Em entrevista concedida no dia 23 de maio, o senador Sergio Moro (UB-PR), que enquanto juiz foi o titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, confessou que ele próprio teria participado da articulação que levou o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) a afastar o juiz Eduardo Appio da jurisdição, responsável pelos processos oriundos da Lava Jato.
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Crítico ferrenho dos métodos da operação, Appio foi afastado no dia 23 de maio após o TRF-4 acolher uma representação protocolada pelo desembargador Marcelo Malucelli, da 8ª turma do tribunal, que acusou o juiz de ameaça por um suposto telefonema feito ao seu filho, o advogado João Eduardo Barreto Malucelli - que é sócio do escritório de advocacia de Moro e namorado da filha do senador.
"Eu fiquei a par desta gravação, quando a ligação foi feita, na época. Fiquei sabendo. Fiquei perplexo, recolhemos o material e entregamos ao tribunal, que fez toda a apuração. Nós nos distanciamos completamente, até para evitar qualquer tipo de questionamento", disse Moro.
Nesta segunda-feira (5), porém, a defesa de Eduardo Appio apresentou um parecer técnico elaborado pelo professor Pablo Arantes, coordenador do Laboratório de Fonética da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), que deve causar uma reviravolta no caso.
Ao acolher a representação de Malucelli feita com a ajuda de Moro e afastar Appio, o TRF-4 usou como base um laudo da Polícia Federal (PF) no Paraná apontando que havia, numa de 0 a 4, probabilidade 3 da voz na ligação em questão ser do juiz. O parecer técnico independente encomendado pela defesa de Appio, entretanto, revela que a voz no telefonema em questão não é de Appio - ou que, ao menos, não há evidências para concluir que a voz seja do juiz.
Em entrevista exclusiva à Fórum, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, tido como um dos maiores advogados criminalistas do país, classificou o parecer técnico pró-Appio como "uma prova técnica importantíssima" e projetou que o fato deve reconduzir o juiz ao comando da 13ª Vara Federal de Curitiba, destacando ainda que Sergio Moro deve sofrer as consequências da inspeção extraordinária realizada na jurisdição após determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
"Prova técnica importantíssima porque, ao que tudo indica, a primeira perícia apresentada [dando conta de que a voz na ligação seria de Appio] foi requerida pelo próprio ex-juiz Moro, que não tinha legitimidade para tal. E ele é evidentemente o interessado maior porque ele quem vai sofrer as consequências das irregularidades da Vara", afirma Kakay.
As possíveis irregularidades na 13ª Vara Federal de Curitiba motivaram o corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão, a determinar a inspeção extraordinária, solicitando um pente fino na jurisdição e também na 8ª Turma do TRF-4 por “existência de diversas Reclamações Disciplinares em face dos Juízes e Desembargadores".
A inspeção foi concluída na última sexta-feira (2) e, segundo informações apuradas pelo jornalista Mauro Lopes, da Sucursal Brasília da Fórum, estão previstas "punições, especialmente contra o desembargador Marcelo Malucelli, por sua conduta no caso Tacla Duran e pelas evidências de ação articulada na Corte com seu consogro, o senador Sergio Moro".
Para Kakay, a investigação do CNJ e a inspeção na jurisdição aponta para o que pode ser "o maior escândalo da história do Poder Judiciário do Brasil".
"O que está acontecendo especificamente na 13ª Vara é, talvez, o maior escândalo da história do Poder Judiciário do Brasil. Ou seja, felizmente estamos podendo agora fazer o enfrentamento porque o CNJ faz um trabalho sério, fez o que tinha que fazer, uma inspeção na Vara e, principalmente, no TRF-4. Isso é de uma gravidade que as pessoas não conseguem entender", avalia o advogado criminalista.
"Medo e covardia"
Kakay analisa que o afastamento de Appio por parte do TRF-4 pode ter sido motivado por "medo e covardia" ou, até mesmo, uma tentativa de impedir que o juiz seguisse em sua atuação de descobrir supostas irregularidades que teriam sido cometidas pelo antigo grupo da Lava Jato, comumente chamado de "República de Curitiba".
"Houve um afastamento sumário do juiz da jurisdição. Um dos princípios constitucionais mais importantes é da inamovibilidade, o juiz tem o direito de não ser afastado da vara onde ele tem a jurisdição. Esse afastamento só pode ser justificado por medo, covardia e talvez uma tentativa - é algo grave, tem que ser apurado, não estou acusando -, mas tentativa de impedir que se descubra os diversos crimes e erros ocorridos na 13ª Vara Federal de Curitiba", pontua.
Segundo o advogado, o parecer técnico, apontando que a voz na ligação que motivou o afastamento de Appio não é do juiz, "é algo de uma força enorme".
"É necessário que se resgate a constitucionalidade, a legalidade e até a dignidade do princípio do processo penal brasileiro e que o doutor Appio seja imediatamente retornado à sua jurisdição - a regra é que o juiz seja inamovível - pra que ele possa continuar fazendo que já vinha fazendo (...) O afastamento sumário, sem direito de defesa, é algo inominável", assevera o criminalista.
O parecer técnico
O professor Pablo Arantes explica no seu parecer que coletou as amostras de falas do juiz Eduardo Appio a partir de uma audiência de custódia presidida pelo mesmo e gravada em vídeo. Já a amostra questionada, ou seja, aquela da ligação para João Eduardo Barreto Malucelli, foi coletada diretamente do vídeo utilizado para afastar o juiz das suas funções. Segundo o parecer, João Eduardo teria recebido a ligação, colocado-a em viva voz e gravado a conversa em vídeo a partir de um terceiro celular. Ambas foram utilizadas pelo o TRF-4, o que para o especialista teria sido um erro.
“Não se faz nenhuma consideração em relação às diferenças de qualidade técnica e à incongruência estilística que existem entre as duas amostras e as consequências disso para a realização de diferentes exames nos materiais”, aponta o parecer que buscou “testar a hipótese segundo a qual a voz padrão e a voz questionada têm a mesma origem, isto é, que a voz do Juiz e Presidente da Audiência de Custódia registrada no material padrão é a mesma que fala na chamada feita ao portador do celular no vídeo que compõe o material questionado”.
Ao longo do parecer, Arantes vai comentando cada característica da comparação entre as duas vozes. Sobre ambas as vozes serem de homens adultos, como apontou o TRF-4, não há sombra de dúvidas. No entanto, já questiona a falta de critérios utilizada no item seguinte: de que ambos os áudios seriam de falantes do Sul do Brasil. Também em relação ao que tecnicamente chamou de “convergência prosódica”, ou seja, entonação, ritmo e acento, é possível encontrar semelhanças entre as amostras mas ainda faltam maiores elementos que apontem se tratar da mesma pessoa.
A seguir explica a importância da taxa de elocução – que mede o tempo de pronúncia de sílabas, palavras e seus hiatos – na comparação entre duas amostras de áudio como as supracitadas. De acordo com Arantes, esse é o quesito mais particular, como se fosse uma impressão digital da voz humana, e resiste até mesmo a eventuais sotaques e variações geográficas e sociais do idioma. Além de questionar a falta de exposição dos critérios adotados no afastamento de Appio, ele aponta: “a evidência relatada neste item não pode ter peso relevante a favor ou contra a hipótese de que as amostras têm a mesma origem”.
Já na análise acústica, o especialista apontou no seu parecer que a própria origem das amostras pode causar uma confusão e aproximá-las. “É possível concluir que a simples presença de instâncias de vozeamento não modal nas amostras não tem um poder evidenciário especialmente importante, uma vez que é um fenômeno prevalente na língua”, finaliza.
Já na conclusão do parecer, Arantes explica que a escala usada para comparar amostras de voz como as desse caso irá variar em 9 pontos, começando em -4, passando por 0, e chegando a +4. O índice +4 apontaria uma semelhança total entre as amostras, enquanto o índice -4 apontaria vozes completamente diferentes. De acordo como seu laudo, que deu a ‘nota 0’ para a comparação das amostras, o resultado é inconclusivo. Ou seja, não há como comprovar, a partir da suposta ligação, que João Eduardo Malucelli realmente tenha recebido o telefonema de Appio.
"Considerando todo o exposto anteriormente, avalio que o teor do que é apresentado no Laudo não justifica a atribuição do nível +3 consignado em sua seção IV. Levando em conta todos os argumentos trazidos ao longo do presente parecer, meu melhor juízo é que os resultados relatados no Laudo são mais compatíveis com a atribuição do nível 0 na escala adotada, que equivale à descrição verbal 'o resultado nem corrobora nem contradiz a hipótese'. Aa razões para essa conclusão são a inespecificidade e baixo poder discriminatório das características linguísticas identificadas e analisadas no Laudo", escreveu Arantes em trecho que concluiu seu parecer.