O aumento inevitável do derretimento das geleiras da Antártica Ocidental, ao longo do século XXI, deve produzir consequências catastróficas para as cidades costeiras, intensificando ainda mais as mudanças climáticas. Essas são algumas das conclusões de trabalho recentemente publicado na revista mundialmente reconhecida Nature Climate Change, liderado pela pesquisadora britânica Kaitlin Naughten. Modelos revelaram que o rápido aquecimento das águas do mar de Amundsen, a uma taxa três vezes superior aos ritmos observados historicamente, está levando a um aumento generalizado no derretimento das plataformas de gelo que são cruciais para o funcionamento do nosso oceano e do clima do planeta.
Como destacado pelos autores, a manutenção dos padrões observados tem o potencial de causar o recuo irreversível dos glaciares da região do Oeste da Antártica, onde temos gelo suficiente para elevar o nível médio global do mar em 5,3 m. Em entrevista concedida, a líder do trabalho destaca que a perda das geleiras da região é apenas uma das fontes da elevação do nível do mar. Ela reforça que adaptações devem ser consideradas mais seriamente como uma prioridade na resposta mundial aos processos erosivos e alagamentos que devem se intensificar nas próximas décadas. Como apontado ao final do artigo, a oportunidade de preservar as geleiras da região no seu estado atual provavelmente já passou, e nosso estados devem estar preparados para vários metros de aumento do nível do mar nos próximos séculos. Reduzir os custos socioambientais e económicos deste cenário exigirá uma combinação de mitigação, adaptação e sorte.
É importante compreendermos o que representa uma elevação de 5.3 m no nível do oceano. Para isso gerei modelagem das áreas alagadas utilizando a plataforma americana da Climate Central. Esses dados ancoraram visualizações e mapas usados na Conferência do Clima da ONU de 2021. Portanto, ao observarmos os mapas gerados temos a total clareza que estamos falando em um processo que vai redesenhar de norte a sul todo o litoral brasileiro. Isso significa perdermos bairros inteiros em cidades costeiras como Florianópolis, que deverá se transformar em um arquipélago de inúmeras e ilhas menores. A capital do estado de Santa Catarina deverá perder seu único manancial de água doce que é a Lagoa do Peri, e ver toda sua infraestrutura costeira sob as águas do mar. No Rio de Janeiro, por exemplo, ficarão debaixo da água os aeroportos da cidade. O Maracanã, estádio de futebol conhecido mundialmente como palco de muitos golaços de Pelé, terá as ondas do Atlântico batendo à sua porta. Em Recife, a Praia de Boa Viagem será engolida pelo oceano assim como as avenidas por onde, por tantas décadas, pularam foliões nos animados carnavais pernambucanos. Não posso deixar de falar de Belém, a cede da COP30 (Conferência das Nações Unidas para tratar das mudanças climáticas). A capital paraense vai ver completamente inundada a bela Estação das Docas, o portal da Amazônia, e tantos outros cartões postais da cidade.
O cenário descrito revela implicações ambientais, sociais e econômicas que precisam ser amplamente debatidas. O afogamento de ambientes costeiros, como as restingas, deverá produzir grande perda de espécies. Os manguezais e marismas, apesar de representarem áreas úmidas, de transição, serão severamente impactados, especialmente pelo fato de que em boa parte do nosso litoral estes estão cercados por cidades que ocuparam áreas que seriam naturalmente colonizadas por estes ecossistemas, que tendem a migrar para áreas mais elevadas. Com a perda destes ambientes precisamos estar preparados para as perdas de suas contribuições para nossa sociedade. A maior vulnerabilidade hídrica e sanitária impactará uma sociedade, já vulnerabilizada pela perda de moradias. Economicamente deveremos ter a pesca, a maricultura e o turismo, entre outras atividades, seriamente comprometidas.
É claro que o cenário descrito não significa que devemos abandonar nossas lutas, por exemplo, pela redução de emissões e por uma transição energética justa. Ao contrário, localmente precisamos rever o planejamento das cidades garantindo o respeito à capacidade suporte dos territórios considerando estes cenários de avanço do nível do mar. Nacionalmente, precisamos pressionar para a retirada imediata dos subsídios para a indústria fóssil, e a aceleração de grandes campanhas por desmatamento zero, restauração de ecossistemas degradados, demarcação das terras dos povos originários, despoluição das águas, entre outras medidas para termos compromissos nacionais mais ambiciosos. Mundialmente é hora de intensificarmos nossos esforços para que os compromissos das nações sejam respeitados, que na COP28 possamos viabilizar ações para descarbonização das economias, punindo economicamente países que não honrarem as metas multilateralmente acordadas. Precisamos iniciar a alimentação de fundos para pagamento por perdas e danos para acelerarmos o enfretamento destas emergências, especialmente no Sul Global. Considerando estimativas atuais, já estamos falando em algo da ordem de US$ 500 bilhões por ano em medidas de adaptação e mitigação. Com esses investimentos, nossas sociedades poderão intensificar seus esforços para construir adaptações à elevação do nível do mar, assim como tantas outras relacionadas a uma transição ecológica, restaurando áreas degradas, produzindo alimento saudável, ao mesmo tempo que universalizamos o acesso a fontes de energia renováveis, impulsionando assim economias regenerativas e distributivas.
