“Em que espelho ficou perdida a minha face?” Cecília Meireles
Inúmeras vezes eu escrevi e falei, em entrevistas e em palestras, que o ex-presidente Bolsonaro não deu um golpe quebrando o Estado Democrático de Direito e instituindo uma ditadura militar porque nunca teve o respeito e o prestígio junto à cúpula das Forças Armadas. Ele sempre foi motivo de vergonha para quem tem qualquer capacidade de análise do seu comportamento fascista, criminoso e atabalhoado. No aprofundar das investigações sobre o dia da infâmia, 8 de janeiro, no qual uma tentativa de ruptura institucional foi intentada, já se acumulam evidências das desesperadas ações perpetradas pelo entorno muito próximo do ex-presidente da República.
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A trama golpista contava, inclusive, com o apoio de juristas de ocasião para tentar dar um verniz constitucional à afronta à própria Constituição. Sempre existe um jurista de plantão ávido para servir aos mais abjetos propósitos. A subleitura vulgar e perigosa do artigo 142 da Carta de 1988 sempre buscou dar proteção constitucional ao golpe. A abominável interpretação de que as Forças Armadas seriam tutoras da nação e de que uma intervenção militar seria legítima merece uma responsabilização criminal tanto quanto os demais instigadores, patrocinadores e aqueles dispostos a pegar em armas.
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Nessas ocasiões, parte da direita dita civilizada se veste, vaidosa, de ultradireita radical, como no episódio triste da assinatura do Ato Institucional nº 5. Em 13 de dezembro de 1968, o coronel Jarbas Passarinho, ministro do governo militar, instado a assinar o ato que oficiaria as trevas tentando “legalizar” a tortura, os desaparecimentos e as mortes, dirige-se aos generais e assume: “Às favas, Senhor Presidente, neste momento, todos os escrúpulos da consciência”. E ele reconhece, no discurso que fez, que sabia que estava assinando a oficialização do regime de exceção: “Enveredar pelo caminho da ditadura pura e simples, mas me parece que claramente é esta que está diante de nós”. A não punição, à época, dos terroristas é, sem dúvida, um dos alimentos da tentativa de golpe agora.
O cerco contra Bolsonaro e seu grupo mais próximo se fecha perigosamente com uma quantidade incrível de provas contra o seu ex-ajudante de ordens e também contra o subchefe do Estado-Maior do Exército. Informações de quem é responsável pela investigação deixam claro que já existem outros militares de alta patente com as digitais identificadas. É importante nós nos atentarmos para o tom das tratativas golpistas. O alvo principal para conseguirem o intento de implantar o governo de força era atingir o Poder Judiciário. Afastar ministros do Supremo Tribunal e do Superior Tribunal Eleitoral, anular decisões judiciais, inclusive a eleição do Lula, instituir um interventor com poderes absolutos, decretar o estado de sítio e a GLO – Garantia da Lei e da Ordem –, ou seja, fazer valer a ameaça de um dos filhos do então presidente ao afirmar que, para fechar o Supremo, seria preciso um jipe e dois cabos. A fixação dos bolsonaristas em atacar e calar o Judiciário se dá exatamente porque foi esse Poder que manteve a institucionalidade e a Constituição da República.
Se o país quer ser respeitado, tem que se fazer respeitar. É necessário levar essa investigação até as últimas consequências. O Judiciário está fazendo sua parte, resta agora ao povo brasileiro acompanhar e exigir uma postura igualmente firme do Poder Legislativo e do Ministério Público Federal. O Executivo tem à sua frente, neste momento, um democrata. A imprensa terá um papel fundamental. O país só será pacificado e nós só conseguiremos virar essa triste página da história caso haja a responsabilização, inclusive criminal, de todos os que ousaram investir contra a Constituição.
Numa única passagem o subchefe do Estado-Maior do Exército tinha razão. É quando ele alerta o tenente-coronel ajudante de ordens do ex-presidente, referindo-se a Bolsonaro: “Ele não tem nada a perder. Ele vai ser preso. O presidente vai ser preso. E, o pior, na Papuda”. Eles sabiam o que deveriam temer, pois sabem o que fizeram nos verões passados. Relembro Bertolt Brecht: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Ninguém diz violentas as margens que o cerceiam”.
*Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, é advogado criminalista e jurista.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.