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Evangélicos tentam um ano depois se descolar de movimento do 8 de Janeiro – Por Liniker Xavier

Diante da condenação pública, passaram a sofrer de uma amnésia conveniente, negando seu papel nos eventos que sacudiram o país

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Igrejas evangélicas, longe de serem apenas casas de oração como se autoproclamam, tornaram-se quartéis-generais de um militarismo mal disfarçado, onde pastores e líderes são tratados com honras hierárquicas reminiscentes das estruturas militares. Há décadas sofrendo com a viuvez da ditadura, são denominações que mantém liturgias repletas de hinos evocando imagens de marchas, guerras e batalhas, refletem uma mentalidade belicista e distorcem a mensagem de paz que deveria ser o cerne de sua fé. No turbilhão da tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, parte das igrejas evangélicas não foram apenas espectadoras, mas participantes ativas, apoiando e incentivando a subversão do Estado Democrático de Direito.

Diante da condenação pública, passaram a sofrer de uma amnésia conveniente, negando seu papel nos eventos que sacudiram o país. Mas sob a superfície dessa negação, células antidemocráticas ainda fervilham, mantendo vivas as esperanças de um estado onde o poder seja guiado pela fé que sustentam. Este primeiro ano após os ataques do 8 de janeiro alerta para a necessidade de desmantelar estruturas farsescas e militarizadas dentro das igrejas que, embora tenham flertado e apoiado a ditadura – umas de forma escancarada, outras com o seu valioso silêncio – encontraram força para integrar movimentos golpistas de forma escancarada no governo que pregava “Deus acima de todos”.

Os atos antidemocráticos expuseram uma sinistra construção realizada durante os anos de Bolsonaro no Planalto, quando o Estado, se aconchegando a uma teologia totalitarista, serviu-se dela para construir um governo de contornos autoritários onde o desprezo pelos pobres tornou-se uma marca registrada, perversão de qualquer noção de justiça social pregada pelos evangelhos. A defesa da chamada "família tradicional" foi elevada a um dogma excludente e estreito, ignorando a diversidade e complexidade da sociedade brasileira.

O cristofascismo brasileiro emergiu como um aliado inquietante do governo que ostentava uma combinação explosiva de autoritarismo, nacionalismo, corporativismo, totalitarismo e militarismo, representando uma ameaça às liberdades individuais e desafiando os pilares de uma sociedade democrática. A participação de evangélicos nos ataques de 8 de janeiro de 2023 representam o ponto culminante da escalada do autoritarismo teológico no Brasil. Esses eventos não são incidentes isolados, mas resultado direto de uma doutrinação sistemática que vinculou a fé à política de forma distorcida e perigosa. Líderes religiosos, enredados em suas ambições autoritárias, propagaram uma narrativa que menosprezava e, abertamente, desafiava as instituições.

O que se viu reflete a extensão alarmante da influência do autoritarismo teológico – uma ideologia que se traveste de fé. O assalto às instituições em Brasília não foi apenas um ataque físico, mas a demonstração de como a manipulação da fé pode ser usada para fomentar o caos e desestabilizar a sociedade. E, um ano depois, há que se registrar para a história: os evangélicos estavam lá.

Quando líderes religiosos abandonam seu papel de guias espirituais para se tornarem agentes de divisão política, o resultado é a erosão da confiança pública, o enfraquecimento das instituições democráticas e, finalmente, a ruptura do tecido social. O 8 de janeiro de 2023 foi sintoma de uma doença profunda: a infiltração do autoritarismo teológico nas veias da política nacional, corroendo os fundamentos da democracia brasileira. É a desfiguração dos ideais democráticos, perpetrada sob o disfarce de um zelo religioso mal interpretado.

A ironia da situação em que grupos evangélicos se mostram incapazes de aceitar a diversidade das realidades humanas e formas de existência é, de fato, surpreendente, já que são eles adeptos de narrativas bíblicas que incluem animais falantes e ressurreições. Esses grupos que realizam malabarismos interpretativos para harmonizar textos repletos de contradições e discrepâncias – como as variadas descrições das aparições de Jesus após sua ressurreição – paradoxalmente, encontram dificuldade em reconhecer e aceitar as múltiplas maneiras de viver, amar e formar família na sociedade contemporânea.