Na contramão da ciência, governos municipais continuam impondo políticas negacionistas ao tratar do planejamento urbano. Em Florianópolis, por exemplo, foi feito um plano diretor que ignorou de forma advertida os cenários de elevação do nível do mar, induziu verticalização em áreas sabidamente alagáveis. Outro exemplo encontramos nos projetos de engordamento de praias que carecem de análise de impactos e de estudos que considerem as mudanças climáticas e o processo de elevação do nível do mar. Só em Santa Catarina foram dezenas de milhões de reais gastos dos projetos de engordamento, que estão sendo rapidamente erodidos, comprometendo não só os ambientes como também as economias dos municípios.
Apesar destas más adaptações, precisamos valorizar os avanços que conquistamos nos últimos tempos. A aprovação da Lei do Ecocídio, na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Senado Federal representa um exemplo importante de como podemos criar políticas que venham a fortalecer o enfretamento deste momento de crise climática e de tragédia humanitária anunciada. A aprovação dessa lei, juntamente com a redução de mais de 20% no desmatamento na Amazônia, representam avanços importantes do nosso país que precisam ser valorizados. Entretanto, o aumento do desmatamento no Cerrado e da exploração de petróleo representam retrocessos que não poderiam estar acontecendo, pois representam elementos que, somados, aceleram a crise climática que intensifica o derretimento de nossas geleiras, contribuindo, portanto, mesmo que indiretamente, para a elevação do nível do mar.
Compreendo as dificuldades de debatermos esse tema diante dos crimes de lesa-humanidade que estão sendo vividos na Palestina. Mas se os palestinos sofrem sob as bombas sionistas de Israel, a humanidade padece em um planeta em ebulição. É importante lembrarmos que a energia retida pelos gases estufa nos últimos 50 anos é equivalente é cerca de 25 bilhões de vezes a energia emitida pela bomba nuclear de Hiroshima. Portanto, vivemos uma guerra onde todos os dias milhares de bombas atômicas estariam explodindo. O fato é que essa tragédia climática é igualmente desumana e injusta, pois anualmente já mata milhares de inocentes. Que as imagens de uma Amazônia, de seus povos e seres vivos que adoecem e morrem com seus rios secos, ou asfixiados com a imensa nuvem de fumaça tóxica, possam somar argumentos ao processo de formação de uma maioria no parlamento para acelerarmos a transição ecológica justa. Apesar de distantes de nós, precisamos difundir no Brasil a importância das áreas permanentemente congeladas dos polos e das nossas montanhas mais altas. Estes são, assim como Amazônia, elementos fundamentais, não só para o controle do nível dos mares, mas também para a manutenção da estabilidade climática do planeta, da qual todas e todos nós dependemos.
Para saber mais:
1- Naughten, K.A., Holland, P.R. & De Rydt, J. Unavoidable future increase in West Antarctic ice-shelf melting over the twenty-first century. Nat. Clim. Chang. 13, 1222–1228 (2023). https://doi.org/10.1038/s41558-023-01818-x
2- https://sealevel.climatecentral.org/
3- https://unfccc.int/news/cost-adapting-climate-change-could-hit-500-billion-year-2050
4-https://www.camara.leg.br/noticias/1015415-comissao-aprova-criacao-do-crime-de-ecocidio-para-punir-casos-mais-graves-de-destruicao-ambiental
5-https://theconversation.com/two-trillion-tonnes-of-greenhouse-gases-25-billion-nukes-of-heat-are-we-pushing-earth-out-of-the-goldilocks-zone-202619#:~:text=This%20means%20the%20effect%20of,by%20the%20Hiroshima%20nuclear%20bomb.
* Paulo Horta é doutor em ciências biológicas pela USP e pós-doutor em ecologia marinha pela Plymouth University (Reino Unido). Atualmente é professor da UFSC, onde coordena pesquisas relacionadas aos impactos ambientais decorrentes das mudanças climáticas e poluição dos oceanos
** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum