Margot era filha de um acadêmico socialista e de uma mulher religiosa com vida comunitária. Ela era formada em moda e empreendedora, tendo seu próprio brechó. Também trabalhou como vendedora em uma boutique de luxo e posteriormente como estilista de celebridades. Aos 30 anos, era uma mulher bem resolvida do ponto de vista profissional e financeiro, possuindo um e-commerce de roupas esportivas modernas e descoladas para o público feminino. Morava apenas com a sua gata Gena em um bairro conhecido como Bushwick.
Margot era financeiramente estável e segura de sua sexualidade, mas buscava respostas para um vazio que precisava ser preenchido. Quando criança, experimentou os extremos ideológicos dentro de sua própria casa. Seu pai, um intelectual dedicado, com uma carreira sólida como professor na área de sociologia de uma Universidade local, era um homem convicto de esquerda e judeu, que havia feito aliyah na adolescência e morado em Kibutz. Lá conheceu a mãe de Margot e retornou aos Estados Unidos para seus estudos universitários, onde ficou até a velhice. Ele era firme em seus posicionamentos políticos e apaixonado por Israel, sendo também um crítico do consumismo e alguém que não via nada de positivo no capitalismo.
A mãe de Margot também era judia, fez faculdade na área de filosofia e era herdeira de uma família muito rica. Ela e o marido eram como água e óleo, mas um laço muito especial se formou entre eles na adolescência, quando se conheceram em um Kibutz, ambos de famílias estadunidenses que enviaram os filhos para uma temporada de aprendizado comunitário em Israel, e desde a adolescência nunca mais se largaram, apesar das inúmeras diferenças entre eles. Formada em filosofia na Universidade de Brown, ela não optou por uma carreira acadêmica, gostava mesmo de frequentar a sinagoga e da vida comunitária judaica, ajudava na organização de eventos e era uma referência de elegância, sempre com seus colares de pérolas, coques impecáveis e, sem dúvida, a paixão de Margot pela moda começou no closet de sua própria mãe.
A família se estabeleceu em Upper East Side, uma área nobre de Nova York onde há famílias muito ricas. O imóvel foi dado pelos avós maternos de Margot como presente de casamento de seus pais, onde ela passou sua infância. Em casa, os debates eram frequentes, com a mãe capitalista e o pai socialista, e para Margot era difícil compreender como duas pessoas diferentes conseguiram se apaixonar e conviver juntas, mas assim era o casamento dos seus pais: água e óleo não se misturavam, mas neste caso não se largavam. Margot sempre ficava ali ouvindo e, como vocês podem imaginar, ela se tornou mais parecida com sua mãe. Ela amava seu pai, mas os dois não falavam a mesma língua. Ele não se animou quando a filha escolheu a moda como área de formação: ele fazia muitas críticas injustas, mas, às vezes, justas, como por exemplo, aos impactos ambientais da indústria da moda, e tinha dificuldade em entender a paixão da filha pela área. Para ele, Margot desperdiçou a oportunidade de construir uma trajetória acadêmica nas ciências humanas; aos seus olhos, o que a filha fazia era fútil. Isso sempre gerou ruídos entre pai e filha e, mesmo amando-o, ela foi se afastando, e um abismo entre eles foi surgindo.
A relação de Margot com sua mãe também não era tão simples. Dona Ruth, mãe de Margot, imaginava a filha como uma jovem senhora casada com filhos, ocupando o lugar dela na vida comunitária, mas esses não eram os planos de Margot, que não acreditava no casamento e filhos não faziam parte dos seus planos. Dona Ruth sempre aceitou a filha como era e, de fato, Margot nunca sentiu rejeição da mãe, mas no fundo ela sentia que a mãe tinha uma frustração por nunca vê-la se casar ou ter filhos. Era como se a mãe não falasse, mas desejasse ter uma filha diferente. Apesar de as duas serem amigas e terem uma boa relação, Margot sempre se sentiu em dívida com sua mãe. Quando ela foi morar sozinha, voltava para a casa dos pais para visitá-los, mas os encontros foram ficando cada vez mais frios. Podemos dizer que surgiu uma grande distância entre Margot e seus pais, e aos poucos as visitas frequentes foram se restringindo a datas comemorativas do calendário judaico, como, por exemplo, Hanukkah.
