge Bastos:

“A coisa mais elementar a ser observada é que a literatura está, por força de sua própria natureza, envolvida com ideias, porque ela lida com o homem na sociedade, o que vale dizer que ela lida com formulações, avaliações e decisões, algumas delas implícitas, outras explícitas. Todo organismo sensível atua sob o princípio de que o prazer é preferível à dor, mas o homem é a única criatura que formula ou exemplifica isto como uma ideia e a leva a provocar outras ideias. Sua consciência do eu abstrai este princípio de ação de seu comportamento e transforma-o no começo de um processo de intelecção ou em matéria para lágrimas e riso. E esta é apenas uma das inumeráveis ideias ou pressupostos que constituem o próprio cerne da literatura “.

De posse dessa missão ou objetivo, Bastos escreve linhas como as reproduzidas abaixo:

“Sob a escada havia uma provisão de vinho. Jean lavou o rosto e as mãos. Uma rolha saltou. O pipoco da rolha de uma garrafa de vinho é o maior, o mais solidário dos prazeres solitários”.

Nesta bela passagem do livro de “Jean e João”, percebe-se uma inteligente associação entre o pipoco da rolha de uma garrafa de vinho e o prazer solitário da masturbação e seu desfecho, o mais solidário dos prazeres solitários. 

Depois da experiência marcante na Europa, nosso Odisseu volta ao Brasil e fixa residência em um dos tantos morros do Rio de Janeiro. E logo de entrada sofre um deslizamento de terra. A terra onde nasceu, sua pátria. O Brasil desliza sob os pés de João. 

Ou de Jean?

Henrique Wagner é poeta e crítico literário. Publicou, entre outros, o livro de poemas As costelas de Michelângelo.