A Bíblia, carregada não como um compêndio de sabedoria e guia espiritual, mas como arma ideológica, se torna instrumento para fundamentar o indefensável. Passagens são arrancadas de seus contextos históricos e culturais para justificar atitudes e políticas que, em essência, contrariam os ensinamentos centrais de amor, compaixão e justiça presentes no texto. Bibliolatria que revela o alarmante desvio do propósito original das Escrituras. Coleção rica e complexa de livros escritos ao longo de séculos, a Bíblia nunca foi destinada a ser um manual inerrante de regras e doutrinas aplicáveis de maneira literal e imutável a todas as épocas e culturas. Seu uso como ferramenta para impor uma visão única e rígida de mundo não apenas desonra a riqueza e a profundidade do texto, mas também ignora o fato de que a Bíblia sempre foi um documento vivo, sujeito a interpretações e reinterpretações ao longo da história. A inflexibilidade com que certos grupos hoje se apegam a uma leitura literal e inerrante da revela uma compreensão limitada tanto do texto quanto de sua história, e um desrespeito pela diversidade e complexidade da experiência humana, que a Bíblia, em sua essência, procura abraçar e iluminar.

Um ano após os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, é preciso considerar que a sanha antidemocrática sobrevive em setores das igrejas evangélicas no Brasil. Este fenômeno não se restringe a uma denominação específica, tornando-se um risco disseminado e insidioso. Há células que se mantêm latentes, operando em silêncio dentro de congregações que, na superfície, rejeitam e condenam o golpismo. No entanto, em seus bastidores, líderes religiosos semeiam mensagens que alimentam e acalentam o fervor em fiéis predispostos à subversão violenta do Estado Democrático de Direito. São pastores com palavras incendiárias disfarçadas de sermões. Instigam sentimentos que vão muito além da esfera religiosa, tocando em cordas sensíveis de autoritarismo e desrespeito pelas instituições. Suas mensagens sutis, mas carregadas de insinuações, criam um ambiente onde ideias de golpe de Estado, danos qualificados e a deterioração de patrimônio tombado são celebradas como atos de coragem ou devoção.

Esse cenário representa um desafio complexo para a sociedade e as autoridades. Por um lado, existe a necessária proteção à liberdade de expressão e crença religiosa; por outro, surge a imperiosa necessidade de combater discursos que incitam a violência e o desrespeito às leis e à ordem democrática. A presença dessas células antidemocráticas nas igrejas exige vigilância constante e um esforço de conscientização e educação dos fiéis.

É significativo o desafio imposto à democracia brasileira pela presença de elementos antidemocráticos em setores evangélicos. E este desafio se estende ao governo Lula 3, que enfrenta a complexa tarefa de restabelecer o equilíbrio entre a liberdade religiosa e o respeito às instituições democráticas. É fundamental para o governo promover o diálogo aberto e construtivo com lideranças religiosas comprometidas com a democracia, encorajando-os a orientar o fiel a praticar sua fé dentro do espaço sagrado e apropriado dos templos – lugares destinados à oração, ao louvor e à pregação – e a respeitar os espaços públicos, como a Praça dos Três Poderes, destinados aos ritos e funções da democracia.

Ao estabelecer esse diálogo, o governo ajuda a preservar a integridade da prática religiosa, mantendo-a distante de influências políticas que possam desvirtuá-la. Esse esforço conjunto seria um passo significativo para garantir que a religião não seja usada como ferramenta para a desestabilização política ou para a incitação de atos antidemocráticos. Ao mesmo tempo, assegurara que o espaço público, especialmente aqueles dedicados às funções do Estado, permaneça um local de exercício democrático, livre da influência de agendas religiosas específicas.

Passado um ano, é possível identificar que os setores evangélicos envolvidos nesta que é uma chaga na história democrática do Brasil se revelaram não como embaixadores de uma fé genuína, mas como agentes de uma doutrina distorcida, que confundiu a pregação do evangelho com a promoção do caos político. Líderes religiosos que trocaram o púlpito pelo palanque. As igrejas, outrora refúgios de paz e esperança, foram transformadas em quartéis-generais de um golpismo mal disfarçado. O eco desses eventos é um lembrete de que a fé, quando sequestrada por ambições políticas, pode se tornar uma força destrutiva. Enquanto o Brasil segue adiante, resta a esperança de que os verdadeiros valores democráticos e a fé autêntica possam, um dia, redimir e curar as feridas abertas na imagem das igrejas evangélicas por sua participação nestes episódios animalescos.

*Liniker Xavier é jornalista, doutor em religião e mestre em teologia pela Universidade Católica de Pernambuco.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.