Margot tinha dificuldade em entender a paixão de seus pais por Israel, mesmo sendo judia. Eles chegaram a ir em família para Israel 2 ou 3 vezes, levando Margot, em períodos de verão, então as lembranças da jovem eram de um lugar gostoso e agradável, mas definitivamente não era a mesma paixão que os país nutriam. Ela não conseguia compreender o sionismo, e a sua vida judaica era em Nova York. Margot era uma típica estadunidense, ela não ostentava a bandeira dos Estados Unidos, mas se orgulhava de viver nesse país e achava que, apesar de todas as dificuldades e todos os problemas do país, era o melhor lugar do mundo para se viver. Era difícil para ela conceber algum país de pertencimento que não fosse sua terra natal. A mãe, por ser muito ativa na vida comunitária, levou a filha com ela, e Margot era desde muito nova conhecida em sua comunidade. Seu Bat Mitzvah foi marcante, com a presença de pessoas influentes. Desde muito cedo, ela tinha uma forte identidade judaica. No entanto, a referência que ela tinha de Israel era o amor de seus pais por esse país e, como ela e os pais se tornaram distantes, Israel também foi se tornando uma lembrança, apartado no tempo, no espaço e na memória.
Em 2020, a vida de Margot e de todos se alteraram radical e repentinamente, com a pandemia de coronavírus. Margot em seu apartamento, isolada com sua gata Gena; seus pais em Upper East Side, sozinhos... Durante o isolamento social, Margot sentia-se incomodada por não estar com seus pais, apoiando-os como boa filha; mas ela não conseguia deixar de pensar que seria difícil, penoso passar tantas horas trancada na casa da família, lidando com as críticas constantes do pai e sentindo a frustração não explícita, que ela sabia que a mãe sentia. Por isso, nos primeiros meses do isolamento social, Margot ficou apartada.
O sentimento de culpa, porém, era contínuo e ela finalmente decidiu compartilhar do isolamento com os pais. A convivência nesse período trouxe uma reviravolta na vida de Margot. Como fora imaginado, as críticas do pai sobre o que para ele são equívocos das escolhas profissionais de Margot eram constantes e a frustração e a culpa sempre estavam presentes nas conversas com a mãe, quando esta apresentava fotografias de amigas com os netinhos.
Mas Margot era uma boa filha e tentava tornar o momento de isolamento o mais confortável possível para a família. O pai sempre fora mais recluso, um acadêmico com seus livros e seus pensamentos, imerso em si mesmo. Ela sabia que quem mais estava sofrendo era Dona Ruth, que não mais podia exercer plenamente sua vida comunitária, tão ativa. Margot sentia o sofrimento de sua mãe.
Em uma manhã, naquela bela casa de Upper East Side, quando Margot arrumou a mesa do café da manhã, percebeu que os pais estavam demorando demais para descerem. Ao subir para o quarto deles, Margot, para sua tristeza, notou que ambos estavam com a aparência debilitada e um quadro de febre, logo concluiu que os dois deveriam estar com a doença, a Covid-19. O médico da família orientou por telefone que, no momento, nenhuma intervenção médica poderia ser feita, mas as refeições deveriam ser reforçadas e saudáveis, a temperatura e a oxigenação deveriam ser monitoradas e, na piora, deveriam procurar um hospital. Margot, diante de seus dois pais com febre, doentes, enfrentando a doença, com suas forças.
Infelizmente, o quadro de Dona Ruth piorou e ela teve que ser internada. Naquele momento, os hospitais não permitiam que familiares acompanhassem os parentes internados. Em dois dias, veio a notícia de que a mãe teria que ser entubada e, poucos dias depois, Dona Ruth faleceu. Essa notícia destruiu Margot, a destroçou completamente, mas ela sabia que precisava ser forte, para comunicar a notícia ao pai, que estava se recuperando muito bem da doença. Ao ser informado de que sua amada esposa havia falecido, como era de se esperar, o estado de luto abateu-se duramente sobre o pai, a tristeza que foi evoluindo para um desânimo, sem vontade para comer, ler, escrever, inclusive para criticar o estilo de vida da filha.
Pai e filha ficaram nesse estado de tristeza profunda, meramente sobrevivendo naquela grande casa. Dona Ruth, quando morreu, não pode ser velada pela família, em razão da proibição do contato com os cadáveres da maldita doença. Margot não pode se despedir de sua mãe e a tristeza era ainda maior porque o corpo da mãe não pode ser submetido a todos os ritos religiosos, tão importantes a esta. Até a gata que era tão carinhosa ficou distante. Margot não ouvia mais o miado de sua gata, Gena aparecia para comer e sumia ao longo do dia.
Durante o isolamento, Dona Ruth acompanhava os serviços religiosos (Cabalat, Shacharít e Havdalá) da Sinagoga através de uma plataforma virtual, onde todos da comunidade apareciam com seus rostinhos na tela e se cumprimentavam - era uma forma que a comunidade encontrou para se manter próxima em meio ao isolamento. Nas noites de sexta-feira, a cerimônia Cabalat Shabat da Sinagoga era virtual. Logo após o falecimento de sua mãe em uma quarta-feira, Margot, além de dar a notícia a seu pai, teve também a sofrida tarefa de repassar a notícia para a comunidade: ela fez o login na plataforma da Sinagoga e, quando o rosto de Margot apareceu, a fisionomia de todos que estavam na sala virtual indicava que já sabiam ou imaginavam da notícia. O silêncio tomou conta da plataforma, o Rabino não falava, ninguém falava, todos estavam ali esperando Margot falar, e de forma muito solidária e gentil fizeram aquele silêncio porque sabiam que para ela falar seria muito difícil; Margot não conseguia falar, apenas chorar e, quando Margot chorou, muitos ali choraram junto com ela. Margot entendeu que, mesmo separados, estavam juntos em comunidade.
Aos poucos, Margot foi reinventando sua rotina. A espaçosa casa em Upper East Side parecia ainda maior, seu pai não saía mais do quarto, ela tinha que preparar a comida e levar para ele, e fazê-lo comer era sempre um processo muito difícil, de muita insistência. Ele, um homem alto, largo e robusto, tinha se tornado um homem alto e magro. Era como se, de alguma forma, ele estivesse definhando. Margot, mesmo no isolamento, tinha uma rotina de vaidade antes do falecimento de sua mãe: acordava, fazia maquiagem, preparava o café da manhã, comia com seus pais e ia para as redes sociais, porque, mesmo durante esse isolamento, o seu e-commerce continuava vendendo roupas, e Margot fazia lives no período da manhã e no período da tarde embalava as peças que seriam despachadas. Mas, após a morte da mãe, Margot foi se distanciando das redes sociais, ela já não conseguia se manter animada para fazer as lives e, por isso, não mais fazia sentido se arrumar todos os dias, passava então o tempo inteiro de pijama com seus cabelos bagunçados.
Definitivamente aquela casa tinha se tornado muito sombria, faltava luz. Após quatro meses do falecimento de Dona Ruth, o pai finalmente permitiu que Margot entrasse no closet da mãe. Foi um momento emocionante para Margot: ali havia o cheiro de sua mãe, a presença de sua mãe, era como se naquele lugar a mãe tivesse permanecido viva. Entrar naquele closet de alguma forma amenizou a dor de Margot, e aí ela viu as gavetas que a mãe nunca tinha permitido que ela abrisse, que agora Margot precisava abrir para continuar cuidando das propriedades da família, responsabilidade que sempre fora de sua mãe. Margot precisava entender quais eram os documentos que havia naquelas gavetas e, para sua surpresa, em uma das gavetas havia fotos que ela nunca tinha visto, fotos da adolescência, da vida no Kibutz em Israel, momentos cheios de simplicidade e doçura: seu pai adolescente, outros adolescentes cuidando de galinhas, colhendo frutas, brincando. Havia fotos também tiradas em Israel depois da fase adolescente: os pais com os amigos de lá, alegres, em bares e restaurantes de Tel Aviv, sua mãe de biquíni na praia. Aquela Israel que tinha ficado tão distante para Margot de repente voltou a seu presente. Olhando aquelas fotos, era como se o amor que os pais sentiam por Israel de alguma forma pela primeira vez estivesse envolvendo Margot. Ela via nitidamente o quanto Israel havia sido importante na construção da vida de sua mãe e, principalmente, de seus momentos felizes. Sua mãe não existia mais de corpo presente, mas as lembranças de como Israel tinha sido importante na formação da vida de sua mãe estavam ali diante de Margot. Subitamente uma força tomou conta de Margot: ela entendeu que ela era filha de uma mulher alegre, cheia de energia, cheia de amor, que dedicou sua vida a transbordar boas energias e trazer as pessoas para perto. Aquele era o legado de sua mãe e Margot não podia sucumbir à tristeza.
No closet havia um espelho de corpo inteiro, no qual todos os dias dona Ruth se olhava, dava voltas para se ver por completo no espelho, encarava pra ver se sua maquiagem estava perfeita e se todos os elementos do look combinavam. E ali estava Margot, descabelada, com o pijama sujo, diante do espelho, e fez os mesmos movimentos que a mãe fazia. E, quando Margot encarou seus próprios olhos no espelho, ela decidiu que, em homenagem e memória à mãe, ela iria pra Israel assim que fosse possível fazer viagens de avião. Seria por Israel que de alguma maneira ela iria se despedir de sua mãe; mais que isso, ela faria uma viagem a Israel, a fim de, por esse passeio, descobrir sua mãe. Margot decidiu que iria visitar os lugares registrados nas fotos, revisitar a vida que sua mãe teve em Israel.
Continua...
*Essa é a primeira parte do romance “Ela, sua gata e Tel Aviv”, de autoria da romancista Ana Beatriz Prudente Alckmin
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