LITERATURA

Márcia Tiburi lança romance feminista: homens que lerem terão que fazer terapia

Nova obra da filósofa e escritora conta a história de duas mulheres e começa com dois feminicídios, crime hediondo que está em alta no Brasil

Créditos: Reprodução TV Fórum - Márcia Tiburi lança sétimo romance
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De volta ao Brasil após quatro anos e meio de autoexílio na França, a escritora e filósofa Márcia Tiburi trouxe na bagagem o seu sétimo romance, 'Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve' (Editora Nós. 2023). (Confira a lista completa de obras da escritora ao final deste texto)

Em entrevista ao Fórum Onze e Meia desta segunda-feira (28), Tiburi comenta, entre outros temas, sobre a nova obra, escrita durante a estadia francesa e faz um alerta: 

Se os homens lerem este livro, se tiverem coragem, vão todos ter que fazer terapia.

Divulgação Editora Nós

'Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve' conta a história de Helena e de Chloé, duas mulheres que compartilham experiências de violência: maridos abusadores, pais assassinos, irmãos patologicamente evangelizados e policiais corruptos e monstruosos.

É um livro bem poderoso, super feminista. Primeiro, foi proposital. Fui muito feminista nesse romance, acho que deve ser assim, porque enfrenta uma história literária muito machista.

Tiburi descreve a obra como um romance engajado, escrito para mulheres e que conta uma história de mulheres, atravessada por homens e por homens violentos.

Há muita violência no livro. Quem o ler deve estar emocionalmente bem, porque pode ser pesado. E para os homens, é realmente pesado.

O romance, antecipa Tiburi, começa com dois feminicídios. Ela também avisa que os homens que lerem talvez fiquem chocados, porque não é comum um livro na literatura ter o nível de violência da obra, não apenas contra mulheres.

Levante Feminista contra o Feminicídio

Tiburi relembra que participou da fundação do movimento Levante Feminista contra o Feminicídio, uma frente suprapartidária formada por movimentos feministas, organizações e mulheres diversas que tem como objetivo sensibilizar, mobilizar e denunciar à sociedade o aumento dos casos de feminicídio, o descaso e a omissão do Estado, e ainda exigir medidas efetivas de proteção à vida mulheres.

Acredito que talvez seja a campanha que mais conseguiu unir entidades feministas em todo o Brasil, desde o Oiapoque até o Chuí. Hoje, através dessa campanha, mulheres do Rio Grande do Sul estão se conectando com mulheres de Roraima, do Ceará, do Rio de Janeiro, todas juntas, realizando trabalhos artísticos, reuniões, pressionando políticos, envolvendo instituições e entidades para conscientizar sobre essa violência pesada.

A iniciativa foi lançada no início de 2021 e foi deflagrada pela comoção causada pelo feminicídio da juíza Viviane Vieira do Amaral, assassinada pelo marido na véspera do Natal de 2020, o engenheiro Paulo José Arronenzi, na frente das três filhas do casal. Em novembro de 2022, o homicida foi condenado pelo crime e sentenciado a 45 anos de prisão. 

Tiburi observa que há uma epidemia de feminicídio e outras formas de violência contra a mulher no Brasil.

Nós que participamos do Levante recebemos de seis a oito notícias de mulheres brutalmente assassinadas por seus maridos, companheiros, namorados, ex-namorados e homens ligados a elas. Eles praticam essa violência como se tivessem permissão para matar impunemente.

A quarta edição da pesquisa "Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil", lançada em março deste ano, revela que mais de 18 milhões de mulheres sofreram alguma forma de violência em 2022 e aponta que 50.962 sofreram violência diariamente no ano passado. 

Em comparação com as pesquisas anteriores, todas as formas de violência contra a mulher apresentaram crescimento acentuado. A pesquisa ouviu 2017 pessoas, entre homens e mulheres, em 126 municípios brasileiros, no período de 9 a 13 de janeiro de 2023.

Bolsonarismo e violência contra mulheres

A filósofa pontua que, ao longo de quatro anos do Governo Bolsonaro, houve uma escalada na violência contra as mulheres. 

Nos últimos anos, com a presença do nazifascismo bolsonarista no Brasil, infelizmente vimos um aumento significativo na autorização para matar, incluindo a violência política de gênero.

Tiburi analisa que a ascensão da extrema direita é um dos fatores que ajudam a explicar a epidemia de violência contra as mulheres. 

Todas essas questões estão interligadas. Nos meus livros teóricos, ensaios e textos feministas, nos quais tenho trabalhado há anos, tenho abordado muito essa sentença de morte que paira sobre as mulheres no patriarcado.

Ela destaca que mulheres estão na mira de ameaças constantes, inclusive na política. Ela cita exemplos recentes, como os processos processos disciplinares instaurados no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara Federal contra as Célia Xakriabá (Psol-MG), Sâmia Bomfim (Psol-SP), Talíria Petrone (Psol-RJ), Erika Kokay (PT-DF), Fernanda Melchionna (Psol-RS) e Juliana Cardoso (PT-SP).

Todas as representações foram apresentadas pelo Partido Liberal (PL), do ex-presidente Jair Bolsonaro. A legenda acusa as parlamentares de quebra de decoro durante a votação do projeto do marco temporal de terras indígenas (PL 490/07) no Plenário da Câmara, no final de maio.

Durante a votação, as deputadas protestaram contra o texto, que limita a demarcação de terras indígenas àquelas já tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

Isso é especialmente triste para nós, mulheres, já que, de certo modo, todas nós estamos na mira dessa ameaça constante. Falo até mesmo sobre como a ameaça se tornou uma nova categoria política no Brasil. A ameaça é constante, seja ameaçando cassações ou, como aconteceu recentemente, quando seis deputadas foram ameaçadas por grupos extremistas. Houve uma ação conjunta contra elas na semana passada, um esforço articulado para ameaçar parlamentares mulheres e vereadoras em todo o país.

Violência contra minorias

Tiburi observa que há uma quantidade tão grande de assassinatos de mulheres que a expressão "genocídio" passou a ser utilizada para descrever essa matança, da mesma forma que se usa o termo "feminicídio" para as mortes de mulheres.

Ela destaca, no entanto, que ao pensar nos assassinatos, não é tão significativo focar nos números quanto entender o plano de exterminação de grupos distintos, seja um povo, mulheres, pessoas LGBTQIA+ ou grupos raciais, como os jovens negros ou os habitantes das periferias.

É crucial começar a refletir mais profundamente sobre esse fenômeno da matança, algo que não tem sido amplamente considerado em nosso país. A ascensão de Bolsonaro e os efeitos mortais do Covid-19, incluindo a tragédia envolvendo o povo Yanomami, levaram-nos a refletir mais sobre essa questão. 

Bela mulher morta na literatura

A escritora observa que a história da literatura mostra que a presença de mulheres mortas em narrativas aumenta a chance de sucesso de obras literárias. Ela cita o exemplo de Edgar Allan Poe (1809 – 1849). O escritor estadunidense escreveu o ensaio "Filosofia da Composição" no qual menciona que não há nada mais poético do que uma bela mulher morta.

Essa ideia representa uma fórmula, um padrão. Inserir uma mulher morta na narrativa, seja em romances, poesia, cinema ou qualquer forma de narrativa, aumenta as chances de sucesso. Isso se deve a um prazer visual, auditivo e histórico que os homens encontram ao ver uma mulher morta.

De fato, Poe colocou esse padrão em prática em suas obras e muitas mulheres mortas aparecem em seus escritos. O mais novo romance de Tiburi é uma resposta a essa abordagem. 

É uma crítica direcionada, que analisa o objeto enquanto aponta tanto para os aspectos complexos e obscuros quanto para as possibilidades de avanço e conhecimento.

Autoexílio na França

Tiburi deixou o Brasil em dezembro de 2018 após sofrer ameaças de morte. Depois de uma rápida passagem pelos Estados Unidos, ela passou a morar na França, onde atuou como professora associada no departamento de filosofia da Universidade Paris.

Ela agora está de volta, em definitivo, ao Brasil e descreve as dificuldades que enfrentou ao longo de quatro anos e meio longe de casa. 

Exílio é complexo, tem muitas formas. As pessoas usam até como metáfora para estados psíquicos e outros estados. Mas é triste, porque aí você não pode voltar. Exílio significa que você está aprisionado em algum lugar, está aprisionado às vezes dentro de você mesma, às vezes está aprisionado num espaço, num território, está fora da conexão, é isso. Essa prisão tem a ver, na verdade, com estar desconectado daquilo que é sua casa, digamos, seu território, sua pertença, espaço de pertencimento. Então, essa parte foi muito ruim, aguentei quatro anos e meio, agora estou muito feliz de ter voltado.

Romances de Márcia Tiburi

  • Magnólia - Trilogia Íntima Vol. 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
  • A Mulher de Costas - Trilogia Íntima Vol. 2. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
  • O Manto - Trilogia Íntima Vol. 3. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
  • Era Esse Meu Rosto. Rio de Janeiro: Record, 2012.
  • Uma Fuga Perfeita É Sem Volta. Rio de Janeiro: Record, 2016.
  • Sob os Pés, Meu Corpo Inteiro. Rio de Janeiro: Record, 2018.

Outras obras de Márcia Tiburi

  • Complexo de Vira-Lata: Análise da Humilhação Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.
  • Como derrotar o turbotecnomachonazifascismo. Rio de Janeiro: Record, 2020.
  • Delírio do poder – Psicopoder e loucura coletiva na era da desinformação. Rio de Janeiro: Record, 2019.
  • Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
  • Ridículo Político: uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto. Rio de Janeiro: Record, 2017.
  • Como Conversar com Um Fascista - Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. São Paulo: Record, 2015.
  • Filosofia prática: Ética, vida cotidiana, vida virtual. São Paulo: Record, 2014.
  • Diálogo/Dança. São Paulo: Senac, 2012. (Com T. Rocha)
  • Olho de vidro - A televisão e o estado de exceção da imagem. Rio de Janeiro: Record, 2011.
  • Filosofia pop. São Paulo: Bregantini, 2011.
  • Diálogo/Desenho. São Paulo: SENAC, 2010. (Com Fernando Chuí Menezes)
  • Filosofia bricante. Rio de Janeiro: Record, 2010. (Com Fernando Chuí Menezes)
  • Filosofia em Comum - Para ler junto. Rio de Janeiro: Record, 2008.
  • Metamorfoses do Conceito - Ética e Dialética Negativa em Theodor Adorno. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005.
  • Diálogo sobre o Corpo. Porto Alegre: Escritos, 2004. (Com Ivete Keil)
  • Filosofia Cinza - A Melancolia e o Corpo nas Dobras da Escrita. Porto Alegre: Escritos, 2004.
  • Uma Outra História da Razão. São Leopoldo: UNISINOS, 2003.[34]
  • Crítica da Razão e Mímesis no pensamento de Th.W. Adorno. Porto Alegre: EDPUCRS, 1995.

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