Em qualquer país minimamente democrático, religião é uma questão restrita ao âmbito privado. Ou seja, cada um exerce de forma livre sua crença, porém não tenta impor sua religião para a coletividade; tampouco deseja que os preceitos constitucionais sejam baseados em algum livro considerado “sagrado”. Não obstante, uma vez que o sagrado não é unanimidade, impor um sobre todos é um passo que esperaríamos que a humanidade já tivesse superado.
No entanto, infelizmente, isso não acontece no Brasil. E o que é pior, em nosso país, aqueles indivíduos que mais defendem a mistura entre política e religião – os autointitulados “cidadãos de bem” – na prática, apresentam posturas totalmente diferentes daquele que dizem seguir: no caso, Jesus. Sendo assim, neste texto, fazemos um breve exercício imaginativo sobre o que ocorreria se Jesus vivesse no Brasil contemporâneo, a partir do conteúdo presente na Bíblia, livro sagrado do cristianismo.
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De acordo com as Escrituras, Jesus, em viagem de fuga, migrando, nasceu filho de uma família pobre, num estábulo. Portanto, por analogia, se o Messias voltasse, muito provavelmente teria nascido em um assentamento do MST, ou numa favela, ou numa tribo, mas, com certeza, nas franjas do capitalismo, do meio urbano, do agronegócio. Evidentemente, não pertenceria a nenhum clã de grandes proprietários. Isso significa que, só por sua condição de nascença, já seria odiado pelo “cidadão de bem”, que o consideraria o estereótipo do bandido.
Assim como os soldados romanos perseguiam o “Jesus judeu”, sua versão tupiniquim constantemente seria abordada pela polícia; não por cometer um “crime”, mas por sua etnia e origem. Ele também teria dificuldades para dar um rolezinho no shopping com seus amigos: ou levaria uma “geral” da PM, ou seria alvo de olhares discriminatórios por parte do “cidadão bem” (afinal de contas, estaria frequentando um “lugar” que não é para “gente de sua laia”).
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O “Jesus brasileiro” provocaria a ira de alguns pastores evangélicos de sua comunidade (que, assim como seus congêneres, os vendilhões do Templo de Jerusalém, utilizam-se da fé alheia para enriquecimento pessoal). Como todo pacifista, certamente ele não frequentaria cultos onde as pessoas fazem “arminhas com as mãos”. Definitivamente, não seria eleitor do “mito”, e provavelmente seria amigo do Padre Júlio Lancellotti.
Suas ideias de “igualdade social” fariam com que o “Jesus brasileiro” fosse rotulado como “comunista” e “esquerdopata” pelo “cidadão de bem”. Frases como “é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus” ou “se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá o dinheiro aos pobres”, soariam para o “cidadão de bem” como coisa de invejoso, “preconceito contra rico” e incentivo a ociosidade, preguiça do pobre.
De acordo com a Bíblia, Jesus andava com os marginalizados de seu tempo, o que hoje entendemos por “minorias sociais”. Consequentemente, por não discriminar pretos, pobres, prostitutas, pessoas trans e homossexuais, o “Jesus brasileiro” seria caluniado em grupos de WhatsApp bolsonarista por defender “ideologia de gênero”.
Conforme uma conhecida passagem bíblica – a “Perícopa da Adúltera” – Jesus impediu o apedrejamento de uma mulher acusada de adultério, ocasião em que proferiu a emblemática frase: “Quem dentre vós não tiver pecado, que atire a primeira pedra”. Uma atitude similar, hoje, valeria a acusação de “defensor de bandido” por parte do “cidadão de bem”. Nessa mesma linha, se o “Jesus brasileiro” perdoasse ladrões, como feito há dois milênios, estaria “passando pano para bandido”, como gosta de dizer o “cidadão de bem”.
Aliás, por contestar o status quo e pertencer ao setor marginalizado da população, o próprio “Jesus brasileiro”, tal como ocorrera na antiga Judeia, seria considerado “bandido”. Mas sua vida, igual a de outros milhões de pobres e pretos, não importaria, seria “só mais um Silva que a estrela não brilha”. Afinal de contas, como diz o principal mantra do “cidadão de bem”: “bandido bom é bandido morto”.
Em suma, assim como na antiga Canaã, o “Jesus brasileiro” seria crucificado pelos “cidadãos de bem”.
*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp e Aurélia Hubner Peixouto é doutoranda em design na Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação na Universidade Europeia.