EMERGÊNCIA

Hora de sanear a crise climática – Por Paulo Horta

Elevações de 150% nas concentrações de dióxido de carbono (CO2) e de 264% e 124% nas concentrações de Metano (CH4) e Óxido Nitroso (N2O) adornam o ano mais quente da história

Toras de madeira extraídas ilegalmente da Terra Indígena Manoki apreendidas pelo Ibama Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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O relatório da Organização Mundial de Meteorologia, publicado no último dia 15 de novembro, revelou novamente níveis recordes de gases estufa (*1). Enquanto lia os resultados perturbadores o dia amanhecia em meio à escuridão de mais uma tempestade. Entre raios e trovões, meus cachorros tremiam e buscavam abrigo. Na minha leitura sobrava descontentamento e revolta em ver as elevações de 150% nas concentrações de dióxido de carbono (CO2), e de 264% e 124% nas concentrações de Metano (CH4) e Óxido Nitroso (N2O), respectivamente. Estas adornam o ano mais quente da história e as afirmações negacionistas do Sultan Ahmed Al-Jaber, um CEO de petroleira que é o presidente da vigésima oitava Conferência das Partes (COP28) que acontece em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.

Como já temos discutido aqui na Fórum, a elevação da concentração destes gases, que retêm calor em nosso planeta, significam extremos meteorológicos mais frequentes e intensos, e aceleração da elevação do nível e da acidificação do oceano. Olhando para a ondas de calor que vivemos na calorosa primavera Brasileira, devo lembrar que alerta publicado na Revista The Lancet (*2) destaca que as mortes causadas por temperaturas potencialmente letais, que já tiraram a vida de milhares nos últimos anos, devem aumentar 370% até 2050. Todas estas constatações, durante a COP28, devem se somar as demais evidências de impactos das mudanças climáticas e suas consequências, para aguçarmos a noção de urgência e acelerarmos os processos de transição energética de forma articulada com uma transição ecológica que promova a saúde ambiental, social e econômica.

Neste contexto, para valorizarmos minimamente as boas notícias, apesar da assustadora e persistente insuficiência de saneamento básico, nos últimos 10 anos a coleta de esgoto melhorou de 45,4% para 55,8%, acompanhada de uma redução das internações por doenças de veiculação hídrica de 31,6 para 6 casos para cada 10 mil habitantes, como revelado pelo relatório lançado hoje pelo portal Trata Brasil (*3). Ou seja, uma melhora no saneamento de 20%, produziu melhoras em indicador de saúde da ordem de 500%, reforçando a importância destes investimentos. Portanto, apesar da manutenção vergonhosa de 22,8 milhões de moradias privadas da coleta de esgoto, entre 2019 e 2022, de 2013 até 2016 cerca de 1 milhão de moradias tiveram acesso ao saneamento.

Importante destacarmos que estes investimentos representam a quebra de ciclos viciosos que corroem a saúde não só das pessoas, mas também dos ambientes e das nossas economias. Quanto menos internações, menores são os gastos públicos com o tratamento das doenças. Com essa economia de recursos públicos, temos mais orçamento para investirmos em programas de saúde preventiva, educação, entre outros elementos estratégicos para termos socioecossistemas mais resistentes e resilientes para o enfrentamento das mudanças climáticas.

São esses avanços na direção da universalização do saneamento que nos dão elementos para defender a priorização e aceleração da transição ecológica com saúde ambiental para o enfrentamento da crise climática. Hoje as carências de saneamento no Brasil e no mundo são fontes de emissão dos gases de efeito estufa (GEE). Estas emissões representam 1,6–5,2% do total das emissões antropogênicas em todo o mundo 4,5. Portanto, é importante destacar o cenário que estamos enfrentando, pois com menos investimento em saneamento, temos sociedades e ambientes mais adoecidos e Estados economicamente enfraquecidos, e consequentemente, mais vulneráveis às mudanças climáticas.

Buscar emissão zero para o sistema de tratamento de esgotos deve ser uma meta priorizada no pacto por um país mais justo e saudável, que ainda pode ser trabalhada na COP28 e pode ser um elemento de vanguarda para a COP30 (que será no Brasil, em Belém). Combinando várias tecnologias, algumas soluções baseadas na natureza, podemos capturar Carbono ou remover matéria orgânica, que tem em sua decomposição fonte de metano. Da mesma forma, podemos remover nitrogênio, utilizando algas e plantas. Assim, vamos mitigar a emissão destes gazes de efeito estufa dezenas de vezes mais efetivos em promover o aquecimento quando comparados ao dióxido de carbono. E o melhor, podemos fazer isso resolvendo um passivo social medieval, que é a carência de saneamento básico, gerando emprego e renda de qualidade, cuidando inclusive da saúde de nossas economias.

Se estes elementos não são suficientes para priorização do saneamento como ações de estado, precisamos explicitar que cerca de 45% dos brasileiros ainda estão sem coleta de esgoto, ou que milhões ainda não têm acesso ao devido tratamento, e têm suas vidas expostas a uma série de doenças que matam milhares todos os anos. De 2008 a 2019, conforme sistematizado no Atlas de Saneamento do IBGE, e publicado pela Agência Brasil (*6), foram realizadas 4.8 milhões de internações no nosso Sistema Único de Saúde (SUS) relacionadas a doenças relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado (DRSAI). A Doença de Chagas, diarreia e disenteria corresponderam a quase 81,5% dos óbitos no período. Essas são doenças que conhecemos a cura! Portanto, estamos falando de mortes evitáveis, assim como milhares de mortes na pandemia poderiam ter sido evitadas.

Em Santa Catarina, onde moro, me vejo diante governos e instituições que parecem ter perdido o senso mínimo de humanismo. Aprovaram planos diretores socioambiental e economicamente suicidas, e adiam a discussão mais ampla e indispensável sobre as adaptações às mudanças climáticas. Por inações em relação ao saneamento continuamos a produzir epidemias de diarreia e a asfixiar nossos territórios, matando nossos rios, como os mais conhecidos Tietê, ou Paraíba do Sul (no sudeste) ou os menos conhecidos como o Rio do Brás (em Florianópolis), o Capibaribe (em Recife) ou o Parnaíba (entre o Piauí e o Maranhão) (*7). Com isso, estamos transformando áreas que seriam sumidouros, em fontes abundantes dos tais gazes de efeito estufa, ou águas que seriam fonte de vida saudável, em fonte de doenças que causam a morte de milhares.

A universalização não só da coleta mas também de um tratamento de esgoto envolvendo práticas sintonizadas com as demandas do século 21, removendo poluentes, nutrientes dissolvidos e gases de efeito estufa, vai possibilitar avançarmos rumo a economia regenerativa e distributiva que precisamos. Quem sabe os raios e trovões das tragédias que o Brasil e o mundo estão vivendo, por medo ou razão, abaixem as orelhas e acordem nossos governos para o momento de emergência que precisa ser enfrentado com ações.

A continuidade do negacionismo me leva a acreditar que estamos sendo governados por seres que diante do momento de crise se escondem covardemente sob as luxuosas escrivaninhas dos palácios (dos municípios aos palácios do G20), enquanto a população e a natureza sofrem por conta de sua criminosa omissão. Precisamos ter na COP28 e especialmente na COP30 governos com mãos firmes, sem tremer diante do lobby fóssil, para assinar acordos que venham a garantir desmatamento zero, nenhum poço de petróleo a mais, restauração de nossas florestas, e saneamento universal com tratamento terciário universal. Assim poderemos promover o devido saneamento da crise climática e a garantia de territórios saudáveis e justos em todos os cantos do mundo como um direito humano e da natureza.

 

Para aprofundar a leitura

1- https://public.wmo.int/en/media/press-release/greenhouse-gas-concentrations-hit-record-high-again

2- https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(23)01859-7/fulltext

3- https://tratabrasil.org.br/wp-content/uploads/2023/11/Estudo-ITB-A-vida-sem-saneamento-Para-quem-falta-e-onde-mora-essa-populacao-V.-2023-11-14.pdf

4- He, Y., Li, Y., Li, X., Liu, Y., Wang, Y., Guo, H., ... & Liu, Y. (2023). Net-zero greenhouse gas emission from wastewater treatment: mechanisms, opportunities and perspectives. Renewable and Sustainable Energy Reviews, 184, 113547.

5- Zhou, X., Yang, F., Yang, F., Feng, D., Pan, T., & Liao, H. (2022). Analyzing greenhouse gas emissions from municipal wastewater treatment plants using pollutants parameter normalizing method: a case study of Beijing. Journal of Cleaner Production, 376, 134093.

6- https://www.ibge.gov.br/apps/atlas_saneamento/#/home

7- https://www.gov.br/fundaj/pt-br/destaques/observa-fundaj-itens/observa-fundaj/revitalizacao-de-bacias/colapso-dos-rios-brasileiros-mortos-ou-na-uti

 

* Paulo Horta é doutor em ciências biológicas pela USP e pós-doutor em ecologia marinha pela Plymouth University (Reino Unido). Atualmente é professor da UFSC, onde coordena pesquisas relacionadas aos impactos ambientais decorrentes das mudanças climáticas e poluição dos oceanos

